Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

Reportagem

Os Resistentes. As crianças do IPO do Porto também jogam à bola

28 dez, 2016 - 11:17

A notícia é um “choque”, é “cruel”, é “difícil". Os tratamentos, os transplantes e a quimioterapia deixam marcas e dores físicas. Afonso, Luana e João tornaram-se “crianças frágeis”, ainda em regime de manutenção e vigilância. Mas, agora que podem, jogam pel'Os Resistentes, a equipa de futebol do serviço de pediatria do IPO do Porto.

A+ / A-
"Os Resistentes. As crianças do IPO do Porto também jogam à bola"
João foi diagnosticado com leucemia linfoblástica aos 23 meses. A notícia foi "um choque" para o pai, António Ramalho. João ainda mantém consultas anuais no IPO do Porto

“Cai o mundo em cima de nós”, diz António Ramalho. Aos 23 meses, o filho, João, foi diagnosticado com leucemia linfoblástica em estado já avançado, com uma reprodução excessiva de células precursoras dos glóbulos brancos que já se encontravam em 80% do sangue. Uma ida ao hospital, devido a uma mordidela de um cão, revelou o diagnóstico. “É um choque. É cruel a notícia”, explica com um ar sereno, enquanto o jogo do filho não começa.

João Ramalho fez um “tratamento de choque”, deitado numa das camas de lençóis brancos do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto.

Passou por nove ciclos de quimioterapia ao longo de um ano. Mas, mais que as dores dos pais, diz o pai António, “não nos podemos esquecer que o maior sofrimento é do próprio menino que está a sofrer na pele aquilo que tem”.

Agora, com 11 anos, João não se lembra de nada. Tinha quase dois anos na altura. A quimioterapia acompanhou-o até aos quatro. Mas, apesar de não se recordar, sabe que não quer voltar a ter no corpo aquele “problema”, que o tornou uma “criança muito mais adulta”, revela a mãe, Elda Ramalho.

João não fala muito. Só o essencial. Quer é jogar futebol, porque aí sente-se “livre” e pode passar a bola a quem quiser. Naquele domingo cinzento, há jogo da sua equipa, Os Resistentes. Amarra a bola e dá uns toques no meio do campo. Falha e repete como se ninguém o estivesse a ver. Percorre o campo de cima a baixo enquanto a equipa não se alinha para defrontar o Futebol Clube do Marco.

No campo, estão 18 resistentes, de um total que ronda os 100, segundo as contas de Alberto Nogueira, voluntário da Liga Portuguesa Contra o Cancro.

“Não está mau”, acrescenta o fundador do projecto. “Os Resistentes”, equipa de futebol do serviço de pediatria do IPO do Porto, nasceu pelas suas mãos, em Agosto de 2012. Foi treinador com carteira, mas hoje dedica-se a percorrer o campo com os meninos que, em tratamento ou em regime de manutenção e vigilância, e com a devida autorização médica, querem chutar aquela bola branca e azul de vez em quando.

Naquele dia, o jogo fez-se dentro das quatro linhas de um campo de futsal da Escola Secundária de Marco de Canavezes. A chuva forte não os deixa sair. E, enquanto os rivais não chegam, há que aquecer. Já no pavilhão, ao som do seu hino, dispensam atenções.

E Afonso, do alto dos seus 12 anos, também lá está. É o miúdo baixinho que joga contra três. A mãe, Ângela Moreira, atravessa todas as esquinas do pavilhão para se certificar que tudo está a correr bem. Desde que o filho nasceu que os médicos se aperceberam que o menino tinha algum problema.

Andou quatro anos em testes. Um diagnóstico final revelou uma doença rara, Blackfan-Diamond, que consiste numa baixa contagem de glóbulos vermelhos e que causa anemia e mau funcionamento da medula óssea. Foi “um desabar da vida, um desabar de tudo”, recorda Ângela. Mas depois, diz, “há algo que nos levanta”.

O transplante de medula, feito logo quando tinha quatro anos, deixou “muitos contras”. Um deles foi a doença do enxerto contra hospedeiro que lhe provoca dores musculares muito fortes. “Passa noites em claro, a gritar”, diz a mãe. Mas uma bola nos pés de Afonso faz com que se esqueça disso.

Afonso é um dos rostos das crianças que continuam em regime de manutenção e vigilância no IPO do Porto. Tem consulta todos os meses para medir a estabilidade da doença do enxerto e os níveis de medicação. Mas domingo não é dia de ir ao IPO, por isso atravessa as linhas do pavilhão com “a mania de quem é campeão e sabe jogar”, que a mãe lhe reconhece.

E as raparigas também jogam. Luana junta-se a Rita enquanto o jogo não começa e as duas aceleram, de equipamento vestido, pelo corredor lateral do campo. A mãe de Luana, Cátia Costa, segura-lhe o casaco. “Quando cá está [nos jogos], não quer saber dos pais para nada”, diz a mãe.

Luana foi diagnosticada com leucemia mieloblástica aguda, que se traduz numa rápida propagação de células anormais que se vão acumulando na medula óssea e que interferem na produção de glóbulos vermelhos. Tinha na altura 17 meses.

Três meses depois de recebido o diagnóstico, fez o transplante, possível através de um cordão umbilical vindo da Holanda. “Sou muito criticada. Já me disseram que eu não tenho coração, porque não choro”, diz a mãe. ”Mas eu nem ligo, porque só quem passa é que sabe o que sofre”.

Cátia vai controlando a filha a partir da bancada. Após o transplante, Luana ficou, tal como Afonso, com doença do enxerto contra hospedeiro crónica. “Os médicos avisaram-me que a minha filha pode morrer de um dia para o outro”, diz Cátia. Uma infecção, juntamente com a doença do enxerto, dificultou o quadro clínico de Luana e provocou-lhe um “problema grave nos pulmões”. “Ela corre, coitadinha. Mas não aguenta muito por causa disso”, diz a mãe.

“As pessoas que foram ou são doentes têm o direito de jogar à bola”, diz João como se o assunto não estivesse bem esclarecido. Naquela equipa o resultado não importa. Não há ganhar nem perder. Nas linhas do campo passam a bola a quem querem.

Luana, entre as quatro linhas do campo de futsal, já não se zanga quando o golo não é certeiro. Ouve os gritos de quem os veio ver e corre ao mesmo tempo que diz adeus à plateia. Do IPO “só sai quando Deus quiser”, diz Cátia.

À beira do Afonso chegam outros dois miúdos. “Anda jogar”, pedem-lhe. “Agora não posso”, responde-lhes. Ele e os restantes 17 resistentes vão receber uma medalha com o nome de cada um gravado para mais tarde recordar.


Tópicos
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Paulo Moreira
    28 dez, 2016 Marco Canaveses 23:26
    O nome diz tudo são resistentes, a força deles é muito grande, são muito fortes, vão vencer.
  • José
    28 dez, 2016 Oriras 13:19
    Força e muita coragem pequeninos, muita mesmo, com amor e carinho irão superar tudo. Sejam muito felizes pois merecem tudo de bom.

Destaques V+