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Crónicas da América
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Foi bonita a festa, pá!, mas as dificuldades estão ao virar da esquina

12 dez, 2016 - 23:32 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Guterres reafirmou o seu programa perante Assembleia Geral da ONU, considerou-se um homem com sorte e espera contribuir para melhorar o mundo, além de reformar as Nações Unidas.

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Foi bonita a festa, pá! Talvez se possa resumir assim, na célebre frase musicada por Chico Buarque da Holanda, aquilo que se passou esta segunda-feira nas Nações Unidas.

O ambiente que se viveu no Palácio de Vidro, em Nova Iorque, era de dia especial, de cerimonial rigoroso, protocolo aprumado, cortesia generalizada e sorrisos nos rostos.

Mesmo os jornalistas portugueses eram felicitados pelos seus colegas de outras nacionalidades como se a consagração de António Guterres como secretário-geral fosse no fundo uma proeza colectiva do país, um orgulho para todos os seus concidadãos.

Não é possível naturalmente afirmar se esse sentimento de orgulho está generalizado no país, mas a avaliar pelas expressões de jubilo do presidente da República e do primeiro-ministro durante a cerimónia de juramento da Carta da ONU e tendo a conta a sua representatividade bem se poderá arriscar que ele existe e está disseminado.

Há, aliás, um plano visual, televisivo, fotográfico, da cerimónia desta segunda-feira que transmite essa impressão: enquanto Guterres jurava a Carta da ONU, Marcelo e Costa perfilavam-se no palco em segundo plano com expressões faciais de evidente orgulho. Era como se o país, ali representado pelos seus mais altos responsáveis, se revisse deleitado no seu filho que chegou onde mais ninguém chegou.

A mudança de secretário-geral é um ritual por que passam as Nações Unidas todos os dez anos, já que a regra tem sido a reeleição dos secretários-gerais no final do primeiro mandato. Mas nem por isso deixa de ser um acontecimento especial, obviamente. E a expectativa que António Guterres está a suscitar atesta o crédito com que chegou ao cargo.

Nesta tomada de posse, Guterres não terá defraudado tais expectativas e isso percebeu-se quando, no discurso que proferiu, mencionou as reformas de que a organização carece e para as quais traçou metas ambiciosas. Foram os passos da intervenção que tiveram mais aplausos, mostrando que na Assembleia Geral e entre os funcionários que assistiam ao discurso há consciência de que chegou o momento de abanar uma estrutura algo anquilosada.

Estão neste caso as questões da paridade de género, da responsabilização dos quadros da ONU que agirem a revelia da lei nas suas missões internacionais, da aceleração que necessitam os processos de nomeação de pessoal, entre outros.

Quanto ao primeiro, Guterres foi ambicioso e comprometeu-se a atingir a paridade de género dentro de cinco anos, quer nas estruturas, quer nas missões internacionais. Se nos lembrarmos que este objectivo foi definido para o ano 2000 e está muito longe do sucesso percebemos o que espera o novo líder. As missões internacionais ainda hoje são comandadas por 84% de homens.

Quanto à responsabilização de quadros, prometeu ser implacável com todos os que violarem a lei, mas alertou para a necessidade de agir sobretudo para prevenir casos funestos como os de algumas violações sexuais praticadas por capacetes azuis.

E quanto ao excesso de burocracia citou um número sintomático: entre a escolha de um quadro e a sua colocação no terreno medeiam normalmente nove meses. Focar mais nos resultados e menos nos processos foi a sua promessa.

Apesar de ambiciosos, estes são os objectivos que dependem sobretudo do secretário-geral e da sua capacidade de liderança e determinação em impor decisões internamente. Os outros, aqueles que afectam mais directamente o mundo e dependem de inúmeros factores e pouco do secretário-geral, esses serão seguramente muito mais difíceis de atingir e vão ser nos próximos cinco anos factor de frustração e desencanto.

Referimo-nos naturalmente a objectivos como a manutenção da paz e o desenvolvimento sustentável, que Guterres sublinhou como decisivos no seu discurso. Aliás, desde que se candidatou que traçou até algo mais ambicioso: prevenir conflitos mais do que tentar acabar com eles. Num mundo onde o próprio Guterres reconhece que as guerras atingiram um grau de sofrimento sobre as populações que torna tudo mais cruel e em que há uma “enorme dificuldade” em terminar os conflitos.

Em declarações posteriores aos jornalistas, invocou os livros de história que leu na escola e nos quais as guerras tinham vencedores e vencidos, para dizer que hoje já não é assim e nas guerras todos perdem. Mas é neste mundo em que todos perdem que Guterres vai ter de se mover. Ninguém mais do que ele terá consciência disso, já que os dez anos como Alto Comissário para os Refugiados lhe trouxeram a experiência mais dolorosa neste aspecto.

Um mundo em permanente mudança e não necessariamente para melhor. Aliás, Guterres começou a sua intervenção por invocar o período em que tomou posse como primeiro-ministro, em 1995, uma época em que a guerra fria tinha acabado e até a História iria acabar, como prognosticou Francis Fukuyama. Tudo parecia então possível em termos de paz e desenvolvimento. Vinte anos depois, o horizonte está coberto de nuvens negras e é nessa turbulência que o seu mandato se vai desenrolar.

A última mudança, de resto, ainda está para chegar e vai colidir com os objectivos de Guterres. A futura administração americana será previsivelmente um obstáculo de monta a concretização das metas da ONU a começar pelo Acordo de Paris sobre alterações climáticas. Mas não só.

Interrogado pela Renascença sobre que dificuldades antevê no relacionamento com a futura administração Trump, Guterres disse apostar num "discurso muito aberto e muito franco" convencido que os interesses dos Estados Unidos "podem ser compatibilizados com os interesses globais que as Nações Unidas se propõem defender". É com "espírito aberto e procurando fazer tudo para encontrar consensos" que Guterres deposita esperanças para fazer avançar o controlo das mudanças climáticas.

Mas sublinhou que neste aspecto não contam apenas as posições dos governos, mas também as da sociedade civil, nomeadamente as empresas. É como se dissesse que deposita a sua esperança em que a sociedade americana se oponha à rejeição do acordo do clima que Trump se prepara para não cumprir.

Ainda nas declarações aos jornalistas surgiu uma pergunta curiosa feita por uma repórter chinesa sobre as expectativas quanto à cooperação de Pequim com a sua equipa. Guterres salientou o compromisso chinês com o multilateralismo, citou mesmo algumas iniciativas de Pequim nesse âmbito como o banco asiático para o desenvolvimento e mostrou-se muito agradado com a postura chinesa.

Não o disse nem poderia dizê-lo, mas talvez estivesse a pensar na hipótese de a China vir a preencher o vazio que se suspeita que os EUA abrirão na cena internacional se optarem pelo unilateralismo.

Para alguém como Guterres, um eventual maior empenhamento chinês não salvaria certamente o mundo, mas poderia talvez salvar-lhe o mandato. Salvar o mundo era algo em que o jovem Guterres pensava quando andava na escola com Marcelo Rebelo de Sousa, segundo revelou o Presidente. Hoje, embora se considere um homem de sorte, perdeu essas ilusões utópicas, mas parece pronto para enfrentar as adversidades que o mundo lhe puser à frente.

Guterres promete mudar a ONU, mas não cede no combate "imparável" às alterações climáticas
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  • F.M.
    13 dez, 2016 gaia 15:16
    NÃO POSSO DEIXAR DE DAR OS MEUS PARABENS AO SNR.ENGº ANTÓNIO GUTERRES,POR TER SIDO NOMEADO PARA UM DOS ALTOS CARGOS NO MUNDO.HOMEM HONRADO E COM ESPÍRITO ALTRUISTA INEGUALÁVEL.,COMO PORTUGUÊS SINTO GRANDE ORGULHO POR ESTA NOMEAÇÃO.BOA SORTE E QUE A SUA COMPETÊNCIA MAIS UMA VEZ,CONTRIBUA PARA A RESOLUÇÃO DE MUITOS PROBLEMAS DESTE MUNDO GLOBAL.EMBORA NÃO PERTENÇA ÀS ESQUERDAS ADMIRO-O COMO ESTADISTA.RESPEITOSOS CUMPRIMENTOS.
  • Manuel
    13 dez, 2016 Lisboa 14:58
    Lembras-te quando na Mocidade Portuguesa eras Comandante de Castelo? Espero que essa experiência te ajude agora nesta missão.

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