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Mia Couto tem uma pergunta: Porque não entrou em crise a indústria do armamento?

14 abr, 2016 - 01:35 • Maria João Costa

Uma homenagem ao escritor marcou o arranque da sexta edição do Festival Literário da Madeira. O autor foi desafiado a falar sobre um verso seu: “Serve-nos a vida mas não nos chega”. Mas a conversa ganhou outras vidas e passou pela questão do medo.

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Primeira sessão, sala cheia no Teatro Baltazar Dias, no Funchal, para a inauguração da sexta edição do Festival Literário da Madeira. Mia Couto foi o homenageado e o convidado da primeira conversa do festival que este ano tem como tema “Falsidade e Verdade”.

Numa entrevista conduzida pelo jornalista Fernando Alves, Mia Couto falou da questão do medo. “Fomos concebidos para ter medo de não saber”, afirmou o autor, que confessou esquecer-se muitas vezes daquilo que já escreveu. Para o escritor moçambicano, “a grande ameaça está dentro de nós”, é lá que residem “os maiores inimigos”. Admitiu ter um “medo desgraçado” do que está dentro de si.

Numa conversa que durou mais de uma hora, em que Mia Couto foi falando de si mas também da sua escrita, o público ficou a saber que o escritor sofre de insónias e que, por vezes, tem um “caderninho” onde vai apontando algumas ideias porque diz “estar disponível para receber as histórias”.

A escrever o segundo livro da trilogia “As Areias do Imperador”, depois de ter lançado em 2015 o primeiro volume “Mulheres de Cinza”, Mia Couto regressou ao tema do medo na conversa ao afirmar que “hoje o medo é a maior produção mundial”.

Para Mia, “as pessoas têm de desistir de ser cidadãos”. E deu o exemplo: “Nós para entrar num aeroporto ou avião hoje em dia temos quase de entregar o corpo e a alma em nome da segurança. E pensamos que a solução é essa, a da construção de um inimigo”.

Processo criativo caótico

Sem falar em questões como os atentados de Paris ou Bruxelas, o autor de “Terra Sonâmbula” falou da “necessidade absoluta da construção do medo” e comparou os homens de hoje aos soldados que não fazem perguntas e concluiu com uma questão que arrancou as palmas do público: “Porque é que a indústria do armamento não entrou em crise financeira?”

A primeira sessão do Festival Literário da Madeira, que terminou com uma sessão de autógrafos improvisada à saída do palco, levou também o público a saber mais sobre a escrita de Mia Couto.

O escritor, que se deixou levar pela conversa do seu entrevistador, falou do modo “caótico” do seu processo criativo e explicou que quando termina um livro tem de fazer “uma morte simbólica” para se livrar das suas personagens.

Para o também poeta, editado em Portugal pela Caminho, tem de cortar com as histórias que escreve. Só esse “desligar” lhe permite partir para outra história. Mia Couto diz ser “eficiente nesse apagamento”.

Questionado sobre quantas vidas tinha o escritor, Mia Couto disse não saber, mas assegurou: "Todos os dias tenho muitas”. Essas vidas dependem da “disponibilidade de nos deixarmos possuir” por diferentes personagens. Aqui fez uma ressalva: “Em África isso é normal”, aqui “torna-se demoníaco” essa ideia de ser possuído por vários personagens. Talvez por isso tenha terminado a ideia com a frase enigmática “Não sei se o verbo viver chega”.

O Festival Literário da Madeira prossegue até sábado no Teatro Municipal Baltazar Dias.

Comentários
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  • Pedro Vaquinhas
    29 mai, 2017 Lisboa 13:03
    Boa pergunta... E também porque não entrou em crise a indústria, sector de distribuição e venda do petróleo e gás natural ??? E acabar ou proibir com os offshores e desvendar para depois resgatar os quase infinitos milhões roubados durante décadas aos povos e ao progresso civilizado e sustentável das nações deste mundo miserável???
  • André Luis Cauduro
    15 abr, 2016 Canoas (RS), BRASIL 22:50
    "Só um mundo novo nós queremos: o que tenha tudo de novo e nada de mundo." Mia Couto in "Cada homem é uma raça", Contos. Companhia das Letras, 2013.
  • Raquel Chaves
    15 abr, 2016 Fortaleza - CE 21:12
    Como libertar-se do medo em um país em que a morte é banalizada. Brincam de assaltar e ceifar vidas impunimente. cenario. As vidas são ceifadas por objetivos simples. Quando não se pode caminhar tranquilo . Brasil morte é banalizada.
  • António Dias
    15 abr, 2016 Maputo 18:21
    Sim, Grande Mia Couto. Gostaria que os dirigentes do mundo bebecem um pouco do seu saber. "O nosso medo nos leva a grandes fracassos"
  • Regina Ramos de Oliv
    15 abr, 2016 são paulo 16:04
    Sensível, humano e majestoso, assim segue Mia Couto. Através das palavras, nos faz refletir sobre a realidade em nossas vidas.
  • Marques da Sa
    15 abr, 2016 Lisboa 14:49
    Feita desta maneira parece uma pergunta de retórica, mas se quiser saber mesmo a resposta, talvez colocando a questão a alguns "amigos" do escritor. Por exemplo líderes do antigo Sol da Humanidade, ou de países africanos da sua simpatia. Certo?
  • rosana scotti
    14 abr, 2016 belo horizonte 21:28
    Ler com carinho
  • Xana Lopes
    14 abr, 2016 Torre da Marinha 20:13
    Esforço e Competência de todos os Membros da ONU.Não será? Nunca vi alguém caminhar direito com "3 pernas".
  • jose xavier
    14 abr, 2016 funchal madeira portugal 16:47
    concordo plenamente e acho que os que lideram o poder e a comunicação social de um modo controlam e influênciam as mentes dos mais jovens e acabam mesmo por perturbar toda a sociedade em prol de seus interesses, através do tal medo que o Mia Couto fala. parabéns pela sua presença na Madeira e pela informação saúdavel. obrigado
  • Nelson
    14 abr, 2016 Mulato 12:42
    É porque que ainda fabricam tantos armamentos!

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