30 mai, 2016 - 12:20 • José Bastos
A conjuntura é desfavorável. Os Estados Unidos olham mais para a Ásia que para a Europa, mas... Portugal terá sempre as Lajes. A pura geografia garantirá sempre o futuro da relação Lisboa-Washington. “Há três bases que os Estados Unidos nunca abandonarão: Diego Garcia, no meio do Índico; Guam, no meio do Pacífico; as Lajes, no meio do Atlântico”, diz à Renascença Tiago Moreira de Sá.
O historiador é autor do livro "História das Relações Portugal-EUA (1776-2015)", o primeiro a aprofundar toda a história diplomática luso-americana. A obra defende que a relação Portugal-Estados Unidos vai muito além do mero significado estratégico dos Açores, “mais próximos da costa atlântica dos EUA que o Havai da costa do Pacífico”, como relembrou Roosevelt.
Os 240 anos da história luso-americana, investigados no âmbito de um projecto da Universidade Nova de Lisboa financiado pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), são pontuados por protagonistas, muitos deles desconhecidos da maioria dos portugueses. Peter Francisco, Andrade Corvo, John Philip Sousa ou o Abade Correia da Serra são alguns destes nomes.
De Peter Francisco terá dito George Washington “valer mais que um exército inteiro”. Ao abade Correia de Serra, Thomas Jefferson reservava um quarto na casa de Monticello, “o quarto do Abade Correia”, revela Tiago Moreira de Sá. Correia da Serra chegou à América em 1812 e foi dos primeiros diplomatas a perceber a importância dos Estados Unidos para Portugal. Ah! E a declaração da independência dos EUA foi celebrada com vinho da Madeira. Sabia?
Em traços gerais, quais foram as constantes e linhas de força das relações Portugal-EUA desde 1776 até à actualidade?
As relações entre Portugal e os Estados Unidos foram moldadas ao longo do tempo por três circunstâncias condicionantes essenciais: a evolução da distribuição de poder no sistema internacional, os grandes acontecimentos mundiais e a dinâmica geral da ligação entre a Europa e a América.No primeiro caso, as transições da multipolaridade para a bipolaridade e desta para a unipolaridade tiveram um muito importante impacto no relacionamento luso-americano, sobretudo as duas últimas distribuições de poder, que correspondem aos momentos em que os EUA foram uma das duas superpotências mundiais (a bipolaridade) e a única superpotência, também chamada de hiperpotência, mundial (a unipolaridade).
Também os grandes acontecimentos como as revoluções - a americana, a francesa e mesmo, noutro plano, a portuguesa, de 1974, - e as guerras totais moldaram o relacionamento luso-americano. É justamente por isso que praticamente todos os capítulos do livro começam ou por uma guerra total ou por uma revolução.
Como referiu Hannah Arendt, a Revolução Francesa “quebrou a ligação entre o Novo Mundo e os países do Velho Continente” levando “à ruptura dos fortes laços políticos e espirituais entre a América e a Europa, que tinham prevalecido durante os séculos XVII e XVIII”. Ora, isso também é verdade para o caso português. Já as guerras totais do século XX - a de 1914-1918 e a de 1939-1945 – levaram à dinâmica contrária, conduzindo ao chamado “reencontro atlântico”. E também ao “reencontro luso-americano”.
Finalmente, o diálogo entre Lisboa e Washington tendeu a convergir com o quadro mais vasto da conexão entre a Europa e a América, acompanhando os seus ciclos de afastamento e de aproximação.
Ainda assim, alguns portugueses compreenderam mais cedo a importância dos EUA para a Europa e para Portugal, e vice-versa, como, por exemplo, o abade Correia de Serra.
É verdade. Em Fevereiro de 1816, o abade Correia da Serra foi designado ministro plenipotenciário dos Reinos de Portugal, Brasil e Algarves nos EUA e, não obstante as várias dificuldades conhecidas durante a sua missão diplomática, foi dos primeiros a perceber o potencial estratégico de uma relação próxima entre os dois países, a quem muitas vezes se referia como “as duas grandes potências do hemisfério ocidental”, tendo chegado a propor uma “quase aliança” entre elas.
De resto, Correia da Serra, chegou aos EUA em 1812, seduzido pelas ideias liberais do ainda jovem país, tendo estabelecimento de imediato uma relação muito próxima com várias personalidades norte-americanas, como Thomas Jefferson, James Madison e John Quincy Adams.
É especialmente famosa a amizade do abade com Jefferson, tendo o primeiro passado a visitar o segundo na sua casa em Monticello, onde tinha um quarto, que ficou conhecido como o “quarto do abade Correia”, localizado logo em frente dos aposentos do famoso presidente dos EUA e autor do texto da declaração de independência. O norte-americano referiu-se sempre ao português com grande admiração e amizade, considerando-o a “mais amável e atraente personalidade” e “o homem mais sabedor que encontrei em qualquer país”.
Portugal foi dos primeiros países a reconhecer a independência dos EUA, apesar da primeira reacção ter sido muito dura.
De facto, Portugal começou por reagir com grande dureza e acabou por ser dos primeiros países a reconhecer a independência norte-americana, o que se explica, sobretudo, por motivos internos portugueses.
Quando se dá a independência dos Estados Unidos, Portugal era governado pela dupla D. José/Marquês de Pombal, que tinham uma orientação de política externa de completo alinhamento com o Reino Unido. Por esse motivo, o país adoptou mesmo uma posição bastante hostil em relação aos norte-americanos, chegando Pombal a referir-se aos acontecimentos de 1776 como “um exemplo tão pernicioso” que devia “interessar até aos príncipes mais indiferentes”, levando-os a “negarem todo o auxílio, directo ou indirecto”, e a decidir fechar os portos portugueses aos navios dos EUA.
Porém, em Fevereiro de 1777, morreu o Rei D. José, tendo-lhe sucedido D. Maria I, que demitiu o Marquês de Pombal e alterou a política externa portuguesa no sentido de dotá-la de maior autonomia relativamente à Aliança Inglesa, o que se explica, em larga medida, o facto de, como refere, Portugal ter sido juntamente com a França e a Holanda dos primeiros países a reconhecer a independência norte-americana.
Convém ainda assim ter presente que tal só aconteceu em Novembro de 1782, já depois de ter sido assinado, em Paris, o tratado preliminar de paz entre os britânicos e os norte-americanos, embora antes do Tratado de Paz de Paris de 3 de Setembro de 1783.
Como se explica, então, o facto de, durante grande parte do século XIX, as relações entre os dois países nunca terem atingido um ponto de grande importância?
Em geral, podemos afirmar isso, tendo havido vários motivos. Em primeiro lugar, motivos internos portugueses, como sejam a persistente crise política e o longo período de guerra civil intermitente no país. Em segundo lugar, razões internas norte-americanas, com destaque para a predominância da escola isolacionista na política externa, e a guerra civil. Finalmente, para referir apenas os aspectos mais relevantes, a prioridade absoluta dada por Portugal à aliança com a Grã-Bretanha: simplesmente, para os decisores políticos portugueses, havia Londres e depois o resto. A excepção foi a crise do Ultimato.
Todavia, durante esse século, houve dois momentos muito importantes para o relacionamento Portugal-EUA: a guerra civil norte-americana e a guerra hispano-americana. Ambos os acontecimentos destacaram a importância estratégica dos territórios portugueses, quer continentais quer insulares, com destaque para o porto de Lisboa e as ilhas atlânticas dos Açores, Madeira e Cabo Verde.
E houve também o período de Andrade Corvo, o primeiro a ter uma grande visão para o relacionamento luso-americano no conjunto da política externa portuguesa...
Andrade Corvo é uma personalidade fundamental na história das relações entre Portugal e os Estados Unidos, para além de ser uma pessoa fascinante e das que melhor pensou a política externa do país. Ele foi o primeiro a pensar - e a começar a executar - uma estratégia de aproximação entre Lisboa e Washington, antecipando em mais de meio século a aliança estabelecida entre os dois países após a Segunda Guerra Mundial.
Vale a pena recordar o que ele escreveu a este respeito, numa das suas obras mais importantes, intitulada "Perigos": “Activam-se de dia para dia as relações entre os Estados Unidos e a Europa. Atraída pela sua simpatia com o movimento democrático, chamada pelos seus vastos interesses comerciais a unir-se cada vez mais com o antigo mundo, impelida pela sua própria grandeza a entrar no largo movimento da civilização e da vida política dos estados europeus, a república dos Estados Unidos precisa ter, seguro e franco, o acesso à Europa. A posição geográfica de Portugal, com as ilhas dos Açores situadas no caminho da América, está mostrando que é ele o Estado da Europa, cujas relações mais proveitosas podem ser à república americana. (…) Portugal é para a América do Norte a fronteira da Europa, como para a Grã-Bretanha é a Bélgica a fronteira do continente.”
Apesar de todos esses antecedentes, o século XX marcou aquilo a que chama “o reencontro atlântico”, tendo as relações luso-americanas acompanhado esse contexto mais vasto. Quais os factores estruturais do processo de aproximação entre Portugal e os EUA que culminou na aliança entre os dois países no pós-1945?
O principal factor foi geopolítico, mais concretamente a importância geopolítica dos Açores, durante as duas guerras totais do século XX e a Guerra Fria. A comprovar isso mesmo, logo durante o primeiro conflito mundial, os EUA tiveram uma base militar em Ponta Delgada. Seguiu-se, na Guerra de 1939-1945, a base de Santa Maria, e, depois, a conhecida base das Lajes.
No pós-1945, Portugal e os Estados Unidos institucionalizaram a sua relação numa dupla forma: primeiro, através da aliança bilateral, formalizada pelo acordo de cooperação militar luso-americano cujo epicentro é a base das Lajes; segundo, pela aliança multilateral traduzida na NATO.
Para demonstrar a importância desta dupla aliança - e, logo, da América - para Portugal, talvez seja suficiente recordar que foi o antiliberal, antidemocrático e antiamericano Salazar quem decidiu abandonar a tradicional política de neutralidade do país e integrar o bloco militar norte-americano.
Porém, durante todo o período em que durou a Guerra Fria, houve altos e baixos no relacionamento luso-americano...
É verdade, sendo possível identificar como o momento mais baixo a crise do período da administração Kennedy e como o mais alto o da transição democrática portuguesa.
No primeiro caso, o centro da tensão esteve na questão colonial, agravada por uma sucessão de acontecimentos que suscitaram, a um dado momento, a própria questão de um eventual apoio norte-americano a uma mudança de regime em Portugal. Neste âmbito de engrenagem da crise mais grave da relação entre os dois países até então, podemos destacar o “caso Santa Maria”, o “golpe Botelho Moniz”, a questão africana - com destaque para a política crescentemente anti-portuguesa de Washington e mesmo a existência de algum apoio aos movimentos nacionalistas angolanos e moçambicanos - e as restrições na política de venda de armas a Lisboa.
De acordo com o ministro dos Negócios Estrangeiros português de então, Marcello Mathias, aquando da eleição de John F. Kennedy, as relações entre Portugal e os Estados Unidos eram “excelentes”, não havendo “qualquer problema”. Todavia, durante o curto tempo da sua presidência, os dois países conheceram a mais grave crise até então.
No segundo caso, como escreveu José Medeiros Ferreira, a acção dos Estados Unidos na construção da democracia portuguesa abriu uma nova oportunidade de estabelecimento de uma relação bilateral essencial entre os dois países. Tal sucedeu, sobretudo, no período compreendido entre o fim do processo revolucionário (PREC) e a conclusão da transição democrática, altura em que o papel dos Estados Unidos em Portugal foi mais fundamental, o que teve como consequência a elevação das relações luso-americanas a um patamar de importância só comparável ao da Segunda Guerra Mundial e ao do imediato pós-conflito.
Neste intervalo de tempo, os EUA desempenharam realmente um papel liderante no apoio à democracia portuguesa, destacando-se o caso do chamado “grande empréstimo”. Este consistia na concessão de um empréstimo bilateral de Washington a Lisboa, no valor de 240 milhões de dólares, na criação de um consórcio internacional integrado por países aliados para a concessão de uma ajuda económica que ascendia a 1,5 mil milhões de dólares (o “grande empréstimo” propriamente dito) e no apoio aos esforços portugueses para a obtenção de crédito no âmbito do FMI e do Banco Mundial.
Refere, no final do livro, que as relações Portugal-EUA estão a atravessar hoje porventura a mais grave crise desde a inserção de Lisboa na Aliança Atlântica. Quais os motivos dessa crise?
De facto, a relação entre Portugal e os Estados Unidos está a passar por uma grave crise, que se dá a dois níveis - europeu e português -, revelando, em ambos os casos, uma dupla tendência de deslocação para Oriente.
Como eu escrevi, a Europa está a perder relevância no contexto das prioridades da política externa norte-americana, quer em consequência do seu “retraimento” estratégico, quer em resultado de uma maior concentração na Ásia-Pacífico, sobretudo, devido à ascensão da China. Portugal está a perder importância estratégica, não só por causa da deslocação dos EUA para a Ásia, mas, mesmo no continente europeu, devido a uma maior aposta no Leste, por causa do ressurgimento da Rússia, acrescendo a tudo isto a nova prioridade espanhola da América, traduzida na desvalorização das Lajes e na valorização de Sevilha no contexto da redefinição das bases norte-americanas na Europa.
Para Portugal, é essencial reparar o estado das relações luso-americanas, devendo tal ser feito valorizando esse relacionamento em geral e os aspectos em que tem havido uma evolução muito positiva - como na área tecnológica -, devendo o assunto da base dos Açores esperar por melhores dias. É preciso ter paciência. A conjuntura é desfavorável. Mas a estrutura - a geografia - está do nosso lado. Afinal, não obstante as evoluções ocorridas, entretanto, a vários níveis, continua a ser um facto da pura geografia, que, tal como afirmou Franklin Delano Roosevelt durante a Segunda Guerra Mundial, os Açores estão mais próximos das costas do Atlântico dos EUA do que o Havai está das suas costas do Pacífico. Há três bases que os norte-americanos nunca abandonarão: Diego Garcia, no meio do Índico, Guam, no meio do Pacífico, e as Lajes, no meio do Atlântico.
Ao longo do livro, conta pequenas estórias muito curiosas e, eventualmente, desconhecidas do público em geral. Acha que existe um desconhecimento das relações luso-americanas em Portugal?
Acho que sim e esse é um dos motivos que me levou a escrever este livro. Mais: há na Europa um desconhecimento muito grande da realidade norte-americana, o que resulta de olharmos para os EUA exclusivamente com lentes europeias, ou seja, vemos os americanos como se fossem europeus e nada pode estar mais longe da realidade.
De facto, houve vários momentos em que Portugal - ou portugueses - marcou a história da América. Por exemplo, a declaração da independência dos EUA foi celebrada com vinho da Madeira, de resto muito apreciado pelos “pais fundadores”, como o próprio Thomas Jefferson.
Outro exemplo é o de Peter Francisco, um herói da guerra da independência, constando mesmo que George Washington terá chegado a afirmar que ele valia mais do que um exército inteiro. Com uma estatura física de mais de dois metros, ele ficou conhecido como o “Gigante da Revolução” ou o “Hércules da Virgínia". Reza o mito que o português terá mesmo carregado sozinho o famoso canhão de 500 quilos da batalha de Camden.
Igualmente famoso, ficou John Philip Sousa, filho de país português, que, enquanto director da banda dos Marines, compôs algumas das marchas militares mais famosas dos EUA: “The Gladiatior (1886) , “Semper Fidelis” (1888) e The Stars and Stripes Forever (1896). Esta última foi mesmo oficializada, em 1987, pelo Congresso norte-americano, como a marcha nacional dos Estados Unidos. Por todas estas razões, John Philip Sousa ficou conhecido como o “Rei das Marchas”. Finalmente, para destacar apenas alguns exemplos mais conhecidos, há a já referida amizade especial entre o Abade Correia de Serra e Thomas Jefferson.