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Entrevista

Michel Wieviorka. “Há cada vez mais pessoas que são racistas, mas com muito cuidado”

30 jan, 2017 - 18:14 • Teresa Abecasis

O racismo é um problema da sociedade actual, mas escondeu-se e tornou-se "subtil". O aviso vem de Michel Wieviorka, importante sociólogo francês.

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Michel Wieviorka. “Há cada vez mais pessoas que são racistas, mas com muito cuidado”

“Violência”, “terrorismo” e “racismo” são conceitos que Michel Wieviorka conhece bem. Há mais de 30 anos que tem vindo a publicar diversos estudos nestas áreas. Talvez por isso tenha dificuldade em olhar para 2017 e ver concretizada a esperança de António Guterres de que este “seja o ano da paz”.

Não é que o sociólogo francês tenha perdido a esperança: a descrença deve-se mais ao limite temporal definido pelo novo secretário-geral das Nações Unidas: “Gostava mais que ele tivesse dito que o século devia ser o século da paz”. Este ano, explica, o mundo ainda tem que lidar com “muitos perigos” e por isso “é difícil ser optimista”.

Um desses perigos está “escondido” e põe em causa a democracia: o racismo.

Tudo isto acontece numa altura em que a desconfiança nos políticos e nos meios de comunicação social tem aumentado e em que os movimentos de extrema-direita têm vindo a ganhar terreno, nomeadamente em França, onde haverá este ano eleições presidenciais.

O presidente da Fundação Maison des Sciences de l’Homme não arrisca uma previsão, mas, mesmo depois das surpresas de 2016, mantém a convicção de que Marine Le Pen não será Presidente de França.

A Renascença entrevistou Michel Wieviorka, aproveitando a passagem do director da Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais por Portugal para participar no Painel Internacional para o Progresso Social. Um encontro que reúne mais de 300 cientistas sociais e das humanidades de todo o mundo e que irá apresentar as suas conclusões até ao final do ano.

Não é paradoxal que, apesar de a informação estar mais acessível do que nunca, os movimentos extremistas também estejam a aumentar?

Nós somos todos cheios de contradições. Por isso, sim, vivemos num mundo onde as pessoas têm cada vez mais estudos, onde as pessoas podem comunicar muito mais do que no passado, mas isso não quer dizer que vivamos num mundo com menos violência.

Deixe-me referir um exemplo muito importante: nos anos 30, havia um sociólogo e historiador muito importante, Norbert Elias. O seu livro mais conhecido chama-se, em francês, "Le Processus de Civilisation" [“O Processo Civilizador” na edição brasileira]. E a ideia do livro era a de que com a evolução normal da civilização as pessoas ficam mais civilizadas, menos agressivas, cada vez menos violentas. E o que aconteceu? O país dele, que era um dos mais civilizados, a Alemanha, tornou-se nazi e cometeu crimes terríveis e horríveis. Por isso, o mais civilizado pode tornar-se no mais bárbaro.

O que nos está a escapar no meio de tanta informação?

A informação hoje passa, por exemplo, pelas redes sociais. Nas redes sociais, tu e eu podemos escrever o que quisermos. Muitas pessoas têm a sensação de que os políticos estão a mentir, os jornalistas estão a mentir, os professores mentem, os intelectuais estão a mentir, ninguém diz a verdade. E há também a ideia de que eu posso decidir, por mim, o que é a verdade – posso ir à internet e ler o que quiser. Isto é bom e não é. Isto leva a coisas terríveis, àquilo que as pessoas chamam de situações de "pós-verdade". Mas, ao mesmo tempo, com a internet, também conseguimos ter acesso a informação nova e credível. Tudo é ambivalente. O melhor e o pior passam pelas redes sociais.

A sociedade procura novas fontes de informação?

Estamos numa altura em que a sociedade está a pedir novos sistemas políticos e novos lugares de discussão. Precisamos de mais debate, mais cidadania. As pessoas preferiam um mundo novo, consideram que todas estas pessoas que fazem parte do antigo sistema não são de confiança. E isso é verdade: se ouvir o seu discurso todos os dias, descobrirá que um político muito importante tem estado a mentir.

Estamos num momento histórico em que muitas pessoas dizem que precisamos de algo diferente. E, como elas não confiam em tantas pessoas, são capazes de votar em pessoas que podem fazer coisas horríveis. Mas as pessoas querem ver algo novo.

Muitas pessoas que votaram em Donald Trump fizeram-no por querer uma mudança no sistema. E o mesmo acontece com muitos potenciais votantes em Marine Le Pen. É um reflexo dos problemas económicos? Ou está a crise económica a revelar problemas sociais mais profundos?

Podemos relacionar isto com a economia. Mas não só. Se ouvir os argumentos das pessoas, elas não falam apenas sobre economia. Não falam apenas de desigualdades sociais, de estado de direito, se há ou não uma redistribuição, crescimento, e por aí fora. Não. Elas falam de cultura, de religião, identidade, falam sobre a nação. Estes assuntos não são, pelo menos não directamente, assuntos económicos.

Claro que a crise económica dá importância a estas pessoas que têm uma perspectiva extremista, que dizem que devemos mudar tudo ou que defendem a expulsão do país de pessoas que não são como eu. Isto é verdade, mas não só.

Podemos ter este tipo de movimentos em lugares onde há crescimento, estado social e não há problemas de desemprego. Lembre-se que estes movimentos de extrema-direita ou populistas existem em países onde não há assim tantos problemas económicos. Veja a Noruega, a Suíça. Estes países não têm grandes problemas económicos e têm fortes movimentos de extrema-direita.

O racismo é um problema na sociedade ocidental?

Depois da II Guerra Mundial, as pessoas começaram a perceber que o anti-semitismo podia conduzir a crimes terríveis. Nesse contexto de pós-guerra, entrámos num período de descolonização e muitas pessoas disseram que íamos acabar com o racismo. Mas não foi isso que aconteceu. As pessoas ainda são racistas. Mas o racismo está a mudar.

O problema é que eu não quero ver o outro. Este é o pensamento das pessoas racistas. A tua cultura e a minha cultura não têm nada em comum. Tu és uma ameaça, um perigo. Eu não quero ter os teus valores na minha sociedade porque nós já temos todos os valores. O racismo hoje não consiste só na inferiorização – quero dominar-te, quero que tu faças certos trabalhos –, o racismo é feito da diferenciação. Tu és diferente, eu não quero ver-te. Vai-te embora, fica no teu país.

A segunda característica é que, como nós, naturalmente, fizemos grandes progressos a combater o racismo, hoje há cada vez mais pessoas que são racistas, mas com muito cuidado. Elas não se apresentam claramente como tal. Por exemplo, no meu país, num anúncio de emprego, não se pode escrever que o trabalho é só para pessoas brancas. Se escreveres algo assim, terás grandes problemas com a justiça. Por isso, arranjas outras maneiras.

Por exemplo, anuncias o emprego, pedes aos interessados para se candidatarem, as pessoas candidatam-se e, não se sabe porquê, são só pessoas brancas que têm a oportunidade de conseguir este emprego. Mas não é explícito. Nunca é dito abertamente. É escondido. É subtil.

Isso torna este racismo mais perigoso?

Torna-o diferente. O resultado é o mesmo. É perigoso para as vítimas disto. E não é bom para a democracia nem para a cidadania das pessoas no país.

Porque ninguém reconhece?

Em muitos casos, ninguém é racista, mas o resultado é a discriminação. Dou-lhe outro exemplo: se não quiser nenhum migrante a trabalhar na minha empresa, não digo nada quando houver uma vaga. Limito-me a falar com os trabalhadores da empresa: "Se souberem de alguém para este novo lugar, falem-lhe desta proposta". O que acontece é que as pessoas vão falar com os irmãos, com os amigos, com os filhos. Pessoas que elas conhecem, que são como elas. E se eu não tiver nenhum migrante na minha empresa, ninguém vai convidar um migrante para lá entrar.

É este também um problema de tolerância na sociedade actual?

É um problema de tolerância, de reconhecimento positivo. E é também um problema da democracia. Como podemos viver juntos e pensar que algumas pessoas não têm os mesmos direitos e possibilidades que os outros? Isso não é aceitável. É um problema real. E quanto mais uma sociedade é racista, menos democrática se torna, e isso impossibilita o progresso social.

Como é que encara a possibilidade de Marine Le Pen vir a ser Presidente de França?

Estamos no fim de Janeiro, ainda faltam três meses para as eleições. Muitas coisas podem acontecer – na política, estão sempre a acontecer muitas coisas. Se as eleições fossem amanhã, diria que ela não vai ser eleita – não tem mais de, talvez, 30% da população que pode votar nela. E, o que é muito importante, os outros eleitores votariam contra ela. Muitas pessoas diriam: "se existe uma hipótese de ela ser eleita, eu votarei em qualquer outro candidato, mesmo se não for o meu candidato".

Mas não era isso que se espera que acontecesse nos Estados Unidos e no Reino Unido?

Não podemos dizer que o Brexit é uma política de extrema-direita. É algo de que não gosto, mas não é extrema-direita. E mesmo que tenhamos muito boas razões para criticar Trump, não podemos dizer que ele é um líder de extrema-direita.

Mas é verdade que a Frente Nacional está cada vez mais forte. Não é completamente impossível que Marine Le Pen ganhe as eleições. Um mês depois das eleições presidenciais, vamos ter eleições legislativas e é quase certo que ela não consegue uma maioria. Mesmo se ela for Presidente, terá grandes problemas com o Parlamento. A situação será tensa.

Está em Portugal para participar num encontro do Painel Internacional para o Progresso Social. Dentro do painel, está responsável pelo tema “Violência, Guerras, Paz, Segurança”. Como olha para as declarações do novo secretário-geral das Nações Unidas, que elegeu o ano de 2017 como o “ano para a paz”?

Gostava mais que ele tivesse dito que o século devia ser o século da paz. São palavras bonitas, mas a realidade não é essa. O terrorismo não acabou, temos guerras em África, temos muitos perigos em todo o mundo.

Mas, às vezes, temos também boas razões para falar em nome da paz. Na Colômbia, neste momento, estamos a assistir ao possível fim da última guerrilha importante da América Latina. Isto é um passo para a paz.

Mas, ao mesmo tempo, temos de olhar para o que está a acontecer na Síria e no Iraque, para a maneira como a Rússia está a actuar na Europa. É difícil ser optimista.

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