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“A imputabilidade penal devia subir para os 18 anos”

25 nov, 2015 - 10:49 • João Carlos Malta

O juiz-desembargador Paulo Guerra, especialista em questões da família e da criança, defende, em entrevista à Renascença, que a idade para criminalização dos actos praticados por menores deve subir. “Devíamos ter mais tempo para as crianças serem crianças”. O magistrado lamenta ainda que o Estado nunca tenha feito da criança uma prioridade.

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Paulo Guerra é um dos magistrados que mais cedo chegaram a juiz-desembargador. Há muitos anos ligado aos tribunais de família e da criança, está também ligado ao trabalho no terreno através da vice-presidência da associação “Crescer Ser”, liderada por Armando Leandro.

Em entrevista à Renascença, o juiz do Tribunal da Relação defende que o termo menor deve ser estripado do “dicionário jurídico”. Porquê? “É uma ficção”, diz. E avança a alternativa: “Prefiro a palavra criança. Um jovem de 17 anos é, juridicamente, uma criança e tem os direitos ligados a esse estatuto.”

Sobre a institucionalização das crianças em Portugal, Paulo Guerra considera que o número ainda elevado de casos no país é motivado pela falta de famílias de acolhimento.

A 1 de Dezembro, entra em vigor a nova lei da adopção que põe fim as adopções restritas (em que a filiação biológica se mantinha). Este foi o pretexto para falar com o juiz-desembargador Paulo Guerra, que teme que a instabilidade política ponha em risco a aplicação das novas leis. Uma conversa que foi dos temas da adopção, a criminalidade infantil até à lista de pedófilos.

A representante especial das Nações Unidas em matéria de violência contra crianças, Marta Santos Pais, diz que há a tentação de retirar a criança para um ambiente alternativo porque a família é pobre ou não tem recursos. Em Portugal também é assim?

O que a lei diz é que toda a criança que estiver em perigo deve ser sujeita ao sistema de protecção em Portugal, cujo objectivo é retirar a criança desses perigos. E não passa, necessariamente, por retirar a criança do convívio dos pais. Ela pode estar em perigo, mas haver a possibilidade de se poder trabalhar a família. Há alternativas, como a entrega a um familiar, a um vizinho ou a uma pessoa idónea. Depois, ainda existe o acolhimento familiar e, em última instância, a adopção.

Como juiz, sempre me recusei a retirar as crianças dos agregados de origem só porque os pais não têm pão em casa. A pobreza não é crime. O Estado de direito deveria ser capaz de tomar conta dessas situações e, de alguma forma, evitar que essas cisões venham a existir. Mas, muitas vezes, estes pais ,mesmo quando são ajudados, não pegam na cana de pesca que lhes é entregue. Às vezes, damos hipóteses para que se curem de toxicodependências, de alcoolismo, de terem hábitos de trabalho que não têm e eles insistem na disfuncionalidade. A situação de perigo vai-se perpetuando no tempo. O tempo útil da criança não é o mesmo do que o do adulto. Não podemos pensar nos direitos dos adultos, temos de pensar em primeira linha no direito da criança.

Mas, ainda antes dessas situações em que se dá possibilidade aos pais de reverter uma situação de negligência, há juízes que avançam para a retirada das crianças meramente pela uma questão das condições económicas?

Não acredito que só por si isso aconteça. Muitas vezes, acusam a magistratura de outra coisa: de apostar demasiado nos pais, durante demasiado no tempo. A lei é clara, a criança precisa de uma família, seja ela próxima, alargada ou substitutiva. A ideia é que a criança não conheça tanto a institucionalização.

Todos os psicólogos são unânimes em dizer que o que se perde em termos de primeira infância é enorme. Os primeiros anos são decisivos para as vinculações e as crianças acabam por se vincular aos técnicos das instituições. Mas é um vínculo precário.

Ao ver quais são as principais razões para retirada das crianças, verifica-se que, no topo, está a falta de supervisão e de acompanhamento familiar. Em 60% dos casos, a criança é deixada só por largos períodos de tempo. Numa sociedade em que os núcleos familiares são cada vez mais pequenos e há a redução de rendimentos nas classes mais pobres, é justo tirar uma criança a um pai ou a uma mãe que tenta sustentar a sua família, mas não consegue fazer esse acompanhamento?

A meio da nossa equação matemática devemos ter sempre a criança. Como humanos que somos ,também temos de ter em conta as vicissitudes que os pais estão a passar. Vamos tentando ter meios para ajudar as famílias. Se houvesse mais dinheiro no país, e se se desse mais importância a esta área….

O Estado tem sido negligente?

Não, mas também não é uma prioridade. O século XX foi o século da infância. Hoje em dia, a consolidação dos textos internacionais é clara ao dizer que a criança é um sujeito de direitos, que não é um adulto em potência. A criança existe enquanto tal. Fomos dos primeiros estados a rectificar a convenção dos direitos das crianças, em 1989, temos uma lei de protecção avançada para a época....

Mas a aplicação não é tão célere....

É complicada. Os juízes fazem o que podem, as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) são uma enorme conquista do sistema. Mas, muitas vezes, não têm meios e os técnicos não têm meios físicos nem logísticos para poder visitar famílias, nem para conseguirem monitorizá-las. A principal razão [para retirar crianças do sistema familiar], além dos casos agudos de maus-tratos físicos e sexuais, é a negligência.

Os pais não podem dizer que são pais e, por isso, que as crianças lhes pertencem. Cada autoridade só tem direito ao respeito que conquista. Cada pai só tem direito ao respeito que conquista. O país não é o melhor em termos de respostas sociais mas penso que a sociedade civil faz das tripas coração e vamos-nos valendo das Instituições Particulares de Solidariedade Social.

A reorganização do mapa judicial, principalmente no Interior do país, torna mais complicado denunciar as situações de maus-tratos de crianças?

A nova lei de organização judicial criou maior especialização. Temos muito mais gente a saber de menos. Sou formador no Centro de Estudos Judiciários e temo-nos empenhado de dar especialização nesta área. Foi considerada uma área menor da magistratura: as crianças eram o último reduto e não era assim tão importante tomar conta delas. Hoje em dia, há uma grande valorização desta jurisdição. Vamos decidindo com os olhos dos outros, outras vezes vemos, mas temos a consciência de que somos facilmente enganados. Os tribunais são o local em que se mente mais e é difícil distinguir o trigo do joio.

Tínhamos 19 tribunais de família e menores e agora temos todas as comarcas com especialização, excepto três, que são Guarda, Portalegre e Beja. Contudo, a maior especialização e descentralização de alguns serviços que estavam nos antigos tribunais leva a que, neste momento, possa haver alguns locais que estão muito distanciados do tribunal que se vai estudar a queixa daquela criança. Em Baião, por exemplo, deixou-se de ter esta valência que passou para Paredes, a mais de 60 quilómetros. Imagine-se como é que as pessoas sem dinheiro respondem a uma chamada a tribunal ou a uma CPCJ.

Os milhares de crianças institucionalizadas significam que essa se está a tornar uma solução de primeiro recurso?

Só existem oito mil. Já houve 13 mil, 12 mil, 10 mil... Mas é demasiado. A lei diz, e é clara, que é a última resposta. Também a nova lei, que entrou em vigor no dia 8 de Outubro, vai nesse caminho. Não é ainda o que a Espanha está a fazer, em que as crianças até aos três anos vão para famílias de acolhimento, mas já põe como limite os seis anos. Era bom que todas as crianças até aos seis anos pudessem passar por uma família de acolhimento antes de ir para uma instituição. Mas essas famílias não existem.

Quem são as crianças que ninguém quer de que sempre se fala?

As pessoas querem crianças de colo, o que nem sempre há. Há dificuldades na adopção de crianças com sete ou dez anos. Tentamos não separar os irmãos, já que já houve tanta fractura.

Há alguma coisa a fazer para poder alterar essas fragilidades?

Esse é o grande problema. São crianças que se vão arrastando nos centros de acolhimento, não saem de lá porque as famílias não estão prontas para as receber. Acontece muitas vezes ouvir os pais a dizer: “O meu filho está muito bem, está no colégio”. É muito fácil para eles porque é da maneira que relegam para terceiros todos os problemas, mas também é a nossa missão saber quando estas crianças não podem ser adoptadas. A solução é autonomizar a criança na instituição e por isso há uma figura na lei que é autonomia de vida. São jovens que estão em apartamentos da segurança social, que vão gerindo um orçamento e aprendendo a viver...

À medida que se tornam mais visíveis os crimes graves cometidos por crianças, há também a percepção de que a sociedade quer uma punição mais efectiva. Acha que é esse o caminho a seguir?

A criança até aos 12 anos se cometer um facto legalmente considerado crime, ela não comete um crime. Só os adultos a partir dos 16 o fazem. A partir dos 12 até aos 16 exclusive, se uma criança praticar um crime fica sujeito à lei tutelar educativa. É outra lei que serve para ressocializar esta criança, através de medidas pedagógicas desde a admoestação ao trabalho comunitário, até ao acompanhamento educativo, sendo a mais grave o internamento. Não são prisões.

A partir daí são imputáveis, e estão abrangidos pelo regime geral dos jovens adultos que vai desde os 16 aos 21 anos. Já podem ser alvos da prisão preventiva e serem presos.

Não temos uma criminalidade infantil assim tão grande. Neste momento, temos menos de 200 crianças internadas em centros educativos, e se lá estão é porque praticaram casos muito graves: roubos, furtos, homicídios. Defendo que a imputabilidade penal devia subir para os 18 anos. Devíamos ter mais tempo para as crianças serem crianças. E trabalhar pedagogicamente com elas antes de as fazer passar para o sistema penal. Neste momento com 16 anos e um dia já está ao abrigo do sistema penal, e muitas vezes temos as nossas polícias a ansiar por esse dia para fazerem flagrantes e poder prender o jovem.

Acredito na ressocialização e que um erro na vida não é uma vida de erros. O jovem tem de ser ajudado desde o início para evitar uma vida de crime.

Os crimes sexuais contra menores são socialmente dos que mais chocam as pessoas. A justiça tem gerido bem estes casos? A lista de agressores sexuais de crianças era uma boa solução?

Não é uma solução. Não acho que seja a forma de conseguir resolver e acredito que a pessoa que errou também tem direito a reabilitar-se. Mas devemos monitorizar. O pedófilo nem sempre é abusador sexual e o abusador sexual nem sempre é pedófilo. Atirar só pedras não é suficiente.

Em relação às agressões sexuais foi sempre as que mais martirizaram as crianças, porque se está a cometer danos inenarráveis. Se é aplicada uma determinada medida de coacção a um individuo por um crime sexual, que vamos pressupor que é pai, tem de estar em consonância com os direitos da família e da criança.

Neste momento, estamos numa altura de tolerância zero relativamente aos crimes sexuais. Durante muito tempo não havia tantos casos porque não se denunciava tanto. Havia silêncio que agora já não existe. Hoje as pessoas estão mais atentas.

Tem alertado para a instabilidade política poder afectar aplicação das leis para as crianças. Porquê?

É no sentido de não poder haver regulamentações das leis. Os juízes aplicam as leis, mas deixa de haver directrizes mais concretas em relação a certas imposições legais. Faltando essa regulamentação, o sistema pode ficar um pouco coxo. Mas já estivemos 14 anos sem nunca ver a regulamentação da lei de acolhimento institucional.

Comentários
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  • Zé Boda
    25 nov, 2015 Setúbal 15:14
    Organizem-se!.... Uns dizem que querem que os miúdos (que é o que são as pessoas com 16 anos...) comecem a votar aos 16... Depois dizem que os pais são obrigados a pagar as contas até aos 25... Agora passam a ser inimputáveis criminalmente até aos 18... Faça-se o que se quiser mas não se destrua a relação entre a liberdade e a responsabilidade. Se votam aos 16, têm que ser responsáveis... se são inimputáveis, não votam... Já relativamente a pagar as contas, devia seguir-se a mesma linha. Enfim...
  • fil
    25 nov, 2015 lisboa 14:11
    infelizmente acho que se deve ir no sentido contrário, todas as evidencias assim o apontam, baixar para os 15, eventualmente limpando o cadastro se apos o crime e ate aos 18 não reincidisse
  • 25 nov, 2015 Algures 14:07
    Por mim devia era descer para os 14 anos. Com essa idade, já têm consciência do que é certo e é errado.
  • Jorge RA
    25 nov, 2015 Fig. foz 14:06
    Se são crianças e fazem crimes de adulto devem ser tratados com todo o amor e carinho não é sr juiz?? Lamentável pessoas com estes cargos carregarem sempre na mesma tecla da maior liberalização do crime
  • jeb
    25 nov, 2015 brasil 13:48
    Vejam o exemplo do Brasil em que "crianças" com 17 anos e 364 dias cometem crimes horrendos e em frente às camaras de TV ainda se gabam porque faltam 1 ou 2 dias para fazerem 18 anos e serem imputáveis; dizem que não se arrependem do crime horrendo que acabaram de cometer, afirmando sem papas na língua que se necessário, voltam a fazer o mesmo... em suma, ainda gozam com as vitimas e com a sociedade que paga os impostos para os sustentar... um individuo normal aos 16 anos já tem idade para saber o que deve ou não fazer e o que é mau ou bom... Por isso, deixem-se de invenções progressistas e pensem mas é em reduzir para os 14 anos e verão que passará a haver melhores cidadãos do que atualmente existem!!!
  • ANTONIO FERREIRA
    25 nov, 2015 OEIRAS 13:45
    Por um lado querem que votem as 16 anos por outro querem que sejam iniputaveis aos 18 . Onde está a coerência.
  • desatina carreira
    25 nov, 2015 queluz 13:37
    deviam era descer essa idade
  • Paulo Rocha
    25 nov, 2015 Lisboa 13:34
    Muito pelo contrário, pelo caminho que leva a nossa sociedade a imputabilidade devia era descer para os 14 anos.
  • panzerav
    25 nov, 2015 Parede 13:33
    Comece-se pelo princípio. Primeiro: 16 anos para cima, já não são crianças; 2º.- A nossa Justiça não está preparada para lidar, com coerência e saber, com assuntos maisa prementes e "bicudos", relacionados com crianças; Dos muitos que se conhecem, dou, apenas dois, talvez os mais conhecidos: 1-Criança de 2 -DOIS!-anos, que estava ao cuidado de família de acolhimento,devido a maus trataos inflingidos pelos pais biológicos, respectivamente: ele-drogado e a mãe, alcoólica- foi retirada , pelo Tribunal de Coimbra,à família de acolhimento, para a entregar aos pais, naquelas condições; resultado: Dois meses depois, morre por maus tratso às mãos dos criminosis "pais"! O Juiz foi responsabilizado por este acto MUITO estranho?...claro que não!! 2- O caso do Sargento de Torres Novas=Nem merece comentário!!
  • FRANCISCO DE OLIVEIR
    25 nov, 2015 PORTO 13:19
    Concordo piamente. No entanto, tudo o que o pseudo-menor fizer e de que não pode ser accionado judicialmente, sê-lo-ão os próprios educadores. Assim, teremos mais educação da "ganapada".

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