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Entrevista

Afonso Cruz inventou um poeta de estimação para destruir a ditadura dos números

19 abr, 2016 - 06:30 • Maria João Costa

Que fazer quando tudo é reduzido a quantidades e valores? "Vamos Comprar um Poeta" é o novo livro de Afonso Cruz. Leia a entrevista e ouça o escritor a ler um excerto do livro.

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“Vamos Comprar um Poeta” (ed. Caminho) é o novo livro do escritor Afonso Cruz, que é apresentado esta terça-feira, às 18h30, na livraria Leya na Buchholz, em Lisboa.

Numa sociedade em que tudo tem de dar lucro e tudo é contabilizado, o autor cria uma ficção na voz de uma criança de 12 anos que desafia a família a ter um poeta em casa. Este “animal” de estimação leva a família a aprender outros valores – a cultura, a beleza, as palavras.

“Vamos Comprar um Poeta” é um livro sobre o real valor da poesia?

Seria um pouco pretensioso da minha parte imaginar que estaria a passar assim valores tão dogmáticos como o verdadeiro valor da poesia. Acima de tudo, é um livro que fala da cultura e da importância da cultura nas nossas vidas e quotidiano.

Em parte, pela felicidade que a cultura pode trazer à vida e ao bem-estar e que não é de somenos e que se calhar até é a coisa mais importante da cultura. Mas é também um livro que fala das consequências e dos benefícios ulteriores da cultura que, para espanto de algumas pessoas, pode ser mais lucrativa do que algumas áreas da indústria que imaginamos que podem dar mais dinheiro do que a cultura. A cultura emprega muita gente e dá muito dinheiro, efectivamente.

Escolheu como narradora uma criança de 12 anos.

Sim, uma adolescente que vive numa sociedade em que tudo é contabilizado, o discurso é muito à volta da economia e do lucro. É uma sociedade onde as coisas que não são propriamente úteis – ou seja, que não geram benefício – não são valorizadas, que é algo que acontece cada vez mais na nossa sociedade.

Vemos o apoucamento de cursos como Humanidades ou Ciências Sociais, que cada vez mais se diz que não geram lucro imediato e que por isso não são tão importantes, quando efectivamente são tão importantes como outra coisa qualquer. São essenciais para o crescimento social e para o melhoramento da sociedade.

É esse outro valor, o da cultura, que o pai, que traz a crise económica para dentro de casa, aprende com a filha?

Claro. Em todas as áreas é necessária a criatividade, se não simplesmente repetimos um processo. É evidente que assim não conseguimos produtos de excepção e são esses que farão vingar empresas seja do que for. Podemos falar de óculos escuros ou de calçado. É preciso que haja criatividade para que apareçam produtos que não sejam amorfos e produtos novos que possam trazer algum apelo ao consumidor. Por isso, é necessária essa criatividade, quanto mais não seja para que os trabalhadores sejam mais eficientes e capazes naquilo que fazem e produzem.

Esta rapariga quer ter um poeta, quase como um animal de estimação.

Exactamente, e é essa ideia. Se pensarmos nos animais de estimação no campo eles têm uma utilidade, ou porque guardam e pastoreiam. Mas na cidade não. Há muito mais essa ideia sem outra função que não seja a companhia ou o prazer de partilhar momentos. Neste caso, a ideia do poeta e da cultura é que, independentemente das consequências que terá, ela vale por si mesma. Não tem o tal benefício ulterior, mas tem um fim em si mesma. É como a felicidade. Nós não dizemos: “Eu sou feliz para ganhar dinheiro”, por exemplo. Nós somos felizes, ponto final.

E se esta rapariga tivesse antes desejado comprar um escritor? Teria o mesmo benefício?

Sim, creio que sim. Inicialmente, ela até está indecisa entre um poeta ou um artista plástico. Na verdade, poderia ter comprado um bailarino, um actor ou uma série de profissões cujo fim reside em si mesmo, é imanente.

Mas com o poeta ela aprende também o valor das palavras.

Sim, é um exercício de liberdade. Ela não fica confinada a determinadas coisas que nos limitam, determinado tipo de pensamento. A arte gera essa possibilidade de gerar rupturas, de abrir brechas naquilo que definimos como o nosso mundo e de nos mostrar coisas que estão para além daquilo que nós imaginamos e que é o nosso limiar de consciência possível.

A arte, ao colocar interrogações sobre essas mesmas paredes e muros que construímos, vai abrindo pequenas frestas para que possamos olhar para lá dessas paredes. Isso é essencial, estejamos a falar de economia ou da nossa felicidade e quotidiano. É sempre essencial um crescimento.

Abre janelas?

A verdade é que há outro tipo de crescimento, o crescimento interior, que me parece mais salutar e mais desejável do que o simples acumular de objectos ou de coisas que dão uma felicidade momentânea e que passado um tempo deixam de ter esse efeito e poder. O crescimento interior é um valor muito mais seguro porque é eterno.

Este é um livro para crianças ou para adultos?

Tento que seja para muita gente. É muito difícil definir os leitores. Há crianças com oito anos que são grandes leitores. Creio que a partir da altura em que compreendem as metáforas é sem limite, acho que é um livro para todas as idades.

A que poetas pediu a poesia emprestada para compor a personagem do poeta?

Foram muitos. Alguns já perdi o rasto e há outros que me marcaram muito. Gosto muito de poetas como E. E. Cummings, Herberto Hélder, Dylan Thomas, Robert Frost e Wallace Stevens.

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  • 19 abr, 2016 19:41
    Super
  • Graça
    19 abr, 2016 Funchal 09:46
    excelente entrevista. :)

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