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Referendo em Itália. “Portugal enfrenta risco superior ao do Brexit”

04 dez, 2016 - 14:31 • José Bastos

“Sistema financeiro italiano é débil”, diz Daniel Bessa. “Podemos ter dificuldades”, alerta Álvaro Almeida e Aguiar-Conraria sugere que intervenção do Banco Central “será balão de oxigénio a curto prazo”.

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O BCE tem um plano de emergência para intervir no mercado da dívida a partir de amanhã, segunda-feira 5 de Dezembro se o “não” vencer o referendo sobre alterações constitucionais em Itália, garante a Reuters.

No caso de os juros dispararem, Frankfurt faria uma intervenção extraordinária, ao abrigo do programa de compra de activos em vigor, para suportar a dívida italiana. A volatilidade das bolsas e dos mercados da dívida vai ser testada nas próximas horas.

Os eleitores da quarta economia do euro estão a votar hoje num referendo constitucional com os analistas a recear o triunfo do “não”. A última sondagem conhecida é de 17 de Novembro (de então para cá a lei proíbe divulgação) e dá a vitória ao “não” com 54,2% face a 45,8% do “sim”, mas com 17% de indecisos.

O “não” pode precipitar a queda do governo e o pânico financeiro nos bancos italianos e, por contágio, na zona euro.

E Portugal? Portugal, como sempre, está na linha da frente das ‘turbulências do ano’- Grécia em Fevereiro, Brexit em Junho, Trump em Novembro. Os juros da dívida a 10 anos estão mais de 1% acima do fecho de 2015.

Luís Aguiar-Conraria: “Rejeição pode ser pretexto para ‘bazucada’ do BCE”

“As consequências no médio prazo – não mais de um ano de um ano – podem, politicamente, ser um balão de oxigénio para ‘a geringonça’ em Portugal”, defende Luís Aguiar Conraria.

“Desde o fim de 2015 até agora temos visto as taxas de juro da dívida portuguesa a subir e o spread sempre a aumentar e uma instabilidade destas na zona euro pode ser o pretexto de que o BCE precisa para largar mais umas ‘bazucadas’ de dinheiro”, diz o economista.

“É sempre aquele discurso de Mario Draghi 'eu farei tudo o que for necessário para garantir a estabilidade do euro' e neste caso pode passar por evitar que Portugal seja atirado borda fora do euro”, admite o professor de economia da Universidade do Minho.

Álvaro Santos Almeida: “Há consequências políticas imprevisíveis”

Já Álvaro Santos Almeida identifica um problema de fundo para a acção do Banco Central Europeu na profunda debilidade do sector bancário italiano, mas não só. Também a recapitalização da Caixa Geral de Depósitos pode sofrer efeitos colaterais.

”Há uma questão que pode dificultar essa intervenção do BCE. Sabemos que Mario Draghi prometeu fazer tudo para salvar o euro. Significa que se as taxas de juro da dívida italiana e da dívida portuguesa dispararem o BCE vai emitir a moeda que for necessária para comprar essa dívida”, afirma Álvaro Santos Almeida.

“No entanto, há um problema adicional: uma coisa é essa intervenção do BCE para evitar a subida das taxas de juro da dívida pública outra coisa é capitalização da banca e em particular dos bancos italianos que precisam de capital. Aí já o BCE não pode intervir directamente”, alerta o antigo quadro superior do FMI em Washington.

“Em linguagem corrente: podemos ter uma falência do terceiro maior banco italiano e se essa falência foi tratada de acordo com as regras em vigor na zona euro significa que vai haver um conjunto de obrigacionistas a perder dinheiro e vai haver um outro conjunto de obrigacionistas a ver que se pode perder dinheiro 'a sério' em dívida de bancos”, faz notar.

“Não vejo como, neste contexto, por exemplo, a Caixa Geral de Depósitos vai conseguir emitir mil milhões de euros de dívida subordinada como é suposto de acordo com o plano de recapitalização aprovado. Portanto, nós vamos ter a CGD e todos os bancos portugueses - e todos os bancos italianos - sem capacidade de se financiarem nos mercados”, observa Álvaro Santos Almeida.

“A não ser que o BCE dê o passo decisivo que é comprar dívida dos bancos, já não de curto prazo, mas obrigações e, nesse caso o BCE passa a ser o detentor de todo o sistema financeiro português e italiano com consequências que seriam imprevisíveis do ponto de vista político”, alerta o professor de economia da Universidade do Porto.

Por seu turno, Luís Aguiar-Conraria alerta para as consequências de se invadir território não mapeado nas políticas monetárias em particular nos novos instrumentos usados para estimular a economia e novos empréstimos.

“Boa parte do que está em causa é o quantitative easing (QE) – jargão para uma acção de política monetária não convencional a empurrar as políticas monetárias para fronteiras desconhecidas e o que se joga aqui - o que Álvaro Almeida disse - parece ser uma solução e a curto prazo razoável, se calhar a única saída no curto prazo, com consequências no longo prazo que não podemos antever em toda a sua complexidade”, observa o economista.

“As coisas que fazemos sem saber muito bem o que estamos a fazer estão a crescer exponencialmente”, alerta Luís Aguiar-Conraria.

Daniel Bessa: “Não sossega a ideia do BCE a salvar bancos”

Já o antigo ministro da economia Daniel Bessa mostra reservas face à possibilidade de, no limite, o Banco Central Europeu se responsabilizar pelos casos de maior debilidade no sistema financeiro europeu. Daniel Bessa concorda com as limitações elencadas por Álvaro Santos Almeida ao raio de acção do BCE e dá como exemplo a Caixa Geral de Depósitos.

“Não me sossega a ideia do BCE salvar os bancos”, afirma. “No caso da Caixa Geral de Depósitos o BCE não é ‘o privado’. O que a Comissão Europeia exigiu é que a CGD coloque mil milhões de euros em mãos privadas, após o que o Estado estará, então, autorizado a pôr os seus 2 mil e 700 milhões”.

“A minha principal preocupação em relação a esses mil milhões a colocar em privados não sejam tomados pelos outros bancos portugueses. Seria muito mau sinal. Se os privados que vão acudir à CGD se chamam BPI, BCP e Santander Totta então estamos na mesma”, alerta Daniel Bessa.

“Como não sou um optimista patológico não ficaria nada satisfeito. Portanto não espero que sejam esses e muito menos o BCE que, acho, está proibido de fazer essa injecção de capital de mil milhões na CGD. Não sei como a CGD resolve esse problema”, indica o antigo ministro da economia.

Daniel Bessa defende que o referendo deste domingo implica para Portugal um cenário de risco imediato superior ao “não” do Reino Unido à Europa ou da vitória de Trump que agitou o mercado de obrigações à escala global.

“Estava aqui a pensar que, há uns anos atrás, cuidávamos da nossa paróquia, do nosso município, depois, quando muito, das questões nacionais - o máximo onde chegávamos e agora estamos aqui a conversar, para começar, sobre o que pode acontecer em Itália, depois dos Estados Unidos e em Inglaterra”, diz Daniel Bessa.

“Agora o referendo de Itália coloca maiores riscos imediatos para Portugal que o Brexit ou a vitória de Donald Trump. Porquê? Porque temos ali uma situação em que há um governo que pode cair e há um sistema financeiro com fragilidades conhecidas”, nota o economista.

“Portanto, sim, Portugal pode ser afectado. Itália é uma situação muito complicada, com riscos muito elevados e, evidentemente, os elos mais fracos estão sempre mais vulneráveis às consequências”, diz.

“Posso dizer que na minha vida pessoal tomei algumas disposições a pensar no resultado deste referendo que não tomei no Brexit ou na vitória de Trump que, de resto, não antecipei”, admite Daniel Bessa.

“No caso da vitória de Trump o elo mais fraco é o México, antes de se saber o que vai acontecer á economia mundial, á China. Neste caso de Itália, internamente há um elo mais fraco que é o sistema financeiro, depois está realmente em causa o futuro do euro - já não é o Reino Unido é a Itália país fundador - e pelo caminho seguramente que o elo mais fraco é Portugal”, alerta Daniel Bessa.

No referendo deste domingo em Itália o que está em causa é a reforma da Constituição, mas o primeiro-ministro italiano condicionou o seu futuro ao dizer que se demite caso não ganhe. Uma vitória, disse, “torna a Itália o mais forte da Europa”. Por agora a possibilidade não preocupa o resto do continente, mas sim o que pode acontecer se Renzi perder. Não poderá Renzi evitar a demissão em caso de derrota?

“O instinto de sobrevivência dos povos não é algo que dê como demonstrado. No limite os povos quase se suicidam. Não estarão conscientes disso, mas dão os passos que conduzem a esse desfecho. Quanto ao sr. Renzi não sei se está preparado para dar o dito pelo não dito”, diz Daniel Bessa.

Álvaro Santos Almeida: “Recapitalização do Monti dei Paschi condiciona”

Alguns analistas sugerem que mesmo com uma demissão de Renzi, o presidente Sergio Matarella, nomeará um governo de gestão e a antecipação das eleições poderá não se colocar de imediato, admite, por seu turno, Álvaro Santos Almeida.

“A consequência directa se ganhar o "sim" é "apenas" uma alteração constitucional, uma mudança da distribuição de poderes em Itália, com maior concentração na Câmara de Deputados e por consequência no partido que a lidera, porque com a nova lei eleitoral haverá sempre um partido maioritário, acabando por se concentrar num só líder. Num país como Itália pode ser preocupante”.

“Em rigor, nas consequências imediatas, uma vitória do "sim" seria até mais preocupante. O problema aqui é a série de consequências indirectas que podem ser mais graves do que no caso anterior”, alerta o antigo quadro superior do FMI, em Washington.

“As consequências indirectas têm a ver com dois aspectos: se o 'não' ganhar há a admissão - de acordo com Matteo Renzi, o grande defensor do 'sim' que o sistema actual não permite fazer reformas estruturais e é a causa do atraso económico dos últimos 15 anos em Itália”.

“Portanto, se o 'não' ganhar admite-se implicitamente que todos esses problemas vão continuar? Essa é uma interpretação possível. Se os económicos vão continuar não se eliminam os problemas do sector financeiro”, diz Álvaro Santos Almeida.

“Por isso, por exemplo, há quem defenda que, independentemente das consequências políticas, se o 'não' ganhar a recapitalização do terceiro maior banco italiano, o Monti dei Paschi di Siena e se essa recapitalização estiver em causa então é todo o sistema financeiro italiano que está em causa. Esse é o primeiro risco”, indica.

“O segundo é político. Se o 'não' ganhar aparentemente Matteo Renzi pode demitir-se e pode haver eleições antecipadas. Pode não ser uma consequência directa, pode haver uma alternativa que não passe por eleições, mas no caso de eleições há uma forte hipótese do movimento cinco estrelas ganhar. É uma força política anti-Europa anti-euro e que pode colocar em causa a própria presença italiana na moeda única”.

Italicum

Face à ameaça do Movimento 5 Estrelas, populistas a liderar as sondagens, boa parte da classe política italiana já defende em surdina a alteração da última lei eleitoral, antes ainda de eleições. A Italicum, aprovada em 2015, prevê que o partido com mais 40% receba bónus de deputados para a maioria. Se nenhum partido chegar aos 40% haverá segunda volta pelo decisivo bónus eleitoral.

Com a ameaça do 5 Estrelas, os restantes partidos já pensam numa lei que obrigue a governos de coligação. A questão é que com ‘um fato à medida’ para travar o 5 Estrelas do ex-humorista Beppe Grillo, na frente das sondagens, a lei irá de novo debilitar os próximos governos, afinal nada de novo num país com 64 executivos desde 1945 e a contar.

Com leituras externas ao referendo italiano que vão até à enorme fonte de incerteza para a frágil economia dos países periféricos, Luís Aguiar-Conraria assenta baterias nos decisores políticos. “Já aqui disseram quase tudo o que havia para dizer, mas uma coisa que me choca neste referendo em particular é a forma como se fazem leituras muito para além do que é votado”, diz o professor da Universidade do Minho.

“Vital Moreira escreveu recentemente que, mais uma vez, a Itália ilustrava o risco de fazer referendos sobre coisas complexas com pergunta simples de sim ou não e que os eleitores não percebiam o que estava em causa e que, muitas vezes, votavam por causa da conjuntura política”, nota.

“Esta crítica de Vital Moreira é absolutamente correcta, mas não relativamente aos eleitores e sim para os políticos que fazem leituras muito para além daquilo que é perguntado”, indica Luís Aguiar-Conraria.

“Parece que Vital Moreira se queixa da incapacidade dos eleitores quando se devia estar a queixar da incapacidade dos políticos”, conclui.

Comentários
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  • Jorge
    05 dez, 2016 Conchinchina 12:01
    Portugal sempre será um país a balançar sempre que alguém dê um sopro qualquer. Enquanto a Itália é a 4ª maior economia da Europa Portugal é a ultimas ou das ultimas, que peso é que nós temos? Como não pesamos na balança, somos como me rd@ ao cimo d'agua, vai pra lá, vem pra cá e assim vamos indo, pensando que somos alguma coisa. No dia que tivermos consciência do nosso real valor, e então fizermos uma política em cima disso, talvez passamos a viver melhor, mas enquanto comermos sardinha e teimarmos a arrotar camarão, as coisas continuam como estão.
  • Mateus
    05 dez, 2016 Vila Real 00:10
    Viva a democracia! Viva o NÃO ao roubo organizado!
  • Túlio
    04 dez, 2016 Montijo 23:06
    O que é tomar disposições na vida pessoal, dr.Daniel Bessa? É pôr o dinheirinho ao fresco? Porque é que os senhor jornalista não lhe perguntou o que era... também pôs o dele ao fesco! Estes milionários ainda gozam com o pagode depois de serem os responsaveis pela crise
  • Teresa Jovanotti
    04 dez, 2016 Cascais 22:49
    Alternative für Deutschland, Jobbik, Front National, UKIP, PVV, Cinque stelle, Europa está a fracassar e o pior é que tem uma classe politica ladra, miserável, suicida e divorciada dos povos! Que interesses servem estes políticos? Não será chegada a altura destes 'Barrosos de trazer por casa' fazerem um Mea Culpa e deixarem a corrupção governando apenas no interesse e bem estar das pessoas? Não escutam as palavras de Sua Santidade, o Papa Francisco?
  • Vasco
    04 dez, 2016 Santarém 19:49
    Europa nas urgências do hospital Portugal a viajar em vaca voadora, tudo bem muito obrigado!
  • Guillaume
    04 dez, 2016 Sever 19:06
    Desejo que os italianos tão próximos históricamente da arte, sofisticação e elegância, demonstrem nas urnas o seu orgulho e dignidade votando favoravelmente o referendo e afastando da equação os esquerdalhos contrários ao progresso e sempre dispostos a viver com o dinheiro dos outros!
  • KHGJTLWQ
    04 dez, 2016 NJHTR 18:57
    Gostava de dizer que a realidade não é unipolar. Veja-se o caso da Federação Helvética, Suíça, que utiliza o referendo de maneira exemplar nos seus cantões. Constato que a ideia que hoje transparece é que o mal está na democracia e no voto. É estranho que se ponha as eleições e o seu resultado sempre em causa, não sei qual o regime que essas pessoas consideram como ideal. A realidade é que a crise financeira está camuflada e é incomensurável (diz-se que a banca italiana precisa de 340 mil milhões de euros). Agora só falta dizer que a culpa é do povo que trabalha e poupa- depositantes e obrigacionistas.
  • João Rodrigues
    04 dez, 2016 Lisboa 18:18
    Aí estão eles, a tentar condicionar a opinião dos portugueses, serão estes os que são pagos pelo PSD/CDS para o fazerem? Estou convencido que sim. Serão estes os arauto do DIABO? Certamente que sim. Borrifem-se nas opiniões destes trastes. Nem para eles são bons, quanto mais para opinar junto dos portugueses. Já perceberam, eu não os considero portugueses...
  • italiano vero
    04 dez, 2016 Lisboa 18:16
    Renzi não é de centro-esquerda, mas sim de direita. Foi o establishment da Goldman Sachs que levou Renzi ao poder. E, logo a seguir, para garantir a permanência do regime neo-liberal começa por alterar uma Constituição que sempre foi considerada a mais representativa da diversidade da sociedade italiana e, por consequência, a mais democrática da Europa. Ao contrário de outras a Constituição italiana é aprovada logo após a derrota do fascismo e reflecte isso mesmo porque é um texto anti-fascista. A desculpa da eficácia (e governabilidade, isto não soa a PSD?) não vale para rever (como foi feito) uma Constituição que garantiu, logo depois de ser aprovada após o fim de Mussolini o grande progresso da democracia italiana. Por tudo isto votar NÃO é votar democracia!
  • Rui Marques
    04 dez, 2016 Lavos Figueira da Foz 17:46
    Há mais de 2500 anos, o ateniense Péricles fez uma importante advertência. Para a sua oração fúnebre expressou uma ideia simples, mas crucial para o correcto funcionamento do sistema democrático e que é: se bem que nem toda a gente seja apta para governar, todas as pessoas devem poder entender e julgar a acção dos políticos. Dito de outra forma: se a democracia degenera e se torna um tema só para uma elite de tecnocratas o cidadão não participa e o sistema passa a oligarquia como ante-câmara da tirania. Percebem agora os Trumps e Le Pen’s?

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