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Crónicas da América
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Candidatura de Georgieva poderá abrir negociações cruzadas na ONU

01 out, 2016 - 01:37 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Guterres pode ultrapassar as reticências russas.

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E se a búlgara Kristalina Georgieva não fosse a última candidata a entrar na corrida para secretário-geral das Nações Unidas?

A hipótese foi admitida pelo novo presidente da Assembleia Geral da ONU que acabou de tomar posse. Peter Thomson, um experiente diplomata das ilhas Fiji, presidirá à Assembleia Geral durante os próximos 12 meses e já se definiu como um árbitro da corrida a secretário-geral. Isto é, o homem que estará vigilante e fará cumprir as regras a todos os candidatos para garantir que não há favorecimentos.

Num encontro informal com os jornalistas, na quinta-feira, questionado sobre o timing da entrada de Georgieva na corrida, Peter Thomson disse que “nunca era demasiado tarde” e que “não ficaria surpreendido se outros aparecerem ainda mais tarde”.

Se formalmente a afirmação é inatacável, ela está a ser interpretada em círculos da ONU como um sinal de que poderá estar a ser preparada qualquer outra candidatura. À semelhança da de Georgieva seria resultado de negociações políticas entre Estados e destinar-se-ia a baralhar os dados do jogo de modo a forçar uma negociação e um compromisso final.

A Renascença já tinha dado conta desta hipótese em Abril, quando o processo público de avaliação dos candidatos começou. Escrevemos então que em alguns altos círculos governamentais (europeus e não só) havia a convicção de que a primeira vaga de candidatos não seria aquela donde sairia o novo secretário-geral. Esse surgiria mais tarde com apoios previamente garantidos nos bastidores político-diplomáticos.

Se esse poderá não ser o caso de Kristalina Georgieva, cuja candidatura surge mais como divisiva do que consensual, ela pode contudo ser a moeda de troca para uma negociação mais vasta envolvendo os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança.

Transacções de votos

Nos corredores da ONU há diplomatas convencidos de que o futuro secretário-geral ainda não é conhecido e surgirá dentre uma vaga de candidatos de última hora. Uma convicção que se fundamenta em parte no facto de ninguém ainda ter qualquer ideia sobre o que pretendem os Estados Unidos. Washington apostaria na candidata argentina Susana Malcorra, mas o seu fraco desempenho nas cinco votações feitas até hoje recomenda outra aposta.

Mas uma convicção que poderá derivar também da forma tradicional de encarar a escolha do secretário-geral, que sempre foi feita dentro de portas, na maior opacidade e sem que, por vezes, se soubesse sequer quem eram todos os candidatos em presença.

O processo público iniciado este ano mudou as regras do jogo e talvez já não seja possível tirar da cartola um secretário-geral à última hora. Estão portanto aqui em confronto duas lógicas diferentes – a tradicional e a nova – e as convicções de cada um oscilam em função do crédito que se dá a uma ou a outra.

Convém, contudo, não esquecer que nestas questões de cargos internacionais tudo (ou quase) é negociável. E que se “transacionam” votos entre países de acordo com os interesses mútuos. Um exemplo recente aconteceu com Portugal, quando Lisboa votou a favor de um candidato egípcio para director-geral da UNESCO que tinha um passado de censor no seu país. O então embaixador português na organização, Manuel Maria Carrilho, demitiu-se do cargo por discordar dessa orientação do Governo Sócrates. O voto português foi dado ao egípcio em troca da garantia que o Cairo votaria a favor da candidatura de Lisboa ao Conselho de Segurança (CS) para o biénio 2011-2013.

Ora, nada impede que nesta escolha do novo secretário-geral este tipo de “real politik” não seja praticado pelos 15 países do CS, cujo voto pode servir de moeda de troca para obter outras vantagens em questões que considerem mais importantes.

Segundo algumas fontes, o Reino Unido estará inclinado a alinhar com a Alemanha no apoio à candidatura de Georgieva. Para além das afinidades ideológicas entre Angela Merkel e a actual primeira-ministra britânica, Theresa May, – e a candidatura de Georgieva parece ter sido motivada por razões ideológicas – este apoio poderia ser uma forma de aproximação de Londres a Berlim com vista às difíceis negociações do Brexit com a União Europeia. Recorde-se que Merkel rejeitou em tempos a pretensão britânica de impor restrições à livre circulação de pessoas mas manter os privilégios do mercado único, dizendo que “não há uma UE à la carte”.

Descrédito búlgaro

Este seria apenas um exemplo – especulativo por ora, sublinhe-se – do tipo de “transacções” políticas a que a escolha de um secretário-geral pode estar sujeita. E isso é algo que escapa a qualquer mérito dos candidatos ou capacidade de persuasão dos países que os lançaram na corrida. Justamente por ter consciência desta situação é que a diplomacia portuguesa e os responsáveis políticos continuam a mostrar-se muito prudentes em relação à candidatura de António Guterres.

E não necessariamente por causa da candidatura de Georgieva, mas pelo sintoma que ela pode representar enquanto abertura de negociações cruzadas no Conselho de Segurança. A menos de uma semana da primeira votação em que a ex-comissária europeia vai participar, o ambiente na ONU em torno dela não parece nada favorável.

Para além do pedido de esclarecimento que Rússia, Angola, Uruguai e Malásia pediram à Bulgária sobre o patrocínio de Georgieva, o descrédito da diplomacia e do Governo de Sófia é total. Há pouco mais de um mês, o Governo búlgaro substituiu o seu embaixador na ONU por alegadamente ter feito um trabalho deficiente na promoção da candidatura de Irina Bokova, a outra búlgara que está na corrida desde o início. Na semana passada, o primeiro-ministro de Sófia fez “lobbying” a favor de Irina Bokova enquanto esteve em Nova Iorque para a abertura da Assembleia Geral. Esta semana, Sófia deixou cair Bokova e lançou Georgieva.

A candidatura nasceu por isso torta e é pouco provável que se endireite. Para além do veto russo parecer garantido, hipótese reforçada agora pelas declarações peremptórias da porta-voz do Kremlin a demarcar-se da candidatura patrocinada pela chanceler Merkel, algumas fontes admitem mesmo que Georgieva possa nem reunir os nove votos favoráveis no Conselho de Segurança indispensáveis para ser escolhida.

Isso é algo que se começará a perceber a partir da próxima quarta-feira quando for pela primeira vez a votos. Ou até talvez antes, quando na segunda-feira Kristalina Georgieva se submeter às perguntas da Assembleia Geral, onde o descontentamento com a forma como avançou se poderá manifestar. A Assembleia Geral é por natureza o órgão interessado no novo processo de transparência da escolha, que dantes era feito apenas no âmbito do Conselho de Segurança.

Guterres pode negociar

Neste contexto, que hipóteses mantém Guterres, perguntar-se-á. Talvez as mesmas ou porventura ainda mais se a sua candidatura surgir como a do consenso no meio da tempestade acabada de lançar. Se a candidatura de Georgieva se revelar um fracasso, Guterres emerge como o único que mantém a sua independência em relação às grandes potências, a garantia de equidistância e a capacidade de manobra de que outros não dispõem.

Dispondo neste momento da simpatia de duas das potências com direito de veto – a China e a França – o candidato português suscita reservas à Rússia, que continua a manter a sua aposta em Irina Bokova. Ao que parece, uma declaração de Guterres aquando do conflito com a Ucrânia terá deixado marcas no Kremlin.

Em Setembro de 2014, Guterres desempenhava as funções de Alto Comissário para os Refugiados e afirmou que “se a crise não for rapidamente parada, terá não só devastadoras consequências humanitárias, mas também o potencial de desestabilizar toda a região”. E acrescentou: “Depois das lições dos Balcãs, custa a crer que um conflito destas proporções possa surgir na Europa”.

Razão talvez para o actual distanciamento russo, longe de hostilidade, como parece ser agora o caso em relação à candidatura de Georgieva. E nada que o candidato português não possa ultrapassar através de negociações bem conduzidas se a sua posição continuar a ser a predominante nas votações decisivas que se aproximam.

Como uma fonte conhecedora dos bastidores da ONU adiantava à Renascença, “ele pode negociar com os russos e colocar a Bokova a vice-secretária-geral, por exemplo”.

As negociações de bastidores não são trunfos apenas para alguns. Estão ao alcance de todos. A questão é dispor de margem de manobra.

Comentários
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  • Daniiel
    01 out, 2016 Lisboa 10:46
    Merkel-May têm garantido o veto Russo a qualquer candidatura que lancem. Ambos países que criticaram e imposeram à Rússia sanções, a única forma de contornar isso seria acabar com as sanções, algo que está fora das mãos de quem advocou tanto quanto a elas como a Inglaterra e Alemanha (está nas mãos da CE). Vai uma aposta como a nova candidata leva pelo menos um voto contra nas próximas votações e vai-se ficar a saber em público que foi a Rússia, como forma de marcar posição? Sim, tudo é política, no entanto Putin quer quebrar a crista a quem ele julga te-lo humilhado... se não foram as perspectivas de declínio económico das sanções que o fez recuar, não vai ser "real politik" garantidamente, não a questões de orgulho de Putin como já ficou provado vezes sem conta.
  • Mafurra
    01 out, 2016 Lisboa 09:53
    Mas será que não há uma ÚNICA instituição onde as pessoas sejam promovidas pelo seu valor intrínseco ? É TUDO feito por "baixo da mesa". Compadrios, interesses de quem tem força para tal. Uma mentira, uma VERGONHA !

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