Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

Como chegou Mercator ao seu mapa? Investigadores portugueses desvendam mistério

16 abr, 2016 - 08:28 • Filipe d'Avillez

Henrique Leitão e Joaquim Alves Gaspar foram à procura no Mapa de Mercator e encontraram Pedro Nunes.

A+ / A-

Uma dupla portuguesa desvendou um dos grandes mistérios da história da ciência, mais especificamente, da cartografia, dos últimos séculos. Henrique Leitão e o comandante Joaquim Alves Gaspar descobriram como é que foi criado o mapa de Mercator em 1569, que viria a permitir revolucionar a navegação marítima. A solução encontrada pelos investigadores é também portuguesa, chama-se Pedro Nunes.

A Renascença falou com Joaquim Alves Gaspar, um ex-oficial da Marinha e especialista em cartografia, que nesta entrevista procura explicar, para leigos, a importância da sua descoberta.

Comecemos pelo princípio. O que é a Projecção de Mercator e quem foi Mercator?

Gerardo Mercator foi um cartógrafo flamengo do século XVI. Em 1569, apresentou ao mundo um grande planisfério, uma grande carta com o título, em latim, "Nova et Aucta Orbis Terrae Descriptio ad Usum Navigatium Emendate", ou seja, "Nova e melhorada representação do mundo correctamente adaptada para o uso da navegação”.

Até então, as cartas náuticas faziam-se do modo mais ingénuo possível. Marcava-se num papel as observações que se fazia a bordo, à superfície da terra. As observações de rumo, que eram feitas com as bússolas, e também as distâncias, que eram estimadas a olho, pelos pilotos, e, a partir de certa altura, as latitudes, que eram medidas astronomicamente.

Mas tudo isto era feito de forma empírica. Aquilo que se observava à superfície da terra era marcado directamente no plano. Isto não funciona, porque a Terra é esférica e não é possível representar a Terra numa folha de papel sem haver distorções. Isto fazia-se, não por ignorância dos cartógrafos ou dos pilotos, mas porque os métodos disponíveis para navegar na altura assim o exigiam. O que Mercator fez foi uma representação da Terra que é particularmente adaptada ao uso da navegação.

Como assim?

Os navios que navegam através da bússola e da agulha magnética fazem trajectos que, em termos científicos, se chamam trajectos loxodrómicos ou, em termos mais comuns, linhas de rumo. Podemos pensar que essas linhas, à superfície da Terra, eram o caminho mais curto entre dois pontos, que eram linhas rectas sobre a esfera, mas não é nada disso.

Imagine que parte do Equador e segue um rumo constante nordeste. Nordeste é um rumo que faz 45 graus com a direcção do Norte. A cada passo do seu percurso, o seu caminho faz sempre um ângulo de 45 graus com os meridianos. Mas acontece que os meridianos estão a convergir para o pólo, numa Terra esférica. Portanto, essa linha vai-se aproximando sempre do pólo, não é uma linha recta, é uma linha curva, e, se nós a deixarmos continuar, ela vai fazer uma espiral em torno do pólo.

Esta é a chamada linha de rumo, que é a linha seguida, normalmente, pelos navios à superfície do mar. Quem se apercebeu que esta linha era estranha foi o Pedro Nunes, em 1537, através do seu tratado “Em Defesa da Carta de Marear”. Ele reparou que havia uma diferença entre o caminho mais curto entre dois pontos à superfície da terra e essa linha de rumo.

A grande propriedade da projecção materializada por Mercator é que essas linhas de rumo são representadas por segmentos de recta. É de uma extraordinária importância para a navegação, que fica muito facilitada pelo facto de o piloto poder chegar à carta, ler directamente um rumo entre dois pontos, que é a direcção da linha que os une, ou marcar directamente um rumo entre os dois pontos.

Como é que ele o conseguiu? Afastando os paralelos entre si. Nesta projecção de Mercator, teoricamente, tanto os meridianos como os paralelos são representados por segmentos de recta, e as tais linhas de rumo são também representadas por segmentos de recta e, ainda por cima, correctamente orientadas em relação à linha Norte-Sul. Actualmente, através das ferramentas do cálculo matemático, é fácil deduzir uma fórmula que nos constrói a projecção de Mercator. Mas, na época de Mercator, a matemática era relativamente primitiva. Ele fê-lo por métodos empíricos. Que métodos? Ninguém sabe, porque ele não o disse.

E ninguém tinha tentado solucionar este mistério?

Houve várias propostas feitas internacionalmente por muitos historiadores do mundo, mas nenhuma apresentou a solução correcta. Como é que sabemos que a solução é correcta? É imaginarmos que a projecção foi feita de determinada maneira empírica, através de uma fórmula geométrica, etc., e, depois, comparar os resultados desse processo com a carta propriamente dita.

Até agora, nenhuma passou esse teste. Em primeiro lugar, porque os autores não souberam analisar bem a geometria da carta de Mercator, porque não se aperceberam dos erros da distorção do próprio papel, que se deforma ao longo do tempo. Os autores que foram medir a geometria da Carta de Mercator não descontaram essas deformações. Nós conseguimos, através de um método engenhoso, descontar essas deformações. Portanto, ficámos em mão com os números originais, digamos assim, que Mercator utilizou para construir a sua projecção. Isto era um passo absolutamente crucial. Não seria possível saber como Mercator o fez sem ter acesso àquilo que seria a carta no momento em que foi impresso.

A segunda falha foi que esses historiadores não conseguiram introduzir-se no ambiente histórico e científico da época de Mercator, em particular com as ligações que Mercator tinha às pessoas do seu tempo, os seus pares, muito em particular a Pedro Nunes.

As tais placas de cobre não sobreviveram?

Desapareceram. Provavelmente, foram reutilizadas.

Como é que Pedro Nunes intervém no processo?

Por volta de 1540, estala uma polémica em Portugal, por escrito, entre Pedro Nunes e um desconhecido, que propõe aquilo a que chama tabelas de rumos. São listas de pontos, coordenadas de latitude e longitude, destinadas a marcar numa esfera uma linha de rumo. Se agarrarmos nessa tabela e a colocarmos numa esfera, para um determinado rumo, por exemplo, o rumo de nordeste, vamos obter a tal espiral em direcção ao polo.

Nessa época, os cosmógrafos - e Pedro Nunes, em particular - consideravam que este era um problema absolutamente fulcral para resolver, que não tinha nada, em princípio, a ver com a carta de náutica. Alguns anos mais tarde, Pedro Nunes interessou-se novamente pelo problema e escreveu um tratado sobre estas tabelas de rumo. Em 1566, explicou, de forma mais exacta, como é que uma tabela de rumos podia ser construída.

O Henrique Leitão e eu descobrimos foi que construir uma Projecção de Mercator tendo na mão uma tabela de rumos é absolutamente trivial. Nenhum dos historiadores até agora tinha reparado nisto, que, no entanto, é uma coisa que se mete pelos olhos a dentro quando olhamos com muita atenção para estas duas realidades históricas aparentemente separadas: a carta de Mercator, em 1569, e os trabalhos sobre a tabela de rumos, que começou em Portugal, mas que rapidamente se expandiu na Europa.

Nós provámos que as duas coisas estavam relacionadas historicamente e, depois, também numericamente, mostrando que a Projecção de Mercator pode ser construída através de uma determinada tabela de rumos. Por sinal, é a tabela de rumos mais simples que pode ser construída.

Isto é importante também para a disciplina de história de ciência em Portugal, certamente.

Com certeza que é importante para a história da ciência. Até porque o trabalho de Pedro Nunes, enquanto matemático, teve um enorme impacto na Europa do seu tempo.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Antonio Sousa
    18 abr, 2016 Coimbra 11:02
    Só a título de curiosidade, este tema do mapa de Mercator (e a sua presença na escolaridade obrigatória) foi abordado na série americana "West Wing" - https://www.youtube.com/watch?v=vVX-PrBRtTY. O lobby "anti-Mercator" refere que este mapa contem preconceitos contra etnias e culturas do terceiro mundo ao mesmo tempo que favorece as culturas europeias. Para auxiliar as rotas náuticas, as dimensões de certos países foram grosseiramente alterados (ex.: Gronelândia é maior que o continente africano). Assim sendo, nasce a Projeção de Gall-Peters (https://pt.wikipedia.org/wiki/Proje%C3%A7%C3%A3o_de_Gall-Peters) que propõe uma reprodução fiel das áreas dos continentes à custa de uma maior deformação do formato deles. Isto claro, pressupõe um choque de culturas que porventura durará bastante tempo.

Destaques V+