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Censura, polémica e activismo: o outro lado do festival Eurovisão da Canção

24 mai, 2016 - 11:04

Festival faz 60 anos. A primeira edição realizou-se a 24 de Maio de 1956, em Lugano, Suíça, país que venceria o concurso.

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A primeira participação portuguesa no festival Eurovisão da Canção data de 1964, ano em que o regime de ditadura de Oliveira Salazar daria origem a um dos acontecimentos dessa edição, o protesto em palco que a RTP não mostrou.

Na altura, o festival somava oito edições e a história é recordada à agência Lusa pelo investigador Jorge Mangorrinha, a propósito da passagem dos 60 anos do festival da União Europeia de Radiodifusão, que se assinala esta terça-feira. A primeira edição realizou-se a 24 de Maio de 1956, em Lugano, Suíça, país que venceria o concurso.

Portugal participou pela primeira vez em 1964, em Viena. "Nunca um artista português tinha cantado para um público tão vasto (150 milhões de pessoas)", conta Jorge Mangorrinha, "daí que talvez houvesse uma preocupação acrescida" das autoridades, em plena ditadura.

"A imagem externa fragilizada do regime político português fez com que António Calvário estivesse sempre acompanhado por um elemento do consulado, que o prevenia constantemente para ter controlo nas declarações", recorda.

"O cantor regressou sem poder falar do incidente e com zero pontos na bagagem, apesar de a sua interpretação" ter sido "considerada uma das melhores". "Portanto, o que mais marcaria este festival, à parte as canções, teria a ver com Portugal, ou seja, um protesto político depois da actuação da intérprete suíça: um homem entrou em palco e exibiu um cartaz com 'Boycott Franco & Salazar' ['Boicotem Franco e Salazar']".

"Na gravação áudio disponível ouve-se o alarido", assegura Mangorrinha. "Enquanto isto decorria, os espectadores passaram a ver um quadro de votações, até o intruso ser retirado. A competição continuou sem mais sobressaltos".

Onze anos mais tarde, em 1975, a canção "Madrugada", de José Luís Tinoco, que Duarte Mendes e o maestro Pedro Osório levaram a Estocolmo, evocou a madrugada de 25 de Abril de 1974: "Da força nascida no medo/ a raiva à solta manhã cedo (...) rompe a canção que não havia".

Duarte Mendes, que foi um dos capitães de Abril, actuou com um cravo vermelho na lapela, tendo causado perplexidade, sobretudo junto da imprensa internacional, segundo o autor da canção, quando, num dos ensaios, cantou a versão inglesa, tornando evidente a relação com a queda do regime.

Em 1970, Portugal não participou na Eurovisão, num protesto "quanto ao método de votação que deu os últimos lugares a Simone de Oliveira em 1969 [com 'Desfolhada'], em vez da esperada vitória", segundo Mangorrinha.

A RTP, porém, organizou um concurso para consumo interno, sem "repercussão eurovisiva", depois do eurofestival.

"Houve um grande investimento, mobilizando todos os recursos técnicos, contratando artistas estrangeiros, fazendo parceria com a TVE para a transmissão para Espanha, programando o espectáculo até às duas horas da madrugada e assegurando um ambiente mundano", recorda o investigador, que vê aqui "a prova do desfasamento da RTP com os objectivos eurovisivos".

Mangorrinha vê como "correto repudiar o que se passou em 1969 e não ir à Eurovisão no ano seguinte", mas interroga-se: "Fazer este investimento sem repercussão internacional, porquê? Porque é que [a RTP] não manteve o investimento nos anos seguintes?"

Em 1969, no final da votação, houve um empate de quatro países, que acabaram por ser declarados vencedores - Espanha, França, Reino Unido e Holanda - o que levou vários participantes a contestar o sistema de votação. A Áustria já não tinha participado nesta edição, num protesto ao ditador Francisco Franco.

Em 1968, o caudilho de Madrid determinara, aliás, a não participação do cantor Joan Manuel Serrat no festival, escolhido para a representação, por ele pretender cantar a felicidade de "Lalala", em catalão, nas televisões europeias.

A canção foi entregue então a Massiel, que venceu o concurso, sucedendo à britânica Sandie Shaw, intérprete de "Puppet on a string", que, em 1967, se apresentara em palco descalça e com um mini-vestido.

Passados 30 anos, em 1988, a vitória de Dana, cantora transexual de Israel, concentrou igualmente a atenção mediática, à semelhança de Conchita Wurst, alter-ego do austríaco Thomas Neuwirth, que venceu o concurso Eurovisão, em 2014.

Num certame que, desde o início, se quis alheio a questões de ruptura política ou social, a Ucrânia voltou a colocá-las na mesa, na 61.ª edição, no passado dia 15, com a vitória de "1944", que evoca a deportação dos Tártaros da Crimeia, pelo ditador russo Josef Estaline, dois anos depois de a Rússia ter anexado a região.

"Queria cantar uma canção sobre paz e amor", disse a cantora Jamala, ao receber o prémio. Várias personalidades russas apelaram de imediato ao boicote do festival da Eurovisão em 2017.

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