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Entrevista

A esclerose lateral amiotrófica não pára a irmã Fernanda

16 jan, 2017 - 16:38 • Ângela Roque

Tem 69 anos e uma doença incapacitante, mas a vontade de ajudar os outros tem falado mais alto. Fazer voluntariado "dá saúde", diz a vencedora do Troféu Português do Voluntariado na categoria Carreira.

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Há 16 anos que Fernanda da Conceição de Figueiredo dos Santos ajuda, como voluntária, estudantes estrangeiros, dando explicações de Matemática. Uma dedicação reconhecida em Dezembro com o Troféu Português do Voluntariado.

Antiga professora de Matemática em escolas públicas e privadas, Fernanda Figueiredo dos Santos, religiosa das doroteias, teve de interromper a carreira docente por motivos de saúde. Mas não se deixou vencer pela doença: há 16 anos que dá apoio no estudo a estrangeiros, e não só, no Centro S. Pedro Claver, criado pelos Leigos para o Desenvolvimento no Lumiar, em Lisboa.

Em entrevista à Renascença, fala da sua paixão pela educação e de como o voluntariado, que exige compromisso e profissionalismo, lhe tem permitido continuar a fazer o que gosta e “sair” de si mesma e dos seus problemas.

Em Dezembro, recebeu o Troféu Português do Voluntariado na categoria Carreira. O que significou para si receber este prémio?

O prémio não é o essencial, mas foi como que alguma coisa a dar valor ao meu trabalho, um trabalho gratuito e de voluntariado.

Foi um reconhecimento importante do que aqui tem sido feito, nestes anos?

Depois de ter saído daqui como professora no colégio S. João de Brito, professora no colégio de Santa Doroteia, uma das dificuldades aqui do centro era a falta de voluntários para dar apoio na Matemática, como noutras disciplinas. Tenho a licenciatura em Matemática, então vim para aqui dar apoio na Matemática.

Teve de deixar a profissão por motivos de saúde, a educação era a sua grande paixão. Fazer voluntariado nesta área foi também uma forma de não abandonar a docência?

Exacto. Havia em mim uma inquietação interior, pois perante uma doença que me sobreveio, uma esclerose lateral amiotrófica, eu não posso estar a dar aulas porque tenho uns aparelhos nas pernas e tenho algumas dificuldades em estar com turmas grandes. Aqui estou com grupos pequeninos, escolho os horários com eles, na disponibilidade que eles têm e que eu tenho…

Vem aqui quantas horas por semana? Vem todos os dias?

Normalmente, venho de segunda a sexta-feira. Faço também voluntariado no Alto do Lumiar num centro de terceira idade, numa linha mais de dimensão espiritual. Uma vez dou uma hora e meia, outras vezes estou aqui das duas e meia até às 18h00.

Não cometemos nenhuma inconfidência se dissermos que a irmã Fernanda tem neste momento 70 anos…

Tenho 69…

Desde os 50 e poucos que faz este voluntariado.

Sim, sim, já estou a fazer voluntariado há uma série de anos. É muito útil, sabe, porque me ajuda a sair de mim mesma, dos meus problemas, das minhas dificuldades físicas e de saúde, e obriga-me a lutar para sair de casa, quer faça sol quer faça chuva, porque sei que tenho gente à espera e tenho gente a quem ajudar, e isso para mim é muito importante.

Sente-se um exemplo para quem é mais velho e às vezes sente que não pode dar de si aos outros?

[É possível ser voluntário] Seja em que idade for. É preciso uma certa paciência, uma certa amizade, um certo profissionalismo, uma certa capacidade de relação com os outros, sem dúvida. É necessário ir buscar estratégias diferentes conforme os alunos, mas há uma relação pessoal directa com cada um que é muito importante. O voluntário tem que se comprometer ao mesmo tempo e tem que haver um certo profissionalismo.

É voluntariado, mas tem de ser encarado como se fosse uma profissão?

Uma profissão, porque não é para vir para aqui entreter meninos, é ajudar estes jovens – simplesmente estamos aqui gratuitamente, não temos vencimento. É um trabalho que me dá muita alegria, eu sinto-me feliz aqui, porque estou a dar aquilo que gosto: gosto de dar Matemática, estou a dar Matemática; como educadora, gosto de me dar e de me entregar, portanto é uma maneira de me sentir feliz.

E até como doroteia, sendo esta uma Congregação ligada ao ensino e aos mais frágeis, é também uma forma de estar como irmã, como religiosa, na sua missão?

Exacto. Eu estou numa missão de doroteia, num dar a vida até ao fim e numa linha de gratuidade. Mas eles compensam muito mais do que se me fossem pagar em euros! Isto para mim é uma paixão, sinto-me ao serviço da educação integral da pessoa humana, porque com eles muitas vezes quando tenho só um aluno, às vezes surgem… “eu não fiz isto, porque lá em casa aconteceu isto”, e aquilo leva-nos numa conversa, numa relação pessoal e numa linha de interajuda.

Eu saio daqui muito feliz porque pude ser útil e isto é muito importante. E penso que toda a gente que faz voluntariado deve procurar um tipo de voluntariado que o satisfaça, que o anime e que o alegre, e que lhe dê sentido de vida. Ainda que isto imponha algum cansaço, obriga-nos sempre a andar em frente. E acho que todas as pessoas que têm dificuldades, ou que se reformaram, se não ficassem em casa, se viessem dar uma hora que fosse por semana era óptimo, porque ajudavam, estavam a ser úteis, sentiam-se muito mais potenciadas em seguida.

Este Centro S. Pedro Claver, que pertence aos Leigos para o Desenvolvimento, foi criado em 1994 para apoiar os estudantes africanos que estavam em Portugal e tinham dificuldades. O leque dos que ajudam já se alargou?

Já não são só africanos, nem são só dos PALOP. Outros são daqui, são portugueses e têm dificuldades e não têm hipótese de pagar explicações e nós damos aqui apoios. E há uma outra situação: alunos, por exemplo, aqui do colégio S. João de Brito que necessitem de apoio, pagam uma mensalidade para que essa mensalidade reverta para os Leigos para o Desenvolvimento nas missões lá fora.

Também dão cursos de Português para estrangeiros…

Vêm aqui muitos e de todas as nacionalidades, russos, húngaros, tudo. Tudo o que vem, vem aqui ter, porque os Leigos para o Desenvolvimento remetem tudo para aqui, e há pelo menos duas professoras que dão imensos cursos a gente que quer aprender Português. E alguns vão aprendendo. Recordo-me de uma médica que veio para cá sem saber nada, aprendeu Português, depois fez uns exames e neste momento está integrada na saúde.

Assinalámos este domingo o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado. Também têm apoiado refugiados aqui?

Sim, toda a gente que aparece. Os refugiados necessitam de aprender Português e vêm-se inscrever cá, para facilitar a sua integração no nosso país e o adquirir do trabalho.

Nestes vários anos já ajudaram muitos estudantes. Têm tido muitos voluntários?

Já tivemos mais voluntários do que temos hoje. Ajudámos muitos, muita gente já tirou cursos com os nossos apoios aqui. Tenho até uma aluna que está no Técnico ainda e que se veio oferecer aqui também como voluntária, porque diz que aqui a ajudaram muito e ela agora também queria ajudar os outros. Acho que isto é muito bonito. Outros que vão, tiram o seu curso, vão para Angola, vão para ali, comunicam a uns e a outros, “olha, há ali aquele centro em tal sítio”, eles vão comunicando e vão dizendo uns aos outros. Nós temos ainda muita procura de alunos, e precisávamos de muitos voluntários.

Neste momento dão apoio a quantos alunos?

Cento e tal, 180 e tal alunos.

E são quantos voluntários?

Vinte e qualquer coisa. Precisávamos de muitos mais.

Quer continuar com este trabalho enquanto puder?

Sim, enquanto puder, enquanto me puder deslocar, enquanto puder andar, enquanto tiver capacidades para isso, e a minha congregação me disponibilizar para este trabalho apostólico, porque é um trabalho apostólico, pois com todo o gosto o faço. Dar a vida até ao fim, é o que importa, não é deixar a vida a meio!

Como é que gostaria que as pessoas olhassem para este seu exemplo de dedicação?

Olhe, como uma entrega, como uma paixão e como um agradecimento a Deus pelos dons que me deu. Desde os meus pais, que me deram um curso, às capacidades, à congregação que me despertou para o ensino integral da pessoa humana, que tudo isto é superior àquilo que nós damos. E a doença não é um obstáculo: quase me atrevo a dizer que este trabalho de voluntariado até dá saúde, na medida em que saímos de nós próprios, em que nos descentramos, estamos muito mais libertos e se estamos mais libertos, automaticamente estamos mais arejados por dentro e por fora, esquecemo-nos da doença. Temos mais saúde, somos mais felizes.

Esta entrevista foi transmitida esta segunda-feira, às 12h00, no espaço dedicado às notícias de âmbito social e da vida da Igreja

Comentários
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  • Custodia Neves
    19 jan, 2017 Macau 02:42
    Querida Irmã Fernanda. Tão lindo ter tido oportunidade de saber de si através desta entrevista no facebook. Melhor ainda saber faceta disponibilidade para os outros apesar da doença. Gostaria de vê- la em Portugal quando aí for. Também eu já estou reformada, embora ainda a trabalhar em Macau. Mas em breve penso regressar, por motivos de saúde e porque chegou a hora de voltar à nossa terra. Lindo o seu trabalho em prol dos outros. Fiquei muito sensibilizada. Depois procurarei junto de si saber mais, quem sabe posso ajudar! Um abraço grande, com muitas saudades e amizade.
  • Antonio Santos
    17 jan, 2017 Viseu 10:47
    Como o mundo seria diferente com mais pessoas como tu. obrigado irmã Fernanda,

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