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Entrevista

Manuel Alegre. "Não sou um escritor programado. A poesia é quando calha"

10 abr, 2016 - 15:14 • Maria João Costa

Gosta de dizer que na sua biografia tem o título de campeão nacional de natação. Mas é por causa da sua escrita que venceu o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores. Manuel Alegre passou pelo festival literário Fronteira, em Castelo Branco, onde o “Ensaio Geral” o entrevistou.

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O poeta que se orgulha de ter sido cantado por Amália fala do novo livro "Uma outra memória - a escrita, Portugal e os camaradas dos sonhos", do "novo paradigma" político com que o PS está a governar, do refrescar que Marcelo Rebelo de Sousa veio dar à democracia e do "estilo" de João Soares, o amigo de Manuel Alegre que apresentou a demissão de ministro da Cultura. Uma entrevista que termina com um poema que pode ouvir em “pod cast” e onde o poeta fala, sobretudo, do seu ofício de escrita.

No livro que acaba de lançar, "Uma outra memória – a escrita, Portugal e os camaradas dos sonhos", partilha momentos em que privou com Sophia de Mello Bryener, conta como conheceu Mário Soares, Mário Cesariny (de quem nunca foi buscar o quadro que este lhe ofereceu) Natália Correia, Fernando Assis Pacheco e tantos outros. São estes os seus camaradas de sonhos, é o seu círculo de afectos?

Este livro fala de muitas coisas que andam aparentemente misturadas e que fazem parte da minha vida. Há um texto que é a visão poética de Portugal, em que falo da ligação entre o poema e a vida, e depois falo dos escritores que foram importantes na minha vida, quer pela relação que tive com eles quer pelo apreço que por eles tenho.

São escritores e poetas, alguns de quem fui muito amigo, como é o caso do Herberto Helder na juventude ou da Sophia, depois do 25 de Abril, do Torga, sempre! Do Assis Pacheco e de outros com quem partilhei combates importantes na acção cívica, quer depois na resistência ou na construção da democracia.

Falo do Humberto Delgado, do Melo Antunes, do Mário Soares, Salgado Zenha e outros menos conhecidos, mas que tiveram uma importância na elaboração da Constituição, como os meus queridos amigos José Luís Nunes e Sottomayor Cardia.

Mas há também a Natália Correia, o Mário Cesariny, que era uma figura extraordinária e que escreveu alguns dos maiores poemas da língua portuguesa. Era uma figura quase sempre inesperada.

E ofereceu-lhe um quadro que nunca foi buscar?
Pois não, nunca o fui buscar e ele perguntava-me sempre: "Quando é que você vem buscar o quadro?" Por isto ou por aquilo não ia e depois ele morreu e é sempre complicado.

Neste livro, editado pela D. Quixote, diz que "cada poema que se escreve é uma derrota da indigência, seja ela cultural, ética, política ou mesmo literária. Uma derrota da indigência e da regressão civilizacional que hoje estamos a viver" . O poema é um acto de resistência?
É. Quem lançou essa questão foi a minha querida amiga Hélia Correia, de quem também falo neste livro, num livro muito bonito: "A Terceira Miséria", onde diz "que podem os poetas em tempo de indigência?" Tempo de indigência quer dizer, neste tipo de regressão civilizacional e penso que o que os poetas e os escritores podem é escrever. Há momentos históricos de crise – como este, que são, no meu entender de crise civilizacional – em que escrever poesia, seja ela de amor, sobre a existência ou não de Deus, a busca de um sentido é em si mesmo um acto de resistência pela linguagem poética e pela carga metafórica dos poemas. Acho que nunca houve mudança na história sem ter havido antes uma mudança poética.

Mas hoje não há muita literatura de plástico em Portugal? Há um certo analfabetismo literário?
Isso é resultado da globalização e da criação dos grandes grupos. Lê-se talvez mais e lê-se de menos os grandes autores, os grandes clássicos da literatura, que às vezes é difícil de encontrar nas livrarias.

Lê-se menos os grandes poetas. É um engano. Há mais gente a saber ler, mas presumo que se ensine pior a língua, porque não se pode ensinar uma língua sem os grandes escritores e sem poesia. A poesia não é só para ser lida, é para ser dita em voz alta e partilhada.

Na minha juventude, líamos poemas em voz alta. Hoje, também por outras razões como os computadores e telemóveis, a partilha faz-se de outra maneira, mas é pena. A partilha faz-se também pelos concertos de música. Quando vou às escolas vou por aí, pelo lado da música, das letras e pelo ritmo. Cada poema tem a sua música.

Está sempre a escrever. Como é esse laboratório da escrita?
Eu não sou um escritor programado. Escrevo por ciclos. Não escrevo das tantas às tantas. Nunca fiz isso. A poesia é quando calha. Digo por brincadeira que se pode escrever poesia na boca de um canhão e eu quase que o fiz. Os poemas do meu primeiro livro foram escritos em plena guerra no mato.

A poesia assalta-o?
Pois, há quem não goste de falar nisso. Há quem entenda hoje que a poesia é sobretudo oficina. Claro que não há grande poesia sem a técnica se transformar na segunda natureza, como dizia um grande poeta americano Haizer Palm. Mas também não acredito em grande poesia sem aquilo a que os mais velhos chamavam a Musa, o Frederico Garcia Lorca chamava Duende ou o Rainer Maria Rilke, o Anjo. Há qualquer coisa. Há uma toada, há uma música, por vezes uma frase aparentemente absurda e depois o poema vem.

É assim que a poesia lhe acontece.
Sim, é assim que acontece. Se não for assim, o poema normalmente é falhado. A Sophia dizia que às vezes ficava ausente, como se houvesse alguém a escrever por ela. Isto é uma metáfora. Alguns dos teóricos da literatura acham que não é assim, mas é. A grande poesia ou é assim, ou então não é.

Regresso ao livro. Há um texto intitulado "O bom e o mau socialista", onde escreve que "o bom socialista defende que o arco da governabilidade se restringe à direita e ao PS". Mais à frente escreve "o mau socialista persiste em dizer a palavra socialismo, repete constantemente a palavra esquerda, opõe-se a governo de coligação dentro do arco da governabilidade e recusa-se a fazer do PS o terceiro partido da direita". Onde está afinal o PS que hoje governa o país no entendimento de esquerda?
Isso foi um artigo irónico que escrevi [em 2013] numa altura em que se discutiam essas questões das coligações à esquerda ou ao centro. Não há só um império financeiro à escala universal, há um império que se impõe na comunicação social, nas universidades, na formação das pessoas e portanto isso foi um artigo irónico. Eu disse "mea culpa", eu pecador me confesso, sou um mau socialista. Porque sempre defendi a autonomia estratégica do Partido Socialista, quer em 1975 quando os problemas eram outros, quer agora. Sem essa autonomia estratégica o Partido Socialista perde a sua identidade e será sempre uma bengala de alguém.

E sente que é isso que está a acontecer agora?

Não, de maneira nenhuma. Houve uma mudança de paradigma muito grande que alguns ainda não se deram conta, sobretudo alguns comentadores que estavam muito treinados para uma certa situação. Mas as pessoas descobriram que o Parlamento existe, que é composto por deputados e que é no Parlamento que se fazem as maiorias consoante o resultado das eleições e é no Parlamento que se fazem os governos.

Claro que todos os partidos, e o Partido Socialista também, são culpados de uma deriva. Foi a confusão entre as eleições legislativas e uma eleição directa do primeiro-ministro. Não há isso na Constituição. Só uma eleição directa, que é a do Presidente da República, e desta vez a maioria parlamentar funcionou.

Criou-se uma situação nova é um novo paradigma com um governo do PS com uma convergência de esquerda. Isso criou uma situação nova, aqui e na Europa. É isso faz de Portugal outra vez um pioneiro. Há algo novo que incomoda a União Europeia, o FMI e aqueles que dominam a nossa vida como os mercados.

E acha que Portugal está preparado para esse novo paradigma?
Acho que está a funcionar bem. Também houve a eleição de um Presidente da República que veio refrescar a democracia, porque é uma personalidade diferente com uma boa formação jurídica. Também tem uma visão histórica e cultural. Não é da minha família política. É um excelente comunicador.

Uma parte da direita portuguesa queria um Presidente que viesse ajustar contas e ele não fez isso. É isso criou condições para que ele possa ser de facto um Presidente de todos os portugueses e garantir a estabilidade. Ele é deputado constituinte e sabe como funciona uma Constituição.

Neste momento, há aquela maioria e uma parte da esquerda compreendeu, porque foram quatro anos muito duros e acho que a esquerda percebeu que há que encontrar outras soluções e evitar que veja a mesma receita.

Como é que vê a demissão de João Soares do Ministério da Cultura e todo este episódio com os colunistas Augusto M. Seabra e Vasco Pulido Valente?

Sou amigo do João Soares. Creio que tinha todas as condições para ser um excelente ministro da Cultura. Como presidente da Câmara, fez um magnífico trabalho cultural na cidade de Lisboa. Tem o seu estilo. Com pouco dinheiro, as pessoas, excepto alguns sectores, já estavam muito satisfeitas. Nunca nenhum ministro tinha ido às ‘Correntes d'Escritas’ ou a pequenos acontecimentos que têm muita importância para as pessoas e ele ia lá. Aconteceu este episódio. Tenho pena. Tenho verdadeiramente pena.

Mas acha que João Soares geriu mal?
Não vou fazer mais comentários. Tenho pena, tenho muita pena porque sou amigo dele.

Quem seria um bom ministro da Cultura?
Isso é um problema do primeiro-ministro. Gostava de ver alguém com uma visão, como o João Soares tinha. Que na cultura é preciso fazer obra mesmo com pouco dinheiro. Estar próximo das pessoas, não ter uma posição dirigista, não atender só aos subsídio-dependentes, e perceber que a cultura é para todo o país. E alguém com peso político para fazer isso. Acho que ele tinha condições únicas, pelo peso político próprio, pela visão que tinha...paciência!

Abro de novo o livro "Uma outra memória". Ao escrever sobre a Liberdade fala dos desafios que ela hoje enfrenta, nomeadamente com o terrorismo que parece rondar cada vez mais a nossa geografia. O terrorismo uma ameaça aos valores da liberdade?
Com certeza que é uma grande ameaça. É um problema muito complicado que as pessoas têm procurado assobiar para o lado. Há muito "blá-blá", muito discurso, muita afirmação de que estamos em guerra, mas acho que o problema não é assim tão simples.

Não é só a Síria. Acho que a invasão do Iraque teve grande responsabilidade nesta situação. Desagregou política e religiosamente toda aquela zona. Depois a intervenção na Líbia foi a mesma coisa. Ficou um vazio depois da saída de Kadhafi. Quando há vazio, os outros entram. Mas está na Europa também.

Há comunidades islâmicas muito fortes em diversos países europeus. É nesses países que há recrutamentos. Muitas dessas comunidades foram instaladas em guetos, portanto a política de integração falhou. É aí há culpas repartidas.

Os governos ocidentais têm as suas responsabilidades, mas atenção: eu vivi dez anos na Argélia e sei que a comunidade muçulmana não se dissolve. Não quer abdicar da sua língua, da sua religião, da sua cultura e isso põe um problema. Porque alguns dos terroristas sentem-se como peixe na água na Europa. Penso que tem de haver diálogo das civilizações, religiões e um diálogo político. Menos discriminação. Mas também os responsáveis da comunidade muçulmana têm de ter a coragem política de isolar aqueles que querem seguir o caminho do radicalismo religioso e do terrorismo.

Mas o medo instalado acaba por condicionar o valor da liberdade tão enraizado na Europa?
Condiciona. Temos de tentar resolver esse problema de acordo com os nossos valores e dentro do princípio do Estado de direito. Mas se há guerra, ela também tem as suas regras. Não podemos ser totalmente ingénuos. Estamos perante adversários que são capazes de tudo.

Quando se lançam bombas para matar mulheres, crianças, velhos e famílias...é preciso saber fazer frente a isso. Isso põe problemas terríveis de ordem moral e política que nos obrigam a reflectir muito. É preciso repensar as relações com a Arábia Saudita, que é a mãe de tudo isto. Tem uma relação privilegiada com o ocidente, nomeadamente com os Estados Unidos.

Não sei como é que se pode derrotar o terrorismo tendo este tipo de relação privilegiada com um país riquíssimo, mas que é a mãe de tudo isto e que financia o terrorismo em determinados países. Muita da nossa segurança hoje, aqui em Portugal, está dependente da Argélia e de Marrocos. Esses Estados que têm feito frente ao jihadismo e aos integristas são a nossa segurança. Se por acaso houvesse ali uma mudança dramática, nós, e toda a Península Ibérica, ficávamos muito indefesos.

Esta entrevista foi realizada na sexta-feira, no programa da RenascençaEnsaio Geral”.

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