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Crónicas da América
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Trump expôs a sua visão para a América: proteccionismo, nacionalismo, isolacionismo

21 jan, 2017 - 01:16 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Na tomada de posse, novo presidente manteve discurso populista e divisivo. Contra a classe política, promete “comprar americano, contratar americanos”. Ignorou Constituição, liberdades e não teve uma palavra para a adversária, desprezando a tradição.

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A frase surgiu a meio do discurso: “A partir de hoje, uma nova visão vai governar a nossa terra”.

A visão já era conhecida desde o início da campanha eleitoral, mas para que não houvesse dúvidas, Donald Trump fez questão de esclarecer: “A partir de agora vai ser a América primeiro. Todas as decisões sobre comércio, impostos, imigração, política externa, serão tomadas em benefício dos trabalhadores e das famílias americanas”.

E o que significa isso? Significa “proteger as nossas fronteiras do saque de outros países que fabricam os nossos produtos, roubam as nossas empresas, destroem os nossos empregos. (…) Voltaremos a ter empregos. Voltaremos a ter fronteiras. Voltaremos a ter riqueza. Voltaremos a ter sonhos”.

Estava definido o essencial da substância do discurso inaugural do novo presidente americano. Uma política proteccionista, com profundas raízes num nacionalismo de má memória em todo o mundo. “Seguiremos duas regras simples: comprar americano, contratar americanos”.

“Reconstruiremos o país com mãos americanas e trabalho americano”, garantiu Trump, naquele que foi o seu primeiro discurso como presidente, mas que nem por isso foi um discurso presidencial.

As expectativas do dia da tomada de posse residiam sobretudo neste discurso inaugural, em que se esperava que finalmente Donald Trump abandonasse o seu registo eleitoral e falasse para todo o país, tentando sarar as feridas abertas por uma campanha eleitoral muito agressiva.

Mas logo no início, Trump deu o tom: “Durante demasiado tempo um pequeno grupo da nossa capital colheu os benefícios do governo enquanto o povo suportou os custos. Washington floresceu – mas o povo não partilhou a sua riqueza. Os políticos prosperaram – mas os empregos desapareceram e as fábricas fecharam. O establishment protegeu-se a si mesmo, mas não aos cidadãos do país”.

Cartilha populista

“As vitórias deles não foram as vossas vitórias; os seus triunfos não foram os vossos triunfos; e enquanto celebraram na capital da nossa nação, pouco havia para celebrar entre as famílias que lutavam para sobreviver na nossa terra”.

Poderia ser a cartilha oficial do populismo, mas eram as primeiras linhas do discurso do presidente recém-empossado. Que não foram ditas num qualquer comício, mas proferidas na solenidade da “Inauguration” de um homem que, em vez de falar para todo o país, optou por repetir o mantra que lhe deu a vitória no Colégio Eleitoral e que o fez Presidente.

Trump usou pela primeira vez neste tipo de discursos palavras como “saque”, “roubo”, “carnificina”, “túmulos”, e não estava a falar de violações aos direitos humanos em qualquer local devastado por um conflito ou por uma tirania.

Não, estava a falar da América, do seu país, do qual voltou a traçar um retrato sombrio idêntico aquele que tinha traçado na Convenção Republicana de Cleveland que o consagrou como candidato oficial do partido à Casa Branca.

Estava a falar de um país que há oito anos, quando o seu antecessor tomou posse, tinha uma taxa de desemprego que ultrapassava os 10% e hoje tem 4,7%, que estava mergulhado na recessão e hoje cresce a 3,2%, onde milhões de pessoas tinham perdido as suas casas e hoje o mercado imobiliário floresce, onde o crime baixou substancialmente, e que mantém uma competitividade internacional ímpar nas novas tecnologias e não só.

Mas para Trump existe uma realidade bem diferente: “mães e crianças estão presas à pobreza nas nossas cidades; fábricas enferrujadas povoam, como túmulos, toda a paisagem da nação; no sistema educativo, despeja-se dinheiro mas deixam-se os nossos jovens e bonitos estudantes sem conhecimento; e o crime e os gangues e as drogas roubaram-nos demasiadas vidas e roubaram ao país tanto potencial por realizar”.

Foi a isto que o novo presidente chamou “carnificina” que prometeu “acabar aqui e agora”. Uma “carnificina” pela qual responsabilizou a classe política contra a qual todo o discurso foi orientado, no melhor estilo populista.

Longe de Reagan

Mas não o fez no estilo tradicional dos conservadores, que culpabilizam a burocracia estatal, ou a regulação, ou a legislação, por criar obstáculos à iniciativa privada. Trump está muito longe da célebre frase de Ronald Reagan segundo a qual “o governo não é a solução, o governo é o problema”.

Pelo contrário, Trump vilipendia a classe política para se apresentar ao povo como o seu salvador, como aquele que vai, investido no governo, devolver-lhe o poder e resolver todos os problemas do país em seu nome.

Ele não apela à dinâmica da sociedade civil para ultrapassar os obstáculos alegadamente existentes. Não, Trump assume-se como a solução para os problemas, no melhor estilo paternalista. Foi ele que disse em Cleveland que “sozinho consertaria os problemas do país”.

Atente-se nesta frase do discurso: “A cerimónia de hoje tem um significado especial. Hoje não estamos apenas a transferir o poder de uma administração para outra, ou de um partido para outro — estamos a transferir o poder de Washington e a devolvê-lo de volta a vocês, o povo americano”.

Ou nesta: “O que verdadeiramente importa não é que partido controla o governo, mas se o governo é controlado pelo povo. 20 de Janeiro de 2017 vai ser lembrado como o dia em que o povo se tornou de novo o governante desta nação”. Ele é, portanto, o povo.

E enquanto governante da nação, o povo encarnado em Donald Trump já tem os seus inimigos identificados: internamente a classe política de Washington; externamente todos os países que competem na economia mundial.

“Durante décadas, enriquecemos a indústria estrangeira à custa da indústria americana; gastámos triliões lá fora enquanto as infraestruturas americanas caíram em ruína e decadência; fizemos outros países ricos enquanto a riqueza, a força e a confiança do nosso país desapareceu no horizonte. Uma a uma, as fábricas fecharam e deixaram o país, sem sequer pensarem nos milhões de trabalhadores americanos abandonados; a riqueza da nossa classe média foi arrancada das suas casas e distribuída pelo mundo inteiro”.

Eis os efeitos da globalização no retrato feito por Donald Trump. Que tem uma receita para o problema, como já vimos: nacionalismo económico, que a prazo se confundirá com isolacionismo político.

“Proteger as nossas fronteiras do saque de outros países que fabricam os nossos produtos, roubam as nossas empresas, destroem os nossos empregos”, lembram-se?

Este foi o discurso em que não houve uma única referência ao sistema democrático americano, à Constituição, às liberdades fundamentais consagradas no Bill of Rights, à adversária derrotada, aos 63 milhões de eleitores que não votaram no presidente empossado (no qual, aliás, só votaram 60 milhões). Um discurso que ignorou todas as tradições históricas da cerimónia.

Foi um discurso de facção, de fracção, que continuou a dividir os americanos (e o mundo) entre nós e os outros, entre bons e maus. Que se pode resumir no slogan “a América primeiro”, com todas as conotações inquietantes que isso encerra.

Trump informou na véspera que o tinha escrito ele próprio e que seria “filosófico”. O mundo ficou assim com a certeza que a “filosofia” com que vai governar é a mesma com que fez campanha eleitoral. Divisiva, maniqueísta, egocêntrica, arrogante. E, sobretudo, perigosa para o mundo.

Churchill disse um dia que na derrota devemos ser humildes e na vitória magnânimos. Donald Trump nunca leu Churchill.

Comentários
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  • Francisco de Vasconc
    21 jan, 2017 Parede 13:48
    O Código Deontológico dos Jornalistas, a falta de distancia profissional e a objectividade estão cada vez mais ausentes no despudor com que endeusam as causas e pessoas que defendem militantemente, e também na arrogância (que já nem se preocupa em fingir neutralidade) com que combatem militantemnente, e também com arrogância (não se preocupando já em fingir objectividade) as causas e pessoas que detestam. É assim mesmo que nós imaginamos que são os "media" no Irão e Coreia do Norte. Que tristeza .....
  • Antonio Sousa
    21 jan, 2017 Faro 13:34
    "orgulhosamente sozinhos" houve um que disse qualquer coisa parecida
  • António Lapa
    21 jan, 2017 13:28
    A comunicação social e os políticos de tradição andam atarantados. Para o bem e para o mal, é preciso, por vezes, um murro no estômago para acordar. Trump é um boçal mas toca em assuntos caros aos cidadãos, assuntos que são importantes e que os políticos da tradição escondem por falta de coragem. Estes mesmos políticos e a comunicação social vão adaptar-se aos novos tempos, é só mudar o chip, infelizmente.
  • Mario
    21 jan, 2017 Portugal 12:52
    Nada tenho a temer de Trump antes pelo contrário pois ao menos tem a coragem de mostrar a cara e de dizer o que acha das erróneas politicas Europeias e Americanas. Vira-se para o seu País e para o povo Americano nada de mal tem isso. Não precisa ser alienado como os Europeus que seguem regras aleatórias impostas por Bruxelas que não passa de uma cobertura à Alemanha que em realidade é quem manda na Europa assim como a sua Chanceler. A meu ver é mais saudável o Patriotismo que a globalização. Nós primeiro depois os outros nada de mal há nisso mas assusta os desgovernastes actuais. que em nome da democracia usam a tirania impondo e não consultando, criando problemas sem os solucionar ou resolver, servindo a banca e suas ambições pessoais desprezando o País e o povo.
  • FR
    21 jan, 2017 Portugal 12:34
    Quanto menos tradições melhores, o passado humano escurece à medida que olhamos para o passado, tradições são passado, por isso devemos libertar-nos disso
  • António
    21 jan, 2017 Lourinhã 12:06
    Aquilo de que acusam o Trump acabam por ter muitos dos jornalistas que sobre ele comentam : não conheço figura pública tão criticada e difamada. É uma questão de honestidade intelectual. É que nem todos tem a mesma visão do mundo, os mesmos valores e os mesmos conceitos morais. A verdadeira Democracia é aceitar os outros, principalmente quando as nossas ideias perdem. Ninguém é dono da Verdade. Mal de quem pensa que nós somos os bons, e os outros, os que têm ideias diferentes, os maus. E há muita gente, que tem a boca cheia de democracia, mas só quando as ideias que eles defendem ganham. Têm muito medo de ofender os que estão por detrás do palco. Honestidade, e isenção precisam-se.
  • Otelo
    21 jan, 2017 11:57
    Donald Trump o "palhaço" que diz as verdades enquanto "políticos sérios" fazem palhaçadas e insultam a nossa inteligência. O legado de Obama foi provocar o voto em Donald Trump...
  • João
    21 jan, 2017 Porto 11:30
    Concordo e subscrevo tudo o que foi escrito pelo Sr. Alberto Sousa. O Sr. jornalista que escreveu este artigo deveria ser chamado à atenção.
  • Guilherme Rodrigues
    21 jan, 2017 Londres, Reino Unido 11:28
    "Churchill disse um dia que na derrota devemos ser humildes e na vitória magnânimos. Donald Trump nunca leu Churchill." Brilhante final.
  • Alberto
    21 jan, 2017 FUNCHAL 11:27
    Quantos, em Portugal, fizeram apelo semelhante...incluindo o actual PR !! Esses, eram "bons"?! Trump ganhou com legitimidade; porquê insultar o Povo americano? Não gosta? naturalize-se americano e vote. Em portugal, o actual Partido que governa PERDEU AS ELEIÇÕES! Não insulta?

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