12 dez, 2016 - 07:58 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
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Os sinais dados até agora pelo novo Presidente dos Estados Unidos e pelos homens que escolheu para a sua equipa permitem antever uma atitude de hostilidade em relação aos objectivos primordiais das Nações Unidas. Vejamos os três mais importantes.
Questões climáticas
Graças aos esforços da ONU, foi possível chegar este ano a um grande consenso internacional para limitar as emissões de CO2 consubstanciado no Acordo de Paris, que obteve a adesão de quase todos os países do mundo, incluindo dos grandes poluidores. A administração Obama desempenhou um papel crucial na obtenção desse sucesso.
Mas é conhecido o desprezo que o futuro Presidente norte-americano tem pelo problema do aquecimento global e as medidas que anunciou para os primeiros 100 dias de governo incluem acabar com as regulamentações na extracção de gás de xisto, de petróleo, de gás natural e o regresso em força ao carvão como fonte energética.
Legalmente, os EUA estão vinculados ao Acordo de Paris nos próximos quatro anos, não podendo dele retirar-se. Mas não é necessário abandoná-lo formalmente, basta não o cumprir na prática para colocar o país fora das metas nele consagradas. E tudo indica que é isso que vai suceder, até porque o próximo responsável pelo Ambiente na nova administração é um negacionista das alterações climáticas e um homem ligado à indústria petrolífera.
Em coerência com esta política, os EUA vão também certamente deixar de financiar o programa da ONU para as alterações climáticas ou, pelo menos, retirar muito do dinheiro com que para ele têm contribuído, criando sérios problemas de viabilidade a esta área crucial de intervenção.
Guterres vai ter aqui uma das suas maiores dores de cabeça e vai ter de dedicar a esta questão muito do seu tempo. Algo que não estaria previsto uma vez que com o Acordo de Paris assinado o assunto teria passado para segundo plano, limitando-se a ONU a fiscalizar a sua aplicação prática.
Com muito menos dinheiro e com os EUA a bater em retirada, aquele que foi o maior sucesso multilateral deste ano arrisca-se a virar letra morta. Sobretudo, se as outras potências mais poluidoras, como a Índia e a China, não estiverem disponíveis para cumprir a sua parte do acordo face ao incumprimento americano.
Unilateralismo americano
Outra consequência previsível da eleição de Trump para a ONU é o regresso a um ambiente de crispação e de divisão idêntico ao que se viveu no início do século quando a administração Bush decidiu invadir o Iraque.
O desamor dos futuros responsáveis de Washington pelo multilateralismo e pelas Nações Unidas permite antever tempos de fractura constante entre as posições dos EUA e dos restantes países, incluindo aqui muitos dos aliados ocidentais.
Ficaram célebres na ONU as disputas entre o então embaixador americano, John Bolton, e os seus homólogos de outros países. Bolton não deixou saudades no Palácio de Vidro, sobretudo porque a sua atitude de arrogância e de conflitualidade foi um obstáculo a qualquer entendimento político.
Embora a escolha de Nikki Alley, a governadora da Carolina do Sul, para embaixadora na ONU tenha sido vista com alívio justamente porque tinham corrido rumores de que Bolton poderia regressar, a verdade é que não é a embaixadora que define a política externa do país.
E neste aspecto, a previsível indicação de Rex Tillerson para secretário de Estado – um gestor da ExxonMobil cuja vida profissional esteve sempre ligada ao petróleo e a negócios com a Rússia – a confirmar-se, não apazigua os receios de uma política externa unilateralista e preocupada essencialmente em facilitar negócios, pouco sensível a questões climáticas e de direitos humanos.
Acresce que John Bolton é um dos nomes falados para secretário de Estado adjunto, o que lhe daria ainda mais poder do que tinha quando estava na ONU.
Um dos primeiros testes à nova diplomacia americana será a questão das sanções à Rússia impostas na sequência da invasão da Crimeia e do leste da Ucrânia. A crer no desejo de Trump de ter uma boa relação com a Rússia e na amizade do futuro secretário de Estado com Vladimir Putin, que o agraciou com a Medalha da Amizade do Kremlin, tudo indica que os EUA vão propor o fim das sanções a Moscovo.
Se este objectivo pode abrir um novo capítulo na relação americano-russa, distendendo as tensões dos últimos anos e abrindo caminho a entendimentos noutros campos, arrisca-se igualmente a criar divisões com outros países que defendem a continuidade das sanções. Veremos como se posicionam a China, o Reino Unido e a França nesta matéria no seio do Conselho de Segurança.
Mas Guterres terá também aqui motivos de preocupação. Se o ambiente se crispar como em 2003, devido a uma política unilateralista, qualquer acordo em qualquer área fica mais difícil; se o ambiente se distender devido a uma aproximação Washington-Moscovo será seguramente à custa da soberania da Ucrânia e de uma clara violação da Carta das Nações Unidas.
Um problema que se colocará igualmente se os EUA estenderem esse entendimento à guerra civil na Síria, dando carta branca a Moscovo para continuar a esmagar as facções moderadas que combatem Assad sob o pretexto de combaterem o ISIS (Estado Islâmico).
A consolidação do poder de Assad poderá pôr termo à guerra civil no país, mas mais uma vez sacrificando os direitos humanos e todos os valores pelos quais a ONU se tem batido no terreno.
Falta de financiamento
Uma terceira consequência preocupante da eleição de Trump para Guterres será certamente o subfinanciamento a que a organização vai ser sujeita. Uma administração pouco sensível a questões humanitárias e que poderá entrar numa deriva isolacionista não vai estar disponível para pagar a quota habitual do país, nem muito menos financiar operações de paz ou de construção de estados.
O próprio Trump o enunciou durante a campanha eleitoral, criticando o envolvimento americano em operações de manutenção da paz e “nation building”. Em qualquer lugar do mundo onde o futuro Presidente norte-americano não vislumbre qualquer interesse americano, a ONU não deverá contar com fundos de Washington.
Uma redução significativa de financiamento por parte dos EUA pode colocar as Nações Unidas em situação de asfixia, obrigando Guterres a consumir muitas das suas energias na procura de soluções alternativas. Neste aspecto, porém, há quem veja vantagens numa certa austeridade imposta de fora, na medida em que poderá forçar reformas internas aguardadas há anos.
E aqui o novo secretário-geral tem uma oportunidade de brilhar, conseguindo ganhos de eficiência e acabando com duplicações de funções que prevalecem na maior máquina burocrática do mundo.
Se Guterres conseguir maior eficácia no terreno com menor burocracia na rectaguarda, à semelhança no que conseguiu no Alto Comissariado para os Refugiados nos dez anos em que o dirigiu, ganha margem de manobra e força política para outras batalhas, incluindo a do financiamento.
Em suma, estes serão à partida os maiores obstáculos que se adivinham para o português que vai exercer aquilo a que alguém já chamou “o pior emprego do mundo”. Num mundo em convulsão, mas sobretudo num mundo com uma liderança americana imprevisível e à partida hostil aos princípios básicos de actuação da ONU.
Em política não há vazios. Quando se abrem, surge sempre alguém para os preencher. Com o previsível recuo dos EUA em muitas frentes multilaterais – do clima às operações de paz, passando pelo financiamento da organização – a China parece ser a potência mais bem colocada para vir a preencher esse vazio. Estará interessada em fazê-lo? Encontrará Guterres na China um interlocutor privilegiado, uma liderança empenhada em avançar com a agenda da ONU lá onde os Estados Unidos vão certamente falhar?
A concretizar-se, essa hipótese constituiria uma substancial mudança geoestratégica e, pelo caminho, salvaria o mandato de António Guterres.