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Trump iniciou cruzada contra a regulação bancária

04 fev, 2017 - 16:48 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Trump culpou o mundo financeiro pela crise, mas está rodeado de gente de Wall Street. Desregular é a palavra de ordem e os republicanos no Congresso já estão a ajudar. Ideologia e interesses pessoais confundem-se na administração.

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O país está nas mãos de “uma estrutura de poder global que é responsável pelas decisões económicas que roubaram a nossa classe trabalhadora, esbulharam o país da sua riqueza e puseram o dinheiro numa mão-cheia de grandes corporações”.

Não, a afirmação não é de nenhum dirigente do PCP ou do Bloco de Esquerda. Nem tão pouco de Bernie Sanders, o candidato mais à esquerda que surgiu nas eleições americanas do ano passado. Mas podia ser de qualquer um deles.

Foi feita num anúncio de propaganda eleitoral de Donald Trump, o candidato mais à direita que surgiu nas eleições. Um candidato que não se inibiu de, durante toda a campanha, atacar as grandes corporações, sobretudo do sector financeiro, e responsabilizá-las pelos problemas que afectam os trabalhadores das indústrias tradicionais e todos aqueles que se sentem excluídos da globalização.

Uma tónica que tinha como objectivo captar os votos destes sectores eleitorais – e que resultou em pleno nos estados do Midwest, que acabaram por lhe dar a vitória – e identificar a sua adversária como sendo a representante dos interesses do sector financeiro na campanha.

No dizer de Trump, Hillary Clinton seria na Casa Branca a porta-voz de Wall Street, até porque estava farta de ganhar dinheiro a dar conferências a banqueiros, pagas a peso de ouro.

Neste ataque populista nem Ted Cruz, o seu principal rival nas primárias republicanas, escapou por ter tido ligações ao banco Goldman Sachs.

Mas isso foi na campanha eleitoral, claro. Mal foi eleito, o bilionário Trump começou a escolher equipa e na demonizada Wall Street foi buscar vários dos seus colaboradores.

Só no Goldman Sachs, expoente máximo das tais corporações que “roubaram a classe trabalhadora e despojaram o país da riqueza”, recrutou nada menos de seis membros da sua administração.

Entre antigos e actuais colaboradores do famoso banco, estão o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, o principal estratega político, Stephen Bannon, o regulador da bolsa, Jay Clayton, o director do Conselho Económico Nacional, Gary Cohn, e dois assessores da Casa Branca, Dina Powell e Anthony Scaramucci. Todos prontos para desempenhar posições-chave na nova administração.

Mas, mais importante do que as nomeações, são certamente as políticas a adoptar. E nesse aspecto, Wall Street pode não só dormir descansada, como pode mesmo celebrar aquilo que se anuncia para o sector financeiro ao fim de apenas duas semanas de governação.

E que se pode resumir numa palavra: desregular. Nesta sexta-feira, após uma reunião com executivos de Wall Street, Trump anunciou duas medidas que visam começar a esvaziar a célebre lei Dodd-Frank, aprovada pelo Congresso na sequência da crise financeira de 2008, e que definiu uma série de regras mais apertadas para controlar a actividade bancária.

A primeira dá autoridade ao Tesouro para rever o montante das provisões de capital que os bancos são obrigados a ter para fazer face à irrupção de uma eventual crise. Embora não especifique nada, a ordem presidencial refere a necessidade de dar mais poder aos investidores e melhorar a competitividade da economia americana.

Estes são os objetivos definidos pela administração e enquanto “filosofia” de acção devem ser seguidos pelas novas regras. O que passa por dizer que os bancos ficarão libertos de cumprir os montantes de provisões de capital estipulados pela lei Dodd-Frank, tornando-os mais vulneráveis a uma crise.

Regra fiduciária em risco

A segunda medida visa acabar com a chamada regra fiduciária, que obriga os bancos a agir no melhor interesse do cliente e não na procura de lucro quando prestam aconselhamento sobre os planos de poupança-reforma do cliente.

Associações de consumidores já criticaram a intenção da medida, argumentando que a regra fiduciária constitui uma protecção mínima que visa impedir os bancos de se aproveitarem da vulnerabilidade dos clientes. Os bancos contrapõem que a regra, que entraria em vigor em Abril próximo, levaria a uma série de processos judiciais cujos custos as empresas acabariam por repercutir no consumidor.

Com a ordem executiva de Trump a norma já não entrará em vigor, o que libertará os corretores bancários para darem os conselhos que entenderem aos seus clientes, nomeadamente a transformação das contas poupança-reforma em produtos de maior risco que podem acabar na perda do capital, como se verificou em milhões de casos. Portugal não foi excepção neste aspecto, como se sabe.

Enquanto os bancos alertam para a subjectividade da avaliação do cumprimento da regra fiduciária, que provocaria a litigância judicial, a administração Trump argumenta com a liberdade de escolha. O consumidor deve ter a possibilidade de investir as suas poupanças em produtos de risco ou mesmo perigosos, e por isso deve ser-lhe fornecida toda a informação disponível.

Curiosamente, alguns bancos estavam já a adaptar-se à regra fiduciária e não participaram no movimento de contestação do sector. O Bank of America/Merrill Lynch, por exemplo, fez um anúncio em que garantia aos clientes estar “comprometido com o seu melhor interesse, não com o status quo”.

Na terça-feira, num encontro com a imprensa estrangeira, Ethan Harris, economista responsável no banco pelas previsões e pesquisas macro-económicas, confessou à Renascença a sua convicção de que não haveria grandes mudanças na lei Dodd-Frank e que os bancos estavam hoje adaptados a ela e não viria daí mal ao mundo.

Perspectiva algo diferente manifestou Kate Moore, directora executiva do banco BlackRock. Interrogada igualmente pela Renascença sobre as expectativas que tinha em relação a eventuais mudanças na lei, Moore mencionou a questão das provisões de capital, insistindo várias vezes na necessidade de as rever e de promover desregulação em vários outros aspectos da actividade económica.

“Dodd-Frank é desastre”

Um desígnio em que Donald Trump parece claramente empenhado. E que esta sexta-feira justificou culpando a regulação pelo facto de os bancos não emprestarem dinheiro. “Vamos cortar muito na [lei] Dodd-Frank, porque tenho muitos amigos que tinham negócios bonitos e agora não conseguem contrair empréstimos. Os bancos não lhes emprestam por causa das regras e da regulação da Dodd-Frank”, afirmou. Uma afirmação desmentida pelos números, já que o crédito ao consumo e às empresas tem aumentado.

No encontro com os líderes de Wall Street na Casa Branca, Trump elogiou o presidente do JPMorgan Chase, Jamie Dimon, dizendo que “não há ninguém melhor do que o Jamie para me falar da Dodd-Frank, portanto vais-me falar disso”. O JPMorgan foi várias vezes alvo de acções regulatórias por parte da administração Obama.

A convergência de objectivos entre o presidente, toda a sua equipa económica e os magnatas de Wall Street não poderia ser maior. Mas a eles juntam-se ainda os republicanos no Congresso, vitais para levar a cabo a tarefa de desregulação, já que o presidente só por si não pode revogar a lei.

E os senadores já começaram a fazê-lo sem hesitações nesta sexta-feira, acabando com uma regra que obrigava as companhias petrolíferas a divulgar pagamentos feitos a governos em cujos países extraem crude.

O objectivo da norma era detectar subornos e corrupção, mas as petrolíferas fizeram lobby contra ela, argumentando que as deixava em desvantagem relativamente aos concorrentes internacionais. Rex Tillerson, quando era presidente da ExxonMobil foi um dos que fez intenso lobby contra a regra. Hoje, Tillerson é secretário de Estado e a regra acaba de ser revogada por maioria simples no Senado.

A cruzada da desregulação começou, portanto, e não é uma surpresa. Na campanha eleitoral, Trump prometeu inúmeras vezes que iria desregular e até classificou a lei Dodd-Frank como “um desastre”. E o seu secretário do Tesouro, Steve Mnuchin, também já prometeu “matar” partes da lei, incluindo a que impede os bancos de fazerem investimentos especulativos do tipo daqueles que conduziram à grande recessão de 2008.

Mnuchin foi um dos investidores que mais dinheiro ganharam durante a crise imobiliária de 2008. Na administração Trump não é fácil distinguir entre posicionamento ideológico e defesa de interesses privados. Por vezes coincidem de tal modo que se confundem.

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  • Pedro Ribas
    04 fev, 2017 Tavira 17:33
    Esta lei foi criada após o estoiro de 2008. O mesmo que arrastou Portugal em 2011 e que nos meteu troica e PAF em casa. Depois falem-me do 44...esse ainda foi o menos culpado.

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