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Entrevista

O adeus dos Buraka Som Sistema? "Ajudámos a criar uma identidade musical nova para Lisboa"

01 jul, 2016 - 10:01 • Pedro Rios , Joana Bourgard (fotos)

É mesmo o fim dos Buraka? Muitos não querem acreditar (e vão dançar em Lisboa para que isto não seja um funeral). A Renascença esteve no último ensaio dos Buraka e falou com João Barbosa.

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Puseram o país a dançar, sem vergonha, kuduro. Fizeram dessa música de Angola e das periferias de Lisboa uma sensação nas pistas de dança de todo o mundo. Durante dez anos, os Buraka Som Sistema ajudaram a mudar a face da música portuguesa.

A aventura chega ao fim esta sexta-feira com um megaconcerto gratuito junto à Torre de Belém, às 22h00. Além dos Buraka, haverá, a partir das 17h00, concertos e “DJ sets” de Dengue Dengue Dengue (Peru), KKing Kong, Dotorado Pro, MC Bin Laden (Brasil) e Batuk (África do Sul). Uma festa global para celebrar uma banda global.

“Se uma palavra não está no dicionário, ninguém vai reconhecer que essa palavra existe. O trabalho que fizemos foi inserir uma quantidade de palavras no dicionário”, diz João Barbosa (Branko).

Em 2006, começaram a surpreender com concertos no clube Mercado, em Lisboa. Perceberam logo que tinham algo de especial nas mãos?

Foi relativamente óbvio que tínhamos uma ideia que mexia com as pessoas. Conseguíamos sentir na nossa geração que estávamos a fazer uma música que, apesar de ter tudo a ver com a forma como quase toda a gente que vive em Lisboa cresceu, não tinha nada a ver com a música que havia naquele momento. Sentimos desde sempre uma resposta especial. Tínhamos outros projectos, mas percebemos que neste formato nos conectávamos mais profundamente com as pessoas.

Nunca imaginámos o cenário que se iria desenrolar a seguir. Mas dava para ver que a banda iria conseguir mexer com as pessoas, para o bem e para o mal. Foi sempre esse tipo de banda: uns detestam, outros amam.

O que vos levou a pegar numa música malvista e que estava confinada aos subúrbios de Lisboa e a fenómenos isolados como Hélder Rei do Kuduro?

Não era nada que estivesse perto das pessoas de forma mais generalizada. Estávamos a fazer coisas com o Kalaf, que cresceu em Benguela, e com o Andro [nome de palco: Conductor], que cresceu em Luanda. Temos um “background” diferente – eu e o Rui [Pité, ou DJ Riot] crescemos na Amadora. Apercebemo-nos de semelhanças entre o que era a parte instrumental do kuduro de Angola e o que estava a acontecer com músicas electrónicas como o dubstep. Conseguimos imaginar como iria soar [o kuduro] se fosse produzido com a perspectiva de quem cresceu numa cidade que está "linkada" a Luanda, ao Rio de Janeiro, à Cidade da Praia, mas ao mesmo tempo a duas horas e meia de Londres e Paris. Criar uma coisa específica, à medida da cidade de Lisboa.

Na vossa música ouvimos kuduro, mas também o baile funk do Brasil, o grime e o dubstep de Londres…

[Surgiu] A partir das viagens, de tocarmos na América do Sul, em África, na Europa. Apercebemo-nos que numa série de cidades estava-se a passar uma realidade relativamente parecida à que tínhamos em Lisboa.

Sentem que há um antes e um depois dos Buraka? Vemos a projecção de gente como DJ Marfox e Nigga Fox, o trabalho de estruturas como a Príncipe e a vossa Enchufada e não podemos desligá-la do vosso percurso.

Se uma palavra não está no dicionário, ninguém vai reconhecer que essa palavra existe. O trabalho que fizemos foi inserir uma quantidade de palavras no dicionário – ou então elas já lá estavam e nós só chamámos a atenção para elas, estavam escondidas na página 500 e tal. Uma série de artistas estão no mesmo caminho e isso faz todo o sentido – é assim que se cria uma cena. Criou-se uma identidade musical nova para Lisboa, para além do fado. Lisboa sempre foi uma cidade à procura de tudo e mais alguma coisa.

Isso reflecte-se também a num nível mais “mainstream”. É perfeitamente normal ter um artista angolano como o Anselmo Ralph no “top ten” nacional, a passar em qualquer rádio. O fenómeno da kizomba, que ganhou uma roupagem completamente nova e mais urbana…

Essa miscigenação fica-se pelos concertos ou quebra barreiras sociais?

Uma coisa é a música, a realidade é mais difícil, mas, mesmo assim, a cultura consegue aproximar pessoas, da mesma forma que o desporto consegue aproximar pessoas. A partir do momento em que crias um elo de ligação, tens mais cuidado no trato, respeitas mais. A cultura é capaz de fazer isso. Há os escritores, do Kalaf ao Mia Couto; na música, pessoas como nós, o Batida, o Nelson Freitas, o Anselmo Ralph; a própria culinária – como é que de repente cachupa e muamba são coisas completamente normais? Há uma minimovimentação sociocultural nesse processo, mas não é suficiente.

Quiseram fazer da vossa despedida uma espécie de festival. O que é o Globaile?

A nossa ideia com o Globaile é fazer um evento em Lisboa que celebra a mesma ideia que sempre esteve por trás de Buraka: o multiculturalismo. Iremos aplicá-la a uma série de outras coisas, da literatura a programas de televisão. No Globaile queremos celebrar Lisboa. Da mesma maneira que Berlim tem o techno e Nova Iorque tem o hip-hop, queremos que Lisboa seja a capital desta cena de música electrónica global, deste movimento que ainda está à procura de um nome, mas vai ganhando relevância.

É mesmo o fim de Buraka?

Não sabemos. Neste momento, estaríamos a entrar numa fase de fazer um disco novo e uma “tour” nova com base nesse disco. Uma coisa de que nos apercebemos em várias conversas foi que nem sempre fazer parte de uma banda é a melhor forma de passar determinada mensagem ou de cumprir determinados objectivos. É uma prioridade, tens que viver para ela 24 horas por dia. Tenho a certeza que Buraka Som Sistema foi a banda mais importante de que vou fazer parte.

O objectivo é: como tentar transformar estes dez anos numa série de outras coisas? E essas outras coisas podem motivar que daqui a quatro ou cinco anos voltemos a ter a energia de gravar o disco que supostamente devíamos gravar agora. Os próximos passos serão cada um respirar um pouco e encontrar-se um pouco mais a si próprio, por forma a conseguirmos ter a certeza que continuamos a fazer música relevante, música essencial. A cidade já apanhou a música que queremos passar, agora resta implantá-la de outras formas.

Passar a energia da banda para lançar outras sementes?

Já tens exemplos disso. O Rui acabou de lançar um tema com os Deolinda, eu produzi um tema para uma compilação de tributo a Amália, com a Ana Moura e o Bonga. Quando me ligaram para participar num tributo à Amália, fiquei meio sem perceber se o telefone estava a funcionar ou não. Vamos tentar dar toda esta bagagem para pôr Lisboa a funcionar da forma como a idealizamos.

Comentários
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  • Frank
    01 jul, 2016 Idanha 13:55
    Obrigado aos BSS por colocarem Portugal no mapa da música mundial!!!
  • Carlos Completo
    01 jul, 2016 lisboa 12:03
    fazem uma falta como a fome. já nem vou dormir hoje.
  • JEB
    01 jul, 2016 LISBOA 11:47
    fazem cá uma falta... os pais deles é que não deviam ter nascido... chamar música à porcaria que produzem!!!

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