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​Director do FBI acusado de desrespeitar regras e tradição da justiça americana

01 nov, 2016 - 10:04 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

James Comey colocou a agência no olho do furacão político que pode alterar o curso das eleições presidenciais dentro de uma semana.

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Falta exactamente uma semana para as eleições americanas e não andaremos longe da verdade se dissermos que milhões de pessoas estão fartas de serem “bombardeadas” diariamente com as mesmas personagens, os mesmos argumentos, a mesma propaganda, os mesmos ataques pessoais, as mesmas caretas e os mesmos sorrisos, num processo desgastante que já dura há mais de ano e meio.

Mas se os nomes de Hillary Clinton e Donald Trump passaram a fazer parte da rotina quotidiana de (quase) toda a gente, contribuindo para o fastio que se sente na opinião pública, nos últimos dias outros dois nomes vieram fazer concorrência aos dois rivais candidatos – o FBI e o seu director James Comey. Desde sexta-feira passada que a sigla da polícia de investigação americana e o nome do seu director passaram a ser citados tantas vezes ou talvez mais do que os dos próprios candidatos.

A razão é, como aqui noticiámos nessa sexta-feira, a reabertura da investigação a Hillary Clinton por causa do caso dos emails que circularam no seu servidor privado e cujo anúncio teve o efeito de um sismo nesta campanha eleitoral.

No passado mês de Julho, quando o director do FBI anunciou que a investigação ao caso dos emails de Hillary Clinton não produzira qualquer acusação criminal, houve reacções díspares entre a classe política. Enquanto os democratas se congratularam com o desfecho elogiando a isenção e independência de James Comey, os republicanos criticaram-no fortemente, com destaque para Donald Trump, que desde então não parou de dar o FBI e o seu director como mais um exemplo do sistema político “viciado”.

Entre os comentadores e analistas, as opiniões também se dividiram, mas houve uma que primou por alguma originalidade. Charles Krauthammer, um conhecido neo-conservador, colunista do Washington Post, defendeu então a tese de que Comey teria evitado avançar com uma acusação criminal contra Hillary porque ponderou as consequências políticas de tal acto.

Clinton tinha já vencido as primárias do Partido Democrático e ia ser nomeada oficialmente como candidata à Casa Branca três semanas depois. Uma acusação criminal em tais circunstâncias poderia pôr em xeque a candidatura, abrir um processo imprevisível no Partido Democrático para substituir a candidata e deixar o palco aberto para Donald Trump.

Segundo a tese de Krauthammer, o director do FBI não terá querido assumir a responsabilidade de, ao impedir Clinton de prosseguir a sua candidatura à Casa Branca, mudar o curso da história e eventualmente dar de bandeja a Casa Branca a Trump. Era apenas uma tese, especulativa claro, mas que defendia que a decisão de Comey era afinal política, ao contrário do que o director sustentou com veemência.

O receio de influenciar os acontecimentos de forma tão decisiva teria condicionado a hipótese de acusar criminalmente Hillary. Comey teria preferido arquitectar uma argumentação jurídica poderosa para evitar avançar com o processo e colocar-se a si e ao FBI no centro de um furacão político incontrolável. No fundo, o que Krauthammer estava a dizer é que James Comey não teria tido coragem de, enquanto director da polícia de investigação, assumir as consequências de uma decisão jurídica quaisquer que elas fossem no terreno político.

Pois bem, a tese de Krauthammer acaba de ser desmentida graças ao anúncio da reabertura da investigação. A 11 dias das eleições, o director do FBI demonstrou que afinal não receava as consequências políticas de uma decisão que continua a considerar exclusivamente motivada por razões jurídicas. E elas são devastadoras, podendo mesmo vir a constituir o principal factor de influência do voto nesta recta final das eleições.

Democratas contestam

Como seria de prever, de um momento para o outro as críticas a Comey passaram a vir do campo democrático e os elogios do campo republicano, embora haja excepções de ambos os lados. Para os republicanos que tinham arrasado Comey em Julho, com destaque para o próprio Trump, ele passou a ser um herói, um “homem com coragem”. O magnata viu nesta decisão a prova de que afinal o sistema não estará tão viciado como ele julgava e o FBI voltou a ser uma instituição credível e isenta.

O anúncio da reabertura da investigação foi a tábua de salvação de uma campanha que se afundava nas sondagens, no financiamento e na descrença. Reanimada pela decisão de Comey, a campanha de Trump ganhou um suplemento de alma e tem agora razões atendíveis para pensar que pode vencer a eleição dentro de uma semana. Talvez não seja provável, mas pelo menos já não é irrealista acalentar tal sonho. É o que as últimas sondagens têm vindo a indiciar com a diferença entre os dois candidatos a estreitar-se para apenas um ponto percentual, diluindo a vantagem confortável de que Hillary Clinton dispunha.

Para os democratas que, em Julho, tinham tecido loas à competência, carácter e isenção de Comey, não houve propriamente uma passagem súbita do elogio ao vilipêndio, mas as críticas foram-se multiplicando à medida que se conheciam mais pormenores sobre as circunstâncias que rodearam a decisão de reabrir a investigação.

A tónica geral é de que se trata de um erro de avaliação grave. Para alguns, baseado em dados inconsistentes, que quebra regras de procedimento e recomendações administrativas. Para outros, indicia mesmo uma duplicidade de critérios que levanta algumas suspeições.

A decisão parece bem mais vulnerável à crítica do que a de Julho. Antes de mais porque a carta ao Congresso em que Comey anunciou o retomar do processo não dá a mínima informação sobre o assunto em causa. Diz apenas que surgiram novos elementos que “parecem ser pertinentes”, mas mais adiante informa que “ainda não pode avaliar se este material é significativo ou não”, nem pode “prever quanto tempo demorará a completar este trabalho adicional”.

A informação de que não se trata de emails enviados ou recebidos por Hillary Clinton, mas sim de emails trocados entre uma assessora de Hillary e o seu ex-marido onde a candidata estará referida, só surgiu posteriormente através de fontes do FBI que falaram sob anonimato à imprensa. A carta de Comey ao Congresso não dá por isso qualquer informação útil, limitando-se a reactivar as suspeitas sobre a candidata. Suspeitas que, por outro lado, se baseiam em material que o próprio director admite que pode não ser significativo. Entre os milhares de emails que agora vão ser escrutinados, os que se referem a Hillary poderão até ser os mesmos que já foram analisados anteriormente.

Republicanos criticam

Esta é uma das críticas centrais a Comey. E feita não apenas por democratas. Alberto Gonzalez, ex-ministro da Justiça da anterior administração Bush, disse à CNN que estava “perplexo” com a atitude do director do FBI que classificou como um “erro de julgamento”. “Não se comentam investigações porque isso pode pô-las em risco. As pessoas agora reclamam mais informação”, criticou, confessando que nem percebia o objectivo de Comey ao enviar a carta ao Congresso.

Carta que, aliás, rompe com uma longa tradição do Ministério da Justiça, onde existe um protocolo que recomenda que se deve manter silêncio sobre casos politicamente sensíveis a menos de 60 dias de uma eleição. Esta foi a crítica mais frequente a Comey, que foi ministro-adjunto da Justiça de Gonzalez na administração Bush.

Um ponto sublinhado também por Eric Holder, anterior ministro da Justiça de Obama, num artigo no Washington Post. Holder chama-lhe uma “violação impressionante” do protocolo da Justiça que terá “potenciais sérias implicações” na campanha eleitoral. “Compete-lhe agora dissipar a incerteza que criou antes das eleições, corrigir o erro não para o bem de um candidato mas para proteger o nosso sistema de justiça”, escreveu Holder, que considera Comey um homem “honrado” e “íntegro” que cometeu um erro.

Outro republicano e outro antigo ministro da Justiça de Bush, Michael Mukasey, criticou Comey por razões um pouco diferentes. “Não compete ao director do FBI decidir quem é acusado ou não. Compete-lhe recolher provas e ele não cumpriu essa função muito bem”, disse. “Ele não se devia ter colocado, nem devia ter colocado o Ministério da Justiça em tal embaraço”, acrescentou.

A generalidade das críticas incide na questão do protocolo e da prática das administrações em evitarem lançar processos a alguém envolvido em eleições a menos de 60 dias da ida às urnas. Ao receber informação tida por sensível da equipa de investigadores do FBI na quinta-feira passada sobre Hillary Clinton, Comey poderia ter prosseguido a investigação em sigilo, esperando pelo desfecho eleitoral para divulgar o que entendesse sobre o caso. Só desta forma cumpriria o protocolo e respeitaria a prática corrente no país.

Ao optar pela divulgação, provavelmente para mostrar a sua independência em relação ao governo e a isenção do FBI, acabou por colocar a polícia que dirige no centro do maior furacão político destas eleições, num efeito perverso daquilo que visaria com a sua decisão “apolítica”.

Acresce que ontem surgiu uma notícia no canal televisivo CNBC e no Huffington Post segundo a qual Comey ter-se-á oposto a que o FBI subscrevesse uma posição pública das várias agências de espionagem americanas denunciando a Rússia como responsável pela pirataria informática de que foram alvo os computadores do Partido Democrático no Verão passado. O argumento seria o de que essa posição pública seria susceptível de interpretações políticas indesejáveis dada a proximidade das eleições.

O Partido Democrático não perdeu tempo a acusar Comey de “ruidosa duplicidade de critérios”, alegadamente porque se preocuparia em respeitar o protocolo nuns casos e desrespeitá-lo noutros. O FBI recusou-se a comentar.

Quem não pôde esquivar-se a comentar a situação foi o porta-voz da Casa Branca, que se recusou a “defender ou a criticar” a decisão do director do FBI. Mas foi dizendo que o presidente acredita que as normas e as tradições que limitam a discussão pública de casos em investigação devem ser respeitadas, naquilo que parece um remoque a Comey, que contudo classificou como um “homem de princípios, de integridade e de bom carácter”. E lembrou que foram essas características que levaram duas administrações diferentes a escolhê-lo para cargos de grande relevo e o Senado a aprovar a escolha por esmagadora maioria.

James Comey começou por se registar como republicano, mas tornou-se independente posteriormente. Serviu na Administração de George W. Bush como ministro-adjunto da Justiça e mais tarde o presidente Obama escolheu-o para dirigir o FBI. A sua reputação de homem íntegro, isento e competente não foi posta em causa por ninguém neste processo, excepto por Trump na sequência da decisão de Julho de não acusar Hillary Clinton.

A sua atitude na semana passada, porém, colocou-o no centro de um furacão política e ironicamente veio favorecer a única figura pública que pôs em dúvida o seu bom nome.

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