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1944-2016

A "inquietação interminável" de João Lobo Antunes

27 out, 2016 - 20:55 • Ricardo Vieira (texto), Inês Rocha (vídeo)

Uma das mentes mais brilhantes da sua geração, o neurocirurgião João Lobo Antunes era multidisciplinar. Amava a escrita e a música, era um pensador livre e humanista, conselheiro de Estado que se assumia como "angustiado metafísico", crente no "bom coração" dos portugueses.

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A medicina e a morte segundo o "angustiado metafísico" João Lobo Antunes
A medicina e a morte segundo o "angustiado metafísico" João Lobo Antunes

“Inquietação interminável” é o título de um dos seus livros e podia ser um lema de vida. João Lobo Antunes dedicou-se ao cérebro humano e a muitas outras coisas, viu o melhor e o pior do homem, mas continuava a acreditar que “os portugueses têm bom coração”.

João Lobo Antunes, que morreu esta quinta-feira, aos 72 anos, disse à Renascença em 2008 que olhava para o seu consultório médico como uma janela privilegiada para a sociedade e para a condição humana, “quase um confessionário”, onde os doentes falavam das doenças do corpo e das angústias da alma.

Observador atento da realidade e pensador humanista, considerava o dia em que nasceu (4 de Junho de 1944) como o mais importante da sua vida, porque foi aí que “tudo começou”.

Cresceu no bairro de Benfica, em Lisboa. A mãe ensinou os irmãos a ler, mas João conta que aprendeu sem saber como.

Os primeiros tempos nos bancos da pré-primária foram traumáticos para o menino de apenas quatro anos, que décadas mais tarde disse que “a escola não serve para fazer as pessoas felizes”, mas para dar “instrumentos para construir a sua felicidade”.

Foi na quarta classe que despontou a paixão pela literatura, que o acompanhou até ao fim. Influenciado por um professor na quarta classe, deu os primeiros passos na escrita, área em que se destacou o seu irmão António.

Mas profissionalmente seguiu a tradição familiar: a medicina. O seu tio-avô, Pedro Almeida Lima, foi considerado o pai da neurocirurgia portuguesa. O pai, João Alfredo de Figueiredo Lobo Antunes, era neurologista e colaborou com o Nobel da Medicina português Egas Moniz. Dois dos seus irmãos, António e Nuno Lobo Antunes, também seguiram medicina.

“Os portugueses que somos hoje estão no Eça”

Tirou o curso na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e em 1971, com 27 anos, emigrou para os Estados Unidos, para prosseguir a formação em neurocirurgia.

Utilizou uma metáfora médica para descrever os 13 anos em que esteve fora da terra natal. Comparou esse período a uma “amnésia de quem teve um traumatismo craniano”.

Quando fez as malas Portugal estava mergulhado na ditadura e na guerra colonial. Quando regressou, em 1984, o país respirava liberdade e democracia, mas também vivia tempos de crise económica.

Viver do outro lado do Atlântico deu-lhe o distanciamento necessário para olhar para Portugal de outra maneira. Em comparação com os Estados Unidos, lamentava a falta de interesse dos portugueses no exercício da cidadania e o fosso entre eleitores e políticos, que considerava “uma das heranças da ditadura”.

Mas considerava que, na essência, “os portugueses que somos hoje estão no que Alexandre Herculano escreveu, estão no 'Portugal Contemporâneo' do Oliveira Martins, estão no Eça de Queirós. Somos os mesmos”, disse em entrevista ao “Jornal de Negócios”, em 2012.

As várias dimensões de João Lobo Antunes

Da sala de operações, ao amor pelos livros e pela música, mandatário das candidaturas a Belém de Jorge Sampaio e Cavaco Silva, conselheiro de Estado, professor, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Prémio Pessoa em 1996, a vida João Lobo Antunes fica marcada pela intervenção em áreas distintas.

Na entrevista de 2008 à Renascença, revelou ter sido convidado para ser ministro do Ensino Superior. Questionado sobre o que faria de diferente, respondeu: “A primeira coisa que faria era não aceitar. Não aceitei o convite porque, das muitas coisas que eu faço – umas melhores e outras piores -, aquilo que faço melhor ainda é ser cirurgião e acho que se perdia um cirurgião”.

E foi um neurocirurgião brilhante. Dedicou-se principalmente ao estudo do hipotálamo e da hipófise e inscreveu o seu nome na história como o primeiro médico a implantar um olho electrónico num cego.

Considerado um leitor ávido, com uma memória extraordinária, fixando tudo o que lia, assumiu-se como estudioso e escritor obsessivo.

Publicou vários livros sobre medicina, ensaios de reflexão sobre a sociedade, uma biografia de Egas Moniz e na recta final estava a escrever as suas memórias.

O "angustiado metafísico”

"Enquanto as mãos me obedecerem e o cérebro souber mandar, vou continuar", disse, em Junho de 2014, na sua última aula como professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Cerca de um ano depois teve de abandonar a sala de operações devido à doença que colocou um ponto final na sua existência.

Em declarações à Renascença em Fevereiro de 2014, João Lobo Antunes disse que a resignação do Papa Bento XVI foi um “acto de suprema humildade”.

“Foi uma lição para mim próprio, estou a chegar ao fim da minha carreira de professor e espero que na altura própria os meus amigos ou uma voz interior me diga que é tempo de parar.”

Em entrevista ao programa "70x7", da RTP, na Páscoa do mesmo ano, apresentou-se como um "angustiado metafísico”, quando questionado sobre temas da vida, da morte e da ressurreição. Manifestou "admiração e respeito" pela figura de Jesus Cristo e disse que "não podemos ignorar, como obrigação ética, a dimensão espiritual do sofrimento”.

No prefácio do livro “De Profundis – Valsa Lenta”, em que José Cardoso Pires conta como recuperou de um acidente vascular cerebral, João Lobo Antunes, na sua “inquietação Interminável”, fala dos mistérios do cérebro e da vida.

“Para Keats, o desafio da poesia do futuro era 'thinking into the human heart'. Os cientistas deste e do próximo século sabem bem que a tarefa é 'thinking into the human brain', pois continuamos todos sem saber porque é que o 'binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo'. Mas como dizia o personagem do nosso Eça, certas coisas não se sabem e é preferível não se saberem. Não será melhor assim?”

Comentários
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  • FM.
    28 out, 2016 gaia 16:53
    LAMENTO A MORTE DESTA FIGURA ÍMPAR DA MEDICINA E DA CULTURA.PORTUGAL FICOU MAIS POBRE.HÁ FAMILIA APRESENTO AS MINHAS SINCERAS CONDOLÊNCIAS.QUE O SNR.PROFESSOR JOÃO LOBO ANTUNES DESCANSE EM PAZ NA SUA NOVA MORADA.RESPEITOSOS CUMPRIMENTOS.
  • Maria Manuela Nunes
    28 out, 2016 Queluz 10:23
    Morreu um Homem Bom.
  • Manuela
    28 out, 2016 Lisboa 03:45
    Os meus sentidos pêsames, à família Lobo Antunes. Gostava de dizer qualquer coisa ao DR. António Lobo Antunes, mas não me ocorre nada a não ser tristeza! seja forte DR.
  • Maria Leonor Martins
    27 out, 2016 Lisboa 23:06
    Estou triste. Quando estamos, cada vez mais, rodeados de mediocridade, ficamos mais pobres quando nos deixa "uma mente brilhante". Descanse em paz, Professor.
  • Maria Anjos madeira
    27 out, 2016 S.Brás de Alportel Algarve 22:24
    Fui operada em 2009 no hospital de Santa Maria pelo professor Dr. João Lobo Antunes e foi a pessoa mais humana que conheci. Sinto muito a morte do Professor.

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