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A Índia vista por um padre-fotógrafo. A beleza, a nobreza e a dignidade não escolhem castas

26 dez, 2016 - 12:51 • Ângela Roque

Paulo Teia, sacerdote jesuíta, é fotógrafo e lançou um livro sobre a sua experiência junto dos mais pobres e marginalizados da Índia.

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Paulo Teia é padre e fotógrafo. Lançou, recentemente, um livro sobre a sua experiência junto dos mais pobres e marginalizados da Índia.

O sacerdote jesuíta, para quem a fotografia é “uma linguagem autêntica” e o “encontro de dois olhares”, diz que os rostos que captou (a maioria nunca tinha tirado uma foto) mostram que a “beleza” e a “dignidade” existem em todos os seres humanos, mesmo nos que vivem em contextos de extrema miséria. Os retratados são gente que o impressionou pela sua “força” e pela atitude de “nobreza”.

“Namasté - A luz de Deus em mim saúda a luz de Deus em ti” é o título deste livro, que junta as fotos e as crónicas que, durante a sua viagem, foi partilhando com os amigos no Facebook. Diz que foi deles o incentivo para lançar esta obra e espera que ela ajude as pessoas a ter outro olhar sobre quem as rodeia.

A Renascença entrevistou Paulo Teia antes da sua partida para Moçambique, onde é pároco da catedral de Tete, outro local desfavorecido onde foi de novo ao encontro de quem mais precisa. Porque “não há outra forma” de ser padre.

O que significa o termo “namasté” que lemos no título do seu livro?

É o cumprimento usual de qualquer pessoa que se encontra com outra pessoa e faz um gesto, colocando as mãos no peito, juntando as mãos, e diz esta palavra como reverência. Pode ter o significado "bom dia, como estás?", mas, como é uma palavra que tem uma herança milenar, tem muitas referências religiosas. Uma delas é esta: "A luz de Deus em mim, saúda a luz de Deus em ti". Pareceu-me a mais adequada para o título deste livro.

O que é que o levou a lançar este livro?

Inicialmente, este livro não foi pensado como um projecto. Tive uma oportunidade, em 2014, de fazer um ano sabático na minha vida de padre e, durante esse ano, aprofundei a linguagem da fotografia, que é uma linguagem muito particular e que já vinha desenvolvendo há muitos anos.

A fotografia é uma das sua paixões...

É uma das minhas paixões. Não como "hobby", mas como uma linguagem. Durante esse ano sabático, aprofundei o estudo da fotografia, em Madrid, fiz alguns cursos e, no final, pedi ao meu Superior que me desse a oportunidade de fazer uma peregrinação pela Índia e pelo Cambodja, para desenvolver e pôr em prática esta linguagem e, sobretudo, pô-la ao serviço dos mais pobres, que iria encontrar nesses dois países.

A possibilidade de ir ao Cambodja foi-me facilitada pelo facto de estar lá um jesuíta, que é bispo, e que me convidou. Na Índia, tinha apenas o contacto de alguns companheiros jesuítas que trabalhavam directamente com os "dalits" (os ‘intocáveis’) e os "adivasi" (população aborígene), que são os dois grupos sociais mais marginalizados no país.

Então, o livro mostra-nos imagens das pessoas com quem foi contactando na viagem...

Exactamente. A viagem, de início, não estava pensada como um projecto para a elaboração de um livro. A viagem era um encontro, uma peregrinação, uma experiência pessoal de ida ao encontro das pessoas mais pobres nestes dois países.

Muitas destas pessoas nunca tinha sido fotografadas na vida…

Nunca. Algumas tinham sido fotografadas, mas nunca tinham visto a fotografia.

Como reagiram?

Bom, isso daria um outro livro... Mas sublinho a alegria destas pessoas reconhecerem-se na beleza e na força da luz que irradia do seu rosto, na dignidade das suas pessoas, mesmo que vivam num contexto de uma adversidade tremenda.

A pobreza leva as pessoas a não terem de si uma imagem de beleza, é isso?

Pelo menos, não têm esse eco da sua imagem. Durante a viagem, decidi partilhá-la com um grupo de amigos, através de uma rede social. Ia colocando um pequeno texto sobre a experiência diária, dos encontros que ia tendo, e, ao mesmo tempo, punha cinco fotografias para poder acompanhar e ilustrar a pequenina crónica. O livro surge mais tarde, em resultado da insistência desses amigos no Facebook, que, no final da viagem, me pediram para publicar em livro as imagens e as crónicas. Acharam que fazia sentido, pelas experiências humanas ali vividas. E foi isso que durante um ano e meio estive a fazer.

Como organizou o livro?

O livro está dividido em duas partes,. A primeira integra os retratos dos "dalits" e dos "adivasi", esses grupos que eu fotografei, essas pessoas que eu encontrei e a quem ofereci os retratos. A segunda parte do livro é a crónica na sua versão integral, com outras fotografias que não coloquei no Facebook.

Gostava que este livro cumprisse a missão que penso que pode ter, de ser um convite a que as pessoas acolham o rosto destas pessoas que vão ver no livro e que este estímulo as reenvie para os rostos concretos, que podem estar muito perto do local de vida, do local de trabalho. Que sejamos mais compassivos e mais próximos à fragilidade do outro. Teremos, certamente, uma experiência diferente, também da nossa experiência de Deus e de sermos cristãos.

Já sublinhou que este era um projecto pessoal. Sentiu que, como padre, tinha que fazer esta experiência, este encontro com os mais pobres dos pobres? Faz falta este “banho de realidade”?

O padre não pode viver sem esse encontro. O padre fez um compromisso com Aquele que se comprometeu com eles e, portanto, não pode deixar de fazer essa experiência de ir ao encontro dessas pessoas, não só pela exigência do serviço e da expressão de amor que é a expressão de Jesus, mas, ao mesmo tempo, porque o padre precisa de estar em contacto com a fragilidade para poder também conviver com a sua própria fragilidade. Não há outro caminho para podermos seguir o Senhor Jesus senão vivermos a partir de uma fragilidade entregue e confiada.

A verdade é que isso nem sempre acontece, por variadas razões. Devia fazer parte do currículo e da formação dos sacerdotes este contacto mais próximo?

Eu penso que não há alternativa. Qualquer alternativa tem o risco de se perder identidade. Um sacerdote é um homem profundamente identificado com todo o homem e com toda a mulher, mas o seu coração tem de estar preferencialmente do lado dos mais frágeis.

É certo que aqui também há pobreza e há realidades de periferia, como diz o Papa Francisco, mas é diferente ir estes locais?

É diferente. Na Índia, lidamos com uma realidade que é extremamente agressiva. O ser humano vive no limiar daquilo que é possível, no limiar daquilo que a vida consegue dar para que possa haver vida humana. Portanto, há uma agressividade muito grande, mas, ao mesmo tempo, há toda esta força que as pessoas mostram ao reagir a essa agressividade. Claro que a Índia, no tempo em que eu estive a fazer esta viagem, tinha acabado de chegar a Marte. Portanto, temos uma Índia onde há a extrema riqueza que convive com a extrema pobreza.

É padre e fotógrafo, não é apenas um padre que tem a fotografia como "hobby". Isto faz mesmo parte da sua vida. Porque é que a imagem o atrai tanto? Por ser um meio poderoso de comunicar?

Sobretudo, a fotografia é uma forma bastante autêntica e sincera de podermos dizer aquilo que por palavras dificilmente conseguiríamos dizer. É o encontro de dois olhares. O disparar da máquina fotográfica apenas regista essa relação efémera , mas, ao mesmo tempo, intensa. E, quando há uma experiência de verdade e de empatia profunda, o que fica plasmado na fotografia é o resultado desse encontro. É uma verdade que fica ali impressa e que tem o poder de dizer "eu amo-te, aceito-te, eu reconheço em ti a luz que também há em mim".

Ao divulgar a realidade destas pessoas, faz também, de algum modo, um exercício de jornalismo. Este é também um livro documental?

Tornou-se documental. Não era exactamente essa a ideia, na origem do projecto, mas, no final, obviamente que este é um documento que ajuda, sobretudo, a perceber que o ser humano está muito para além daquilo que são as diferenças que nós impomos através dos nossos compromissos sociais. Ao olharmos para a capa do livro, não sabemos se é uma "dalit" se é uma "brâmane"’. Se eu dissesse que tinha fotografado a casta mais alta da Índia, diriam "bom, é realmente uma brâmane, realmente nobre". Quando olhamos para os rostos destas pessoas, reconhecemos a dignidade do ser humano, que está para além de todas as barreiras, máscaras e diferenças que nós impomos.

Está quase a partir, de regresso a Moçambique, onde é pároco, na catedral de Tête. Como tem corrido essa missão?

Depois desta viagem pela índia e pelo Cambodja, no final do meu ano sabático, surgiu no meu coração este desejo de poder continuar esta experiência desta peregrinação de uma forma mais permanente. E pedi ao provincial para poder dar alguns anos da minha vida ao serviço destas pessoas que vivem nesta experiência limite da vida. Foi-me proposto Moçambique. Nunca tinha pensado ser missionário, mas senti que era o momento e que Deus me pedia isso.

Cá, em Portugal, foi pároco no Pragal, em Almada. É uma realidade completamente diferente...

É uma realidade social também muito desafiadora, até agressiva, nalgum sentido, porque é um bairro social na cidade de Almada, onde há pessoas maravilhosas que passam por muitas dificuldades. Vivi lá 11 anos, procurei estar ao serviço das crianças e da juventude, das famílias do bairro. Ajudei a abrir um centro juvenil para ocupar o tempo livre das crianças depois das aulas, onde elas pudessem sentir-se acolhidas, tivessem uma experiência de segurança e também de oportunidade de poderem desenvolver outras formas de estar na vida do bairro.

Depois desses 11 anos, esta experiência do ano sabático, que me ajudou a fazer uma releitura e reposicionar-me diante da minha vocação e diante da experiência da vontade de Deus, levou-me a esta nova "praia". Tete é um grande desafio, mas uma experiência que eu sinto como uma grande oportunidade que Deus me dá de continuar a minha caminhada.

Pretende ficar por algum tempo?

Pretendo. Enquanto Deus quiser ficarei. Há muitas necessidades. Abri uma escolinha para 300 crianças, na catedral, usando as salas da catequese que estavam ali um bocado desaproveitadas durante a semana. E, depois, são todos os desafios diários de encontro com as pessoas que vivem nesta mesma experiência de sobrevivência que reconheço ter encontrado na Índia.

A entrevista ao padre Paulo Teia foi transmitida no espaço informativo das 12h da Renascença, esta segunda-feira, dia em que o destaque vai para os temas sociais e relacionados com a vida da Igreja.

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  • Alda Fidalgo
    28 dez, 2016 Torres Vedras 20:35
    Fabuloso!

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