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Viver debaixo da ponte dentro de casa

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Viver debaixo da ponte dentro de casa

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23 nov, 2015 - 15:07 • João Carlos Malta , Joana Bourgard (fotos)

Num eixo de três ruas em Alcântara há uma fila de prédios que têm os tectos protegidos pela Ponte 25 de Abril. Se em Lisboa o silêncio é um bem raro, ali é uma experiência inatingível. Há ainda os objectos voadores derrotados pela gravidade e o treme-treme da vibração que os automóveis e comboios orquestram. As histórias de quem tem um tecto, mas que vive com a ponte por cima da cabeça.

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Tum-tum, tum-tuuuum, tuuuuum-tum. Maria Odete Sá está há 45 anos a ouvir durante 365 dias, à média de 150 mil vezes (número de carros que atravessam a Ponte 25 de Abril diariamente) o som dos pneus a rolar pelas placas metálicas. Mas não percamos tempo a fazer contas porque não é assim que a memória desta mulher de 69 anos regista o dia-a-dia no número 41 da Calçada da Tapada. O corpo e a cabeça já registaram a cadência e a intensidade do ruído. Já o fundiram e normalizaram.

“Já interiorizei o barulho. Dantes, se ficava a trabalhar até tarde sentia muito. Agora, já não dou por nada”, explica.

Maria Odete vive lá mesmo no alto, no quarto andar, no prédio que fica com o tecto a “telhas meias” com o tabuleiro onde desde 1996 passa o comboio que liga Lisboa a Almada. O edifício chama a atenção por ser o mais alto e por iniciar o eixo de prédios entre a Calçada da Tapada, a Rua Leão de Oliveira e a Rua 1.º de Maio, na freguesia de Alcântara, que fica mesmo por baixo da “25 de Abril”.


A ex-professora universitária chega ao apartamento poucos meses depois da construção em 1970 (quatro anos a seguir à inauguração da ponte). Acabada de se casar, pensava que ali ficaria por pouco tempo. Não foi.

Tinha a casa a estrear, emprego nas redondezas, renda barata (2 contos 250 escudos), transportes à porta, lojas nas imediações e serviços públicos a poucos metros a pé. Anos mais tarde, a família alargou-se com a chegada dos filhos. E aquela zona tinha escolas de boa qualidade.

Cigarros voadores, roupas aos buracos

Não havia de ser a ponte e milhares de automóveis como vizinhos a atrapalhar todas estas vantagens. No entanto, o princípio não foi fácil. “Não havia protecções laterais [na ponte] e as pessoas atiravam beatas de cigarros. Todos os dias, a roupa que estava a secar ficava queimada”, salienta a moradora. Recorda o abaixo-assinado feito para acabar com esta questão. Agora, reconhece, a situação é muito melhor.

Está de tal forma adaptada ao barulho dos automóveis e dos comboios, que se abstrai. O mesmo não acontece a quem ali entra pela primeira ou pela segunda vez. “Quando tenho cá pessoas de família não dormem nada”, lamenta.


Já conviveu com todo o tipo de problemas: infiltrações, clarabóias rachadas, água a escorrer pelas escadas até à porta, ou carros furados pelos parafusos que caem da ponte. Aliás, lá de cima já veio de tudo um pouco: rodas de carros e até um estrado de uma cama.

Ainda assim, sabe que são males que dão origem a um bem maior. “Perdemos qualidade de vida, mas sabemos o que significa para os que todos os dias têm de passar de um lado para o outro [do Tejo]”.

Morar debaixo da ponte faz também de Maria Odete alvo de todas as piadas. Situação que reverteu à custa da capacidade de fazer humor com a questão. Enquanto docente universitária era visitada por parceiros em projectos internacionais. A pergunta era recorrente: “Onde moras?” A resposta: “Ali debaixo da ponte, mas felizmente não sou sem-abrigo”. E ri-se desta memória.

Significa isto que houve uma adaptação total que resultou em acomodação? Nada disso. “Queria viver noutra casa, num rés-do-chão com um bocadinho de terra. Sou da província, tenho origens beirãs”, sorri.

“O comboio parecia que atravessava a casa a meio”

À entrada do prédio está Adriana Armando. Há seis meses que ali trabalha em casa dos vizinhos de Maria Odete, um casal com cerca de 70 anos de quem toma conta. A primeira sensação foi bastante estranha. “Deu-me a ideia de que o comboio ia atravessar o apartamento. Fiquei parada e pensei: ‘Isto é um tremor de terra ou um comboio. O que é que é?’”. Tudo era novo.

A seguir, veio a procura de todos os estímulos. Todos os sons. “Tudo trepida, a varanda trepida quando há movimento. Ouve-se tudo, aquela grade que a ponte tem aumenta tudo. Os carros fazem ‘trac-trac’. Também achei muito estranho um ‘bup-bup-bup’ que ouvia sempre”, imita.


Até que, dia após dia, tudo se tornou normal. “Quando não o ouvimos já pensamos que há algo de anormal. O quê? Hoje o comboio ainda não passou?”, ilustra.

Destaca ainda que não há rachas visíveis nas paredes, mas o chão da cozinha não aguentou a trepidação. “O prédio deu logo de si ao início”, contaram-lhe os patrões.

Se se lhe pergunta se gostaria de morar ali, a resposta é um redondo “não”. Porém, gosta do pitoresco da situação. Tira fotografias a toda a hora e partilha-as. Não é sempre que se está dentro de uma casa que fica debaixo da ponte.

Katarzyna e Pedro: Foi bom enquanto durou, mas é “preciso paz”

Mesmo ao lado, no número 43, vive o casal luso-polaco Pedro e Katarzyna. São funcionários da Jerónimo Martins e o trabalho na freguesia de Alcântara fê-los procurar habitação na zona. Calhou ser mesmo por baixo da ponte. "Calhou" não é bem o termo. Como na grande maioria dos jovens de 30 anos, o binómio qualidade/preço fez o seu caminho. O edifício é antigo, mas o apartamento é moderno. As obras de 2007 deram-lhe um toque cosmopolita.


“Confesso que o que nos atraiu foi o preço. O prédio fica debaixo da ponte e a senhoria partilhou connosco que era barulhento. Alcântara é uma zona central e, por isso, normalmente os preços são mais altos. Ficámos por razões económicas”, sublinha Katarzyna Mendes.

Pedro revela que já tinham estado em duas casas antes desta em Alcântara. Iam de pé atrás por ser onde era, mas visitaram o apartamento e não sentiram “nada de anormal”. A mulher, polaca, adianta que, quando viram aquele espaço, gostaram logo. Depois, o lado racional identificou "mais barulho", que podia ser “cansativo”, e que havia “muito pó e muita poluição”. “Mas, olhando para o apartamento, ficámos convencidos o suficiente para ficar cá”, resume Katarzyna.

“Com o decorrer do tempo, os barulhos de facto existem, mas vamo-nos habituando e passam a fazer parte do dia-a-dia e das nossas noites. Durmo em qualquer circunstância, seja com luz com muito ruído, mas nunca pensei que fosse tão intenso”, sintetiza Pedro.

Katarzyna acha graça ao local em que vive. E conta um episódio daqueles que não se esquecem: “Um amigo veio cá e publicou uma foto com a frase: 'Amigos debaixo de ponte'."


A resposta nas redes sociais não se fez esperar: “Se calhar precisam de crédito. Se quiserem, entrem em contacto connosco”, graceja Katarzyna, a quem apenas a areia em cima da roupa e os pássaros que sujam camisas e calças a aborrecem.

Ainda assim, o marido, Pedro, revela que vão abandonar a casa no final do contrato. Já em Dezembro. “Precisamos de descanso, e com este barulho não conseguimos”, argumenta.

“Queremos a nossa paz e, de vez em quando, acordar em silêncio. Alcântara é uma zona de circulação de transportes, não há essa paz. Não me faz confusão, mas quero mais qualidade de vida”, remata Pedro.

Tapadinha russa

No meio das portas destes dois prédios sobressaem as letras garrafais do restaurante Tapadinha. Nada faz supor que se trata de um restaurante russo, mas é. A filha de Maria Nolasco, de 80 anos, estudou na ex-URSS e trouxe de lá o conhecimento gastronómico. Maria vive ali há mais de quatro décadas.

A localização, garante, não lhe retira clientela. Apenas a queda de objectos nos automóveis no parque de estacionamento ali em frente pode prejudicar o negócio. “O problema é que caem tintas e cimentos em cima dos carros quando andam a pintar a ponte”, refere. E acrescenta que antes de a concessionária da ponte pôr bandas laterais “caíam coisas mesmo grandes. Até um pneu ali no quintal”.


Maria já viu muitos chegarem e outros partirem. A maioria permanece, não larga as casas que comprou ou arrendou. Então, a ponte não afasta as pessoas? “Agora já ninguém liga a isso. Ao início houve apreensão. Depois, houve uma senhora que queria pôr a casa à venda por vir o comboio. Mas acabou por não vender e continua lá. Ou se habituou ou pôs vidros mais fortes”, avança.

Ainda se queixa da areia que vem da ponte, do som dos carros, no entanto, é um imposto que lhe ensurdece a vida. “O [aumento do] IVA deu cabo de tudo. Se não baixa rebenta com tudo. Faz mais barulho do que a ponte”, finaliza.

Uma roda que foi um trauma… e quase era uma tragédia

Uns metros abaixo fica o restaurante Mercado do Peixe. O sócio-gerente José Teixeira está ali há 25 anos. Desde sempre se habituou às coisas que caíam da ponte. Todavia, houve uma que lhe está gravada.

A filha, agora com 21 anos, esteva quase no local errado à hora errada. “Não morreu por segundos. No segundo a seguir a ela meter o pé no restaurante, uma roda completa caiu. Isso traumatizou-me”, enfatiza.

O início de actividade no mercado de Alcântara foi mais complicado do que previa. “Até cá dentro caiam parafusos, corríamos risco de vida. Estava longe de saber que seria tão perigoso. Mas é uma questão de hábito”, considera.


No outro extremo do eixo de casas cobertas pela ponte, na Rua 1º de Maio, mora Bruno Santos de 39 anos. É professor de música no Hot Clube ali em Alcântara. A particularidade de a 25 de Abril estar por cima do tecto não foi parcela na equação de decidir pela casa. Estar mobilada e disponível foram argumentos bem mais fortes.

A sinfonia da ponte nem faz muita confusão ao músico. "Eu vivi em Belém e tinha o eléctrico a passar mesmo à porta, nunca me fez muita mossa. Estava familiarizado com o barulho. Também não durmo muito, passo a vida a deitar-me fora de horas."

Já a nível estético, a avaliação não é tão positiva. “Aqui da sala não é uma visão muito bonita olhar para cima e ver uma data de betão. Mas, de resto, não me faz muita diferença”. No fim de contas, são 74 mil quilómetros de fios de aço galvanizados.

Tudo mudou

Com muitas histórias que cruzam cada recanto de uma vasta memória, senta-se no café A Ilha Cecília Lajes. Tem 73 anos e quase meio século a morar mesmo junto à ponte. Começa a recuperar memórias e em poucas frases faz um resumo sociológico da evolução local.

“Naquela época era tudo diferente. As senhoras não eram empregadas, abriam a janela só para sacudir o paninho do pó. Mudou tudo. Aqui estava tudo cheio de garotitos e agora já nem garotos há. Ia tudo jogar à carica e ao pião”, revive.

Também fala dos primeiros pulos na cama que deu por causa do ruído dos automóveis. Era tudo muito diferente do mundo rural de que chegara há pouco tempo.


Conhecida nas redondezas pela alcunha “Correio da Manhã”, diz aos amigos que faz das paragens de autocarro o escritório. E foi ali perto que aconteceu a história que lhe ficou gravada nos olhos. Um homem atira-se.

“Quase que ia caindo em cima de mim. Foi por pouco”, comenta. Na altura, não ganhou para o susto, mas ficou com os pormenores todos apontados na cabeça: os adereços, a profissão e o que o levou ao acto limite. Tudo.

Com tantos anos a viver ali, será que as coisas são melhores agora ou na época em que se mudou para Alcântara? Cecília reponde de forma salomónica: por um lado, assume que está melhor; por outro, a realidade é suficiente para que a lamúria se solte.

“O pior disto tudo é estar debaixo da ponte e pagarmos impostos enormes, caríssimos, e as casas sujarem-se muito. Devia haver um desconto”, apela.

Porém, enquanto a benesse não chega, se é que um dia chegará, lá se conforma: “A gente tem de viver.”

Comentários
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  • Henrique Santos
    01 dez, 2015 Elizabeth, N.J. 16:49
    Nos anos 70 passei muitas vezes por debaixo e por cima da 25 de Abril quando vinha da Parede e ia para o Alfeite desse promenor nunca me aprecebi sempre pensei que as casas nao estivessem bebaixo da Ponte e os tectos tao perto do tabuleiro sao casos insolitos com o quotidiano passam despercebidos .
  • Henrique Bastos Ferr
    24 nov, 2015 Guimarães 11:04
    DESCANSAR? ERA BOM!...
  • luis ferreira
    23 nov, 2015 Gaia 17:03
    então ....e só fim destes anos todos é que deram por ela ? eu passei lá quando ainda ele estava ainda em construção e vi o que ia acontecer !!!!
  • jefferson
    23 nov, 2015 são paulo 16:50
    ______achei incrivel ,um dia se quando a sorte deixar ,vou conhecer esse bairro aí pessoalmente !!!!!Quero fotografar essa região e coloca la na parede!
  • sousa
    23 nov, 2015 espinho 16:32
    isso podese chamar um inferno em vida ja eses predios estaban feitos para ese tenpo deverian demoler mas ´primeiro pagar a esas pessoas fazer outro predio em outro sitio de igual valor para es um crime cavaco ou mario suares nao viviao ai conserteza viva la borguesia dos governos
  • Luis
    23 nov, 2015 lisboa 16:04
    O assunto não é este mas convido a R.R. a verificar, o que se passa debaixo dos viadutos na zona das Furnas / Sete Rios em Lisboa. Não são "Migrantes" mas são pessoas, seres humanos. Verifiquem, está tudo dito.

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