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“Erro de Dilma foi enfrentar duas crises em simultâneo”

29 ago, 2016 - 08:29 • José Bastos

A queda está iminente. As últimas linhas do obituário político estão a ser redigidas. Assim, a expectativa é a de que, pelo menos, Dilma Rousseff assine esta segunda-feira um discurso para a história do Senado brasileiro.

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O julgamento que está a decidir o afastamento definitivo de Dilma Rousseff da presidência brasileira entra hoje na fase processual decisiva. Às 13h00 (hora de Lisboa) irá protagonizar a sua própria defesa. Terá 30 minutos para o discurso, janela de tempo ampliável ao critério do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) Ricardo Lewandowski.

Dilma pode optar por responder ou não a perguntas, sendo que cada Senador poderá questioná-la por 5 minutos. É o mesmo período de tempo à disposição dos advogados de defesa e acusação. Mais à frente, Lewandowski lerá um relatório resumindo os argumentos da defesa e da acusação.

No último acto os senadores farão a votação nominal “sim” ou “não” à pergunta: “Dilma cometeu crimes de responsabilidade?”. 54 votos “sim” (2/3 dos 81 senadores) formalizam a destituição de Dilma e Michel Temer pode ser empossado em definitivo.

Nas contas dos aliados de Temer, Rouseff deve ser condenada por 61 senadores, sete acima do necessário previsto na Constituição Federal. A expectativa geral é a de que esta votação final possa ter lugar até ao final do dia de amanhã terça-feira, 30.

Dilma está a ser acusada de crimes de responsabilidade ao assinar três decretos orçamentais rectificativos e de cometer “pedaladas fiscais”. A defesa diz não estar provado o dolo (intenção de cometer o crime) e nem deveria estar a ser julgada.

Assim, Dilma protagoniza com o discurso de defesa no Senado o que será seguramente o “canto do cisne” de uma notável carreira política. Desde Maio altura em que foi afastada da presidência, a esmagadora maioria dos analistas sublinha que só uma tempestade política imprevisível permitiria o regresso de Dilma ao cargo em que se reelegeu em 2014.

Vai também nesse sentido a opinião de João Almeida Moreira para quem uma reviravolta no caso Dilma entraria “no domínio da surpresa absoluta, quase do milagre”.

O correspondente da Renascença no Brasil sustenta em entrevista que o maior erro político de Dilma foi “não se ter apercebido da dimensão da crise económica” e enfrentar dois graves desafios em simultâneo: a crise económica e a política.

Dilma pode ainda evitar a destituição? Há algum elemento de esperança a que possa agarrar?

Apenas o discurso dela, desta segunda-feira, no Senado. Dilma, segundo relata o seu núcleo duro, está a encarar essa comunicação com muito rigor e acredita que, se apelar ao lado emocional, possa mudar o voto dos menos convictos defensores do ‘impeachment’. Mas estamos no domínio da surpresa absoluta, quase do milagre.

PT e aliados dizem que há golpe parlamentar. Aliados de Temer dizem que se fosse golpe Dilma não teria oportunidade de se defender no Senado. Como se explica?

Todo o processo seguiu à risca os ritos constitucionais – nesse aspecto, as críticas do PT não procedem. No entanto, o PT tem a sensação, e parte da sociedade também, que hoje em dia, passada a guerra fria, os golpes já não são feitos com armas físicas, mas com armas democráticas. Todo o processo de convencimento dos congressistas a votarem pelo ‘impeachment’ – oferecendo cargos em troca de votos – e o tom conspirativo - com negociações nos bastidores entre Eduardo Cunha e Temer - parece próprio de um “golpe”. Mas “golpe” entre aspas...

A tese do PT é a de que há castigo sem crime. O argumento tem possibilidades de vingar?

Poucas. A opinião pública sente que as pedaladas fiscais e os outros argumentos que baseiam o pedido de impeachment não passam disso mesmo: de argumentos. Por isso, os senadores pro-destituição sublinham que se trata de um julgamento sobretudo político, o que está em análise num fórum político, como é o Senado, é o conjunto da obra de Dilma. O julgamento de Dilma está mais para moção de desconfiança ou de censura do que para um julgamento técnico, com acusação, defesa, jurados, ré.

Há fissuras na frente governista? A dificuldade para aprovar o DRU (mecanismo que permite ao governo federal usar livremente 20% dos tributos federais) prova-o?

Sim, PSDB e DEM já começaram a criticar o PMDB; pressionando pela rápida passagem das palavras aos actos em matéria de ajustamento orçamental. Temer, político à antiga, diz que não se pode fazer nada sem o Congresso, que é uma massa de interesses difusos complicada e que esteve na base da derrocada de Dilma. Por outro lado, 2018 é logo ali e as duas forças principais do governo interino, PSDB e PMDB, começam já a marcar território.

A carta de Dilma em que sugere novas eleições chega em desespero e fora de tempo?

É a opinião da maioria – incluindo do PT que rejeitou apoiar a medida em reunião da direcção executiva nacional.

Dilma está num beco sem saída. Dilma não está envolvida na corrupção do PT, mas é acusada de conivência. Onde falhou para estar onde está?

Ser presidente do Brasil não é para principiantes. A forma como sempre se organizaram as relações entre público e privado no país e os “mensalões” a céu aberto que se verificam todos os dias no Congresso, com a troca assumida e despudorada de votos por cargos, requerem alguém com um estômago que Dilma nunca teve. Que Lula, autor da frase “se Jesus fosse presidente do Brasil aliava-se até com Judas”, e Fernando Henrique Cardoso tinham.

Foram sucessivos erros de cálculo político a vitimar Dilma? Qual foi o maior deles?

Foi não se ter apercebido da dimensão da crise económica – por incompetência ou má fé – e foi por, com essa crise económica às costas, ainda “pagar para ver” na guerra com o Congresso, num duelo com um político temerário, quase suicida, como Eduardo Cunha. Enfrentar uma crise económica consegue-se, enfrentar uma crise política também, mas as duas ao mesmo tempo não – como se viu.

Dilma vai pagar agora o preço da sua teimosia? A factura da recusa de pontes com o Congresso, oposição e, sobretudo, com ‘as ruas’ do Brasil?

Sim. Ser presidente do Brasil é ter a capacidade de engolir sapos diários e Dilma não tem estômago para isso. Em relação às ruas penso que desde os protestos de 2013 elas estavam tão fartas dela como do Congresso – é Brasília, no seu todo, que se recusa a ouvir as ruas, é uma cidade à parte, um mundo à parte, no meio do nada, literalmente.

Porque é que não se evitou que esta crise seja um drama psicossocial mais que político?

Tudo no Brasil deriva em drama psicossocial. A desigualdade ainda gritante, o racismo, apesar de muito mais subtil do que por exemplo nos EUA, e as velhas e podres divisões de classes do país vêm sempre à superfície à primeira crise, é inevitável. Ao contrário da Europa, onde há direita e esquerda e há, sobretudo, muito “meio”, no Brasil só há esquerda e direita, não há meio termo. Tanto que no parlamento o “meio” é representado por partidos vazios ideologicamente que, de forma assumida, só se interessam por cargos, honras, poderes e orçamentos.

Muitos defendem que Dilma paga pelos erros de Lula. Se o erro de design político foi dele, porque é que não paga a factura mais pesada?

Nunca saberemos o que aconteceria se fosse Lula a candidatar-se em 2010, ou seja, se não houvesse limite de mandatos. Talvez a crise estourasse nas mãos dele como estourou nas mãos de Dilma, talvez não, devido ao tal estômago de Lula. No entanto, ele também tem pago: está a braços com a justiça e, apesar de manter boa popularidade, não nos podemos esquecer que ele ainda há uns anos era quase unânime.

Estará Dilma politicamente morta e enterrada no final deste processo?

Sim. Ela própria disse que era carta fora do baralho, caso o impeachment prosperasse. Estará morta também por decisão dela, não apenas por decisão popular, ao que tudo indica ela prefere reformar-se, viver calmamente em Porto Alegre em vez de voltar a Brasília e a um mundo a que não se adaptou porque ela é, no fundo, muito mais técnica do que política.

Concretizado o impeachment o que se pode esperar do governo Temer? Aumento de impostos, reformas duras, privatizações ou só o piscar de olho à reeleição?

Penso que Temer quererá fazer tudo ao mesmo tempo. Endireitar a economia, através de austeridade e medidas impopulares, mas criar, ainda assim, terreno propício à sua candidatura. Ele para já nega a pés juntos – o que em política costuma ser o primeiro sinal de que sim, que se quer candidatar.

Os Jogos Olímpicos correram melhor que o esperado. O governo interino aproveita para capitalizar politicamente ou houve mérito de Dilma/Lula no planeamento?

Penso que a forma como correram não terá influência nacional, talvez mais local, no Rio de Janeiro e nas pretensões do prefeito cessante Eduardo Paes de ser governador ou até mais. Entretanto, o governo interino não deu nenhum sinal de querer capitalizar os Jogos – seria visto como um abuso porque é a Lula e ao PT que se atribui o mérito de garantir a organização.

Apesar das críticas a questão da mobilidade acabou por resolver-se e a zona portuária do Rio foi um sucesso. Uma pesquisa da FGV diz que o legado da Olimpíada é positivo, mas que o Rio precisa de um novo projecto de cidade. A factura a pagar compromete o projecto?

Penso que sim, mas ainda é cedo para se fazer um balanço isento, técnico. É seguro que surgirão elefantes brancos, da mesma maneira que é certo que se encontrarão benefícios para a população em muitas das obras.

Sem Jogos, sem os biliões para a segurança pública, sem visibilidade internacional, o Rio pode estar ameaçado de novos surtos violentos?

Pode acontecer mas ainda é cedo para se prever.

Desde as presidenciais de 2014 há uma atmosfera de crescente hostilidade na sociedade brasileira. Com o fim do ‘impeachment’ a tensão será agravada ou dissipada?

Depende da forma como o PT vai liderar a oposição. Se, como já começa a ser falado, Lula voltar à presidência do partido, 28 anos depois, pode gerar uma onda de contestação, envolvendo movimentos sociais, sindicatos e acções de artistas e intelectuais com potencial de atingir com força o governo de Temer. A tensão estará sempre presente porque já se vive clima eleitoral – municipais de Outubro – e as presidenciais são logo ali em 2018.

A inesperada retoma da auto-estima colectiva da sociedade brasileira, impulsionada pelos Jogos Olímpicos, pode ser aproveitada para superar o trauma da mais que provável destituição presidencial?

Não sei se a auto-estima colectiva tem tradução imediata em termos políticos. Como os Jogos foram escritos a várias mãos – Lula, Dilma e o PT organizaram, o PMDB de Temer e Eduardo Paes é que os inauguraram – não penso que o sucesso do evento se reflicta a favor ou contra ninguém. No fundo, do ponto de vista da organização, os Jogos correram tão bem como a Copa do Mundo de futebol e o facto da Copa do Mundo não ter tido erros graves de organização não se reflectiu, nem a favor nem contra Dilma, pelo menos com muita ênfase.

Enfrentar uma segunda destituição presidencial em menos de 30 anos do restabelecimento da democracia é, ainda assim, traumático para qualquer sociedade...

Em 127 anos de República, só 12 pessoas eleitas pelo voto directo governaram até ao fim do mandato. É uma situação comum no Brasil, na América Latina. Mas sim, com apenas 30 anos desde o fim da ditadura militar, duas destituições e a permanência por 13 anos – que podiam ser 16 anos – do mesmo partido no poder não são saudáveis. Falta alternância ao país para a democracia poder crescer sem abalos.

Caindo Dilma, ainda vamos continuar a ouvir falar de Lula? (Datafolha: Lula lidera pesquisas para as presidenciais de 2018)

Se não for preso, e tudo indica que não há provas suficientes para o prender, e se tiver saúde, tudo indica que Lula continuará a ser protagonista.

E os 12 milhões de brasileiros desempregados (e os 30 milhões que saíram da pobreza) o que poderão esperar da economia nos tempos mais próximos?

Tempos difíceis. Mas sempre de esperança. O Brasil e os brasileiros são quase imunes a depressões e tristezas.

Comentários
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  • Manel
    29 ago, 2016 Alverca 10:20
    Mais um golpe da direita , desta vez no Brasil .

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