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Crónicas da América
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​Hillary “namora” a esquerda e soma apoios à direita

28 jun, 2016 - 00:36 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Pressionada pela necessidade de conquistar os apoiantes de Bernie Sanders, muito sensíveis às questões da regulação do mundo financeiro, Hillary poderá ser tentada a escolher Warren para sua vice-presidente.

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Dificilmente a semana poderia ter começado melhor para Hillary Clinton. Uma sucessão de acontecimentos políticos fizeram desta segunda-feira um dia auspicioso para a sua candidatura à Casa Branca.

A candidata começou o dia com um comício matinal em Cincinnati ao lado da senadora Elizabeth Warren, uma das mais emblemáticas representantes da ala esquerda do Partido Democrático.

Embora já tivesse proclamado o seu apoio a Hillary, Warren ainda não tinha comparecido na campanha e o entusiasmo que rodeou o comício de Cincinnati indicia que as duas mulheres estão agora em sintonia total após meses de distanciamento em que no Partido Democrático não faltou quem alimentasse a ideia de lançar a senadora como alternativa a Hillary.

Warren sempre recusou tal hipótese, mas o seu posicionamento à esquerda dentro do partido colocava-a bem mais próxima de Bernie Sanders do que de Clinton.

Com a corrida clarificada, a senadora do Massachusetts fez de Trump o alvo principal das suas críticas, enquanto o multimilionário ripostava no seu estilo habitual, chamando-lhe “pateta” e “Pocahontas”, numa alusão depreciativa a uma alegada ascendência índia de Warren.

Sem ser insultuosa, a senadora tem sido muito contundente com Trump, acusando-o de só pensar em si próprio e na sua fortuna. Em Cincinnati chamou-lhe um “pequeno e inseguro cavador de dinheiro”, motivado apenas pela “ganância e ódio”, que só pensa nos ricos como ele quando diz que quer fazer a América grande de novo.

Hillary confessou gostar da forma como Warren trata Trump, porque “o expõe tal como ele é: temperamentalmente inadaptado e totalmente desqualificado” para ser presidente. E elogiou o trabalho da senadora na defesa dos consumidores e na regulação financeira, prometendo que quando chegar à Casa Branca reforçará as regras para controlar Wall Street.

Este tem sido um ponto-chave do discurso de Elizabeth Warren e um dos que a colocam como um símbolo da esquerda do partido. Pressionada pela necessidade de conquistar os apoiantes de Bernie Sanders, muito sensíveis às questões da regulação do mundo financeiro, Hillary poderá ser tentada a escolher Warren para sua vice-presidente.

Fontes do Partido Democrático garantem que ela integra a pequena lista de candidatos em estudo pelo estado-maior de Clinton para essa função e o comício de Cincinatti terá sido mesmo (mais) um teste para essa corrida.

Para além do ineditismo de ter duas mulheres a concorrer aos dois cargos mais poderosos do país, a associação entre Hillary e Elizabeth resultaria numa equipa demasiado à esquerda no contexto do país e poderia alienar votos ao centro necessários para vencer a eleição geral em Novembro, segundo muitos analistas. E, afinal, com o apoio empenhado de Warren na sua campanha, Hillary estará em condições de garantir esses votos mesmo que escolha outro(a) companheiro(a) de lista.

América liberal

A convergência programática com essa ala mais esquerda do partido vai avançando também nos bastidores. Um comité de redacção do programa da candidata fez já um rascunho onde estão consagrados dois pontos reivindicados por Bernie Sanders na campanha. São eles o aumento do salário mínimo para 15 dólares/hora e a divisão dos bancos em corporações mais pequenas, para evitar que numa eventual nova crise financeira coloquem um risco sistémico e tenham de ser resgatados com dinheiros públicos (“too big to fail”).

Três outras reivindicações de Sanders não foram consagradas: o imposto sobre as emissões de carbono para a atmosfera; a proibição do “fracking”, a técnica de explorar o gás de xisto tida por muito poluente; e a rejeição do acordo de comércio livre com o Pacífico negociado por Obama, o TTP, que Hillary chegou a criticar durante as primárias.

Trata-se para já de um rascunho da plataforma política a apresentar à convenção democrática de Filadélfia em Julho e poderá sofrer ainda alterações, mas ele resulta de um comité onde vários apoiantes de Sanders têm assento e traduzirá já um consenso entre as partes.

A última palavra caberá certamente à candidata, mas tudo leva a crer que os dois pontos acordados lhe garantirão um sólido apoio da esquerda do partido e da América mais liberal.

Neste seu “namoro” com essa América, Hillary compareceu no domingo na parada gay de Nova Iorque, um gigantesco desfile que reuniu muitos milhares de pessoas que demoraram mais de cinco horas a descer a Quinta Avenida. Marcada pela recente tragédia de Orlando, onde 49 pessoas foram vítimas de um terrorista homofóbico, a parada contou com a presença do presidente da Câmara, Bill de Blasio, do governador do estado, Andrew Cuomo, e pela primeira vez com um senador federal – Chuck Schumer, eleito por Nova Iorque. Sem anúncio prévio, Hillary desfilou durante algum tempo junto dos outros eleitos, numa expressão de apoio à comunidade LGBT americana.

Mas ainda na segunda-feira, um outro acontecimento veio favorecer as suas posições políticas. O Supremo Tribunal revogou uma série de disposições legais que tinham sido aprovadas no Texas para dificultar a prática de abortos em clínicas. Uma decisão saudada pelos defensores da lei federal que permite a interrupção voluntária da gravidez, porque uma eventual aprovação das restrições texanas era vista como a antecâmara da ilegalização do aborto em todo o país.

Um revés para os conservadores e uma vitória para os liberais, que Hillary se apressou a saudar como “uma vitória para as mulheres do Texas e de toda a América”, porque “o aborto seguro deve ser um direito não só no papel, mas na realidade”.

A lei texana tinha sido aprovada em 2013 pela maioria republicana que domina o estado e assinada pelo ex-governador Rick Perry, que foi também candidato nas primárias republicanas de 2008. A decisão do Supremo Tribunal foi sentida como uma derrota histórica no campo conservador.

O apoio de Paulson e Scowcroft

Um campo onde as divisões causadas pela candidatura de Trump continuam a produzir dissidências. Desta vez foi um destacado membro da administração do presidente George W. Bush a declarar o seu apoio a Hillary. Henry Paulson era o secretário do Tesouro de Bush quando rebentou a crise financeira em 2007.

Em artigo publicado no “Washington Post”, Paulson relembra esses tempos difíceis e elogia o programa de relançamento que então teve o apoio de ambos os partidos e que permitiu evitar que a recessão degenerasse em depressão. Um consenso que considera impossível se Trump fosse presidente devido ao seu “carácter divisivo”.

Arrasador para tudo o que multimilionário tem dito durante a campanha, nomeadamente para as suas propostas no plano económico, Paulson ironiza: “Quando Trump nos diz que fará pelos Estados Unidos o que fez pelos seus negócios, isso não é uma promessa, é uma ameaça”.

Por isso, considera “impensável” uma presidência do magnata, que “destruiria empregos em vez de os salvar” e que representa um “populismo baseado na ignorância, no preconceito, no medo e no isolacionismo”.

“Isto perturba-me profundamente enquanto republicano, mas mais ainda enquanto americano. Basta. É tempo de pôr o país acima do partido e dizer em coro: Trump nunca!”, escreve Paulson, que anuncia ir votar em Hillary Clinton, sabendo que não está sozinho entre os republicanos.

E, de facto, não está. Um outro destacado republicano expressou também o seu apoio a Hillary. Brent Scowcroft, que foi conselheiro nacional de segurança dos presidentes Gerald Ford e George Bush (pai) e trabalhou com outros presidentes republicanos como Richard Nixon e George W. Bush (filho), veio também a público dizer que Hillary Clinton é a única entre os candidatos que traz “experiência e visão para a Casa Branca”.

Scowcroft é um especialista em questões de política externa e segurança, sempre foi considerado um moderado no seio do GOP e o presidente Obama, ainda recentemente, confessou a sua admiração pela sua capacidade de análise e ponderação dos problemas internacionais.

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