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Entrevista

​Juan Gabriel Vásquez: “Escrevo a partir daquilo que não entendo”

27 fev, 2017 - 19:28 • Maria João Costa

Escritor colombiano falou à Renascença sobre o livro “A Forma das Ruínas”, recentemente lançado em Portugal, e da "prisão de violência" em que viveu mergulhado o seu país durante as últimas décadas.

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Nasceu na Colômbia há mais de 40 anos, mas tem vivido fora do país ao qual regressou há pouco tempo. Juan Gabriel Vásquez, o autor que já venceu, entre outros, o Prémio Alfaguara em 2011 e o Prémio da Real Academia Espanhola em 2014, volta a escrever sobre a Colômbia manchada pela violência política.

“A Forma das Ruínas” é o mais recente livro traduzido para português, editado pela Alfaguara. A obra nasceu de uma investigação sobre o assassinato de dois políticos colombianos e foi escrito durante a negociação do processo de paz na Colômbia.

Vásquez, que confessa escrever a partir daquilo que não entende, espera que a Colômbia consiga livrar-se da “prisão” da violência que a tem marcado. A Renascença entrevistou-o durante a sua passagem pelo festival literário Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim.

“A Forma das Ruínas” parte de uma investigação?

É uma investigação que são muitas investigações. O romance nasceu de um momento, em 2005, em que um médico que conheci vagamente em Bogotá colocou-me nas mãos os restos humanos de uma vértebra de Jorge Eliécer Gaitán, um político colombiano assassinado em 1948, e uma parte do crânio de outra vítima da violência histórica colombiana, Rafael Uribe, morto em 1914.

Esse facto de ter tido nas minhas mãos os restos de dois mortos célebres da violência política colombiana do século XX tornou-se para mim uma obsessão. Investiguei durante muitos anos estes dois assassinatos e percebi que sobre eles há mais sombras do que luzes, mais mentiras do que verdades e apercebi-me que havia um vínculo social e político, mas também familiar que me uniam a estes dois factos de violência. O livro partiu dessas curiosidades que se transformaram em obsessão sobre as mentiras e os segredos que todos os países têm sobre os seus acontecimentos violentos e tornou-se uma investigação mais pessoal sobre a minha própria vida.

Para si, a realidade continua a ser a melhor inspiração?

Sim. Apercebi-me que todos os meus livros nasceram de um choque com a realidade da História do meu país, que é obscura e mentirosa. O livro transforma-se numa exploração através dos poderes da ficção desse momento real, mas preciso do choque com a realidade e a revelação de uma intuição que está incompleta. Há verdades que só a ficção pode dizer sobre essa realidade incompleta.

E em que momento o escritor saltou para dentro da história do seu próprio livro?

Foi algo que nunca tinha feito. Claro que todos os meus narradores têm algo de mim, mas este livro é contado por Juan Gabriel Vásquez com toda a sua biografia e em nome próprio. Isso deve-se ao facto de eu ter tido nas mãos as tais ossadas destes políticos assassinados. Foi tão forte que pareceu-me que, se inventasse um narrador, poderia diminuir o impacto que isso teve em mim. Poderiam pensar que seria uma invenção, uma fabricação.

Há outros factos históricos como o assassinato de John Kennedy que também entram neste livro.

Há uma personagem neste livro que se chama Carlos Carballo que passa a vida a investigar. Está obcecado com uma verdade oculta escondida nas mentiras oficiais. Ele encontra pontos misteriosos em comum entre os assassinatos de Jorge Eliécer Gaitán e o de Kennedy, em 1963, e monta uma teoria da conspiração em torno disto. O livro é também sobre isso, sobre o uso da teoria da conspiração como forma de a sociedade se defender das mentiras da História. Ela surge quando intuímos que não nos estão a contar a verdade.

Continua a escrever para compreender melhor o seu país, a Colômbia?

Eu escrevo a partir daquilo que não entendo. Contudo, para mim não é claro que no final dos meus livros fique a compreender. Sei que escrevo a partir daquilo que não sei, do que não conheço, a partir das perguntas. Para mim, a literatura e o romance como género foi isso para mim, a exploração das coisas que não entendo e nunca a explicação do que já entendi.

A Colômbia mudou muito com o processo de paz e isso está também relacionado com este livro.

Este livro é inseparável desse processo de mudança. O processo de paz acompanhou a escrita deste livro. Acho que o livro espelha essa preocupação pelo país que está em transformação e mudança. Há uma tentativa de virar a página e deixar para trás tudo o que o livro fala, deixar para trás uma situação histórica de violência colombiana da qual não nos desprendemos nos últimos anos. O livro gira em torno de dois crimes cometidos, mas há muitos mais que nos levam a pensar numa “prisão” de violência do qual o país não se consegue livrar. O processo de paz foi a grande tentativa de cortar com o passado de violência e reinventamo-nos como país.

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