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"Não há um modelo único de ser padre”

26 jun, 2016 - 10:45 • Ângela Roque

No dia em que oito novos sacerdotes vão ser ordenados na diocese de Lisboa, a Renascença falou com o reitor do Seminário de Cristo Rei, nos Olivais, de onde saem cinco dos novos padres.

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Actualmente ninguém vai para padre para “garantir um futuro”, mas enfrentam-se outras dificuldades. Para o padre José Miguel Pereira é, sobretudo, a “crise de fé” que faz com que haja menos sacerdotes, assim como há menos casamentos. O reitor do Seminário de Cristo Rei, nos Olivais, diz que não há uma “modelo único” para ser padre, mas reconhece que o exemplo de proximidade do Papa tem sido inspirador.

No Seminário dos Olivais são acompanhados os seminaristas do 3.º ao 6.º ano de Teologia. Quantos alunos tem neste momento?

São 45, mas de nove dioceses: Lisboa, Santarém e Funchal, que são as que já estão há mais tempo, e depois Portalegre e Castelo Branco, Leiria-Fátima e Aveiro. Alguns seminaristas são das duas dioceses de Cabo Verde, Santiago e Mindelo. Temos também um acordo com a diocese de Cochim, na índia, e no próximo ano chegará o primeiro seminarista da diocese de São Tomé e Príncipe, que já está no Seminário de Caparide, onde decorrem os primeiros anos de formação (um ano propedêutico e o 1.º e 2.º anos do mestrado integrado em Teologia).

Quarenta e cinco alunos, mas de tantas dioceses, não é muito…

Não, não é. Corresponde a 16 de Lisboa, a diocese de Santiago tem oito, e depois as outras dioceses têm quatro, outras três.

Fala-se muito de crise de vocações, qual é a sua opinião sobre isto? Dramatiza-se às vezes demais?

Penso que sim. Penso que a crise das vocações sacerdotais tem a ver com a crise da fé, e portanto não é mais nem menos do que a crise das outras vocações, sejam as matrimoniais ou as laicais, conscientes e comprometidas. Tem a ver com uma ausência do sentido vocacional da existência. Nesse sentido creio que há um trabalho por fazer, não que a Igreja tenha descoberto isto há pouco tempo, mas falta implementar nas famílias e nas comunidades. Em termos de número as vocações sacerdotais estabilizaram nos anos 90, pelo menos aqui em Lisboa. Temos uma média de duas ou três ordenações por ano. Às vezes há um ano melhor, como este agora.

Em que vão se ordenados oito novos sacerdotes…

São cinco dos Olivais, dois do Seminário Redemptoris Mater, que forma futuros missionários, e há ainda um oitavo que é um religioso, paulista, da Sociedade de São Paulo.

Este momento das ordenações também é um momento importante para si, como reitor?

Sim. Como cristão e como padre já seria muito importante, porque é um sinal da misericórdia de Deus que continua, de forma visível, a mostrar que conduz o seu povo, para que a Igreja seja cada vez mais consciente e viva da sua missão de evangelizar. Como reitor é acompanhá-los e ver que a caminhada que foram fazendo chega a esta fase de compromisso, de consagração, de entrega. Ainda por cima, como eu tive uma altura em que fui formador no Seminário Menor, apanhei alguns no início da caminhada e agora apanho-os no fim, nesta transição para o ministério, e isso também traz algumas memórias e alguns motivos de dar graças a Deus.

Hoje é mais difícil formar sacerdotes do que era antigamente?

Bem, o meu antigamente são 20 anos, estou há 20 anos com responsabilidades na formação. Lá para trás não sei fazer assim uma comparação muito clara. Mas, mesmo ao longo destes 20 anos percebo que há desafios que se vão colocando, e que hoje alguns aspectos são um bocadinho mais exigentes.

A estruturação humana, as experiências de base, familiares ou eclesiais, são hoje mais plurais e às vezes menos solidamente enraizadas. Muitas vezes nas famílias há experiências humanas difíceis, e os seminaristas são fruto do seu tempo e da sua cultura, trazem os mesmos desafios que se vivem nas famílias. E o mesmo na catequese, na iniciação cristã.

Muitas vezes ainda é muito religiosa, muito generosa, muito voluntariado, muito serviço, devoção, mas falta uma solidez maior da relação teologal, da relação de fé onde é possível o encontro com Deus, que toca por dentro e transforma a vida. Por isso, às vezes, quando chegam ao seminário, ainda temos de iniciá-los muito nisso.

Portanto, é uma das preocupações dos formadores…

É um dos desafios, sim. A dimensão humana, a estruturação humana, do equilíbrio humano, da personalidade, da maturidade psicoafectiva e relacional, e a dimensão da iniciação da fé e da solidez duma relação teologal, uma fé que seja realmente de relação com Deus e não apenas de religiosidade, são dois desafios importantes.

Mas, podemos dizer que hoje a descoberta da vocação sacerdotal é feita de uma forma mais consciente, mais madura? Ou seja, quem vai hoje para padre quer mesmo ser padre?

Vai para isso. Não vai para estudar, para garantir um futuro.

Como acontecia há umas dezenas de anos, em que as crianças eram encaminhadas para o seminário nem sempre por uma opção amadurecida, porque eram muito pequenos.

Sim, isso não existe hoje. Mas, quando estava no Seminário Menor, todos os anos eu recebia telefonemas de mães que queriam lá pôr os filhos porque tinham problemas escolares, desadaptação nas turmas, chumbos repetidos, e ali havia disciplina.

Isto de vez em quando ainda existe, mas nesses casos há um acompanhamento no sentido de não os acolher por essas razões.

Também é verdade que no Seminário Maior muitas vezes nos batem à porta pessoas sem uma vida de fé comunitária, às vezes até sem relação com a Igreja e com os sacramentos, mas que estão desiludidos com o tipo de vida que levam, seja relacional, afectiva ou profissional. Claro que, também aí, o caminho é dizer que essas não são razões suficientes para se entrar no Seminário. Ou seja, há quem bata à porta um bocadinho iludido, e aí há um caminho prévio que é preciso fazer.

Depois também há gente que quer ser padre por uma experiência parcelar que viveu, que foi forte, mas não tem ainda consistência, e é preciso ajudá-los a fazer caminho. Por isso é que a Igreja tem vindo a multiplicar a experiência do tempo propedêutico. Começou por ser um ano, fala-se agora em alargar esse tempo, consoante os casos assim o exijam. Que seja um tempo de refundação das motivações vocacionais, de solidificação da dimensão da fé, alargamento da dimensão comunitária, até um conhecimento um bocadinho maior daquilo que é a Igreja. Tudo isto pode fazer com que muitas vezes as pessoas que vieram para o Seminário muito seguras de que era para serem padres, depois entrem em revisão e em crise. Muitas vezes isso acontece ainda na fase de Caparide, antes de chegarem aos Olivais.

Não há uma única forma, fechada, modelo, de ser padre. Mas, um padre ao serviço de uma diocese tem alguns dinamismos, na linha da frase de São Paulo “fiz-me tudo para todos, a fim de salvar alguns”, e portanto este aprender a ser tudo para todos, alargar-se aos dinamismos de um serviço a uma comunidade plural, muitas vezes leva alguns a repensarem se as razões que os trouxeram ao Seminário estavam suficientemente centradas ou orientadas para aquilo que se espera hoje de um padre secular, ao serviço de uma diocese.

Portanto, na formação há essa preocupação de ajudar a discernir, a fazer essa escolha da forma mais consciente e madura possível, e aprofundada espiritualmente.

Sim, claro. O que nós mais desejamos e que eles encontrem aquilo que Nosso Senhor quer deles. Não escondemos que a diocese precisa de padres, mas não queremos padres se Nosso Senhor não os chamar. Queremos acima de tudo que cada um encontre as formas de responder a Deus, de descobrir o seu caminho vocacional. Se for o sacerdócio, muito bem, se não, então que abracem outros caminhos vocacionais, de serviço à Igreja, segundo a vontade de Deus.

Podemos dizer que há hoje um novo estilo de ser padre, comparando com anteriores gerações?

Não gostava de fazer essa comparação. Há dinamismos diferenciados. Eles hoje estudam numa universidade onde têm outros colegas, rapazes e raparigas, de outros cursos com quem se cruzam no Campus Universitário, na Faculdade de Teologia da Universidade Católica. Fazem formação pastoral nas paróquias, onde contactam com diversas pessoas, novos e menos novos, de várias condições. A internet hoje é um mundo que entra pelo Seminário dentro, eles estão no Seminário permanentemente em diálogo com o mundo inteiro.

Tudo isso traz desafios próprios de proximidade, e também de dispersão, exigência de uma busca de vida interior, adequados aos tempos de hoje. A pluralidade e a globalização são traços do tempo de hoje, e por isso os rapazes, os padres novos que saem do Seminário, não saem segundo um modelo único, saem com sensibilidades, com acentuações, com perspectivas, mesmo pastorais, doutrinais, disciplinares, que não são exactamente iguais em todos. O Seminário tenta oferecer aquilo que parecem ser as propostas do Concílio Vaticano II, da Exortação Pastores Dabo Vobis (de João Paulo II), dos documentos da formação sacerdotal que actualmente estão em revisão pela Congregação do Clero. E o Seminário procura responder a isso e oferecer esse horizonte - um padre segundo os desafios que a Igreja vai lendo para os tempos de hoje.

E o exemplo de proximidade do actual Papa já obrigou a rever alguma coisa em termos de formação?

Em termos estruturais não, até porque alguma reflexão que nós vínhamos fazendo coincidiu, ainda, com a fase final do Papa Bento XVI, e com a chegada do Papa Francisco. Agora, os desafios da Evangelii Gaudium, da Amoris Laetitia, até das homílias que o Papa faz diariamente, o próprio Jubileu da Misericórdia, tudo isso acentua traços daquilo que um padre deve ser enquanto ponte, enquanto acolhimento e pastor que acompanha, umas vezes à frente do rebanho, outras vezes no meio, outras atrás, consoante os dinamismos e as necessidades do povo de Deus.

O Papa diz que os pastores devem ter “cheiro a ovelhas”…

Exactamente.

Para finalizarmos, quer deixar alguma mensagem a estes novo sacerdotes da diocese de Lisboa ordenados este domingo?

Posso partilhar aquilo que muitas vezes lhes digo: que quando chegarem a uma comunidade cristã, na primeira missão que o Patriarca lhes vai dar, que não se esqueçam que não se põe à porta da igreja “abre com nova gerência”. A Igreja é um povo que caminha muito antes de nós, vai continuar a caminhar muito depois de nós passarmos, e a nós é-nos dada a graça de servirmos neste momento, com as nossas qualidades e defeitos, com a nossa criatividade, mas numa torrente enorme que é guiada por Deus, e é Ele que garante. Digo-lhes muito a eles isto, que queiram muito aprender com o povo de Deus, aprender com os padres mais velhos, dar o seu contributo, mas fazer caminho em conjunto, na tal perspectiva da sinodalidade, que a diocese de Lisboa tem vindo a acentuar com a caminhada sinodal, e a próxima assembleia sinodal é no Outono.

Que eles queiram muito fazer este caminho em Igreja, na certeza de que é Deus quem garante e quem sustenta, nas alegrias e também nas dificuldades e nas tensões, que também sempre podem existir.

A entrevista ao padre José Miguel Pereira vai ser transmitida no programa “Princípio e Fim” este Domingo, a partir das 23h30.

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