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Revogação das alterações à lei do aborto deixa as mulheres sozinhas, diz médico

19 nov, 2015 - 07:06 • Filipe d'Avillez

Para João Paulo Malta, a lei que resultou do referendo de 2007 não reflectia o que tinha sido proposto pelos partidários do “sim”. A exclusão dos objectores de consciência do acompanhamento de quem pensa abortar é, por exemplo, “absolutamente injusta”.

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João Paulo Malta é médico e obstetra e foi porta-voz dos movimentos que, em 2007, se organizaram para defender o “não” no referendo que acabaria por liberalizar o aborto em Portugal.

Com muitos anos de experiência profissional, Malta colabora activamente com organizações que ajudam mulheres e raparigas em situações de gravidez difícil e, nesta entrevista, sublinha que um dos principais problemas com que a sociedade se defronta hoje é a pressão a que estas estão sujeitas por parte de maridos, namorados, pais e até patrões.


As emendas feitas à lei do aborto, que a esquerda quer revogar, chegaram a ser aplicadas?

Que eu saiba, a lei não foi implementada na sua totalidade, até porque demora algum tempo. A lei visava, essencialmente, a protecção da maternidade e não são factos que se implementem de um dia para o outro ou de uma semana para a outra.

Com a prometida revogação, volta-se à lei que se criou após o referendo. Esse articulado reflecte o que era proposto pelos partidários do "sim"?

Não reflecte. Todas as pessoas, nos dois referendos que existiram, quer os partidários do sim quer os do não, defendiam a protecção da vida, defendiam o apoio às mulheres grávidas e, nomeadamente, às mulheres grávidas em dificuldades. A lei que foi implementada em 2008 representa tudo menos isso.

A iniciativa legislativa de cidadãos pretendia plasmar na lei uma representação um bocado mais prática do que se viu que era a vontade dos portugueses nos dois referendos. Era, essencialmente, uma lei de protecção da maternidade. O que esta possível revogação mostra é que há pessoas que, na verdade, não querem que a protecção da maternidade vá para a frente, pretendem deixar as mulheres sozinhas com a sua decisão, isto numa altura em que tanto se fala dos advogados dos doentes, como alguém que apoia, acompanha e ajuda na decisão de tantas situações difíceis que os nossos doentes têm. Mais uma vez, vamos deixar as pessoas sozinhas com a sua decisão, sem apoio, sem que façamos a nossa obrigação como sociedade.

O aconselhamento, na prática, pode mudar decisões?
Como qualquer ginecologista e obstetra, já aconselhei mulheres em situações difíceis nesta área, de decisões sobre manter ou não manter uma gravidez. Tal como noutras decisões difíceis no que respeita a saúde, é evidente que a opinião do médico pode informar melhor a pessoa que tem de tomar a decisão.

Estamos numa fase da nossa civilização em que há consentimentos informados para tudo. A pessoa tem de estar informada sobre as consequências da decisão que toma no que respeita à sua saúde - os benefícios e os prejuízos. A informação que um médico dá pode, evidentemente, levar que uma pessoa que achava que ia numa direcção reconsidere a sua decisão. Portanto, a decisão de acompanhar a pessoa, informar a pessoa e ajudar fisicamente a pessoa, na vida do dia-a-dia, é evidente que pode mudar uma decisão.

O que lhe parece o facto de a lei impedir os objectores de consciência de participarem nas consultas prévias?

O que se está a fazer é lançar uma suspeição sobre os médicos e os enfermeiros objectores de consciência. E é uma suspeição absolutamente injusta.

Porque é que eu, como objector de consciência, sou impedido de participar numa consulta de aconselhamento e um colega que não é objector de consciência pode participar nessa consulta? Para isso teríamos de afastar completamente os médicos, porque eu, como objector de consciência, inclinar-me-ia para levar a grávida numa direcção e outro colega, como favorável ao abortamento levaria, a mulher nessa direcção.

Não podemos lançar suspeições deste tipo sobre os profissionais de saúde. Os profissionais de saúde, na sua grande maioria e na sua generalidade, informam os doentes da melhor forma que sabem, do ponto de vista científico, e tentam apoiar as pessoas da melhor forma que sabem. E não há nenhuma razão para que se suspeite de um profissional de saúde só porque é ou deixa de ser objector de consciência.

Já lhe aconteceu conseguir, através de aconselhamento, que uma mulher não aborte e, mais tarde, ela lhe dizer que se arrepende de ter avançado com a gravidez?

Nunca. Já me aconteceu várias vezes conseguir levar as mulheres a reconsiderarem a sua posição e a não abortarem e o que sempre pude testemunhar, durante as gravidezes que lhes segui, e durante os partos e após os partos, foi a enorme alegria que as mulheres e os maridos dessas mulheres têm quando vêem o seu bebé. Nunca aconteceu alguém dizer-me “estou arrependida”.

Existe muita pressão sobre as mulheres da parte de terceiros?

É talvez um dos problemas mais importantes que nós temos. É, precisamente, essa pressão. A pressão por parte dos namorados, companheiros, maridos. A pressão por parte de famílias, a pressão por parte dos pais das próprias jovens que engravidam. A pressão por parte dos empregadores.

Em resumo, a pressão de todos nós, que na realidade não fazemos o nosso trabalho como sociedade. Dizemos que as pessoas podem fazer o que quiserem, só não lhes damos condições para poder fazer aquilo que quiserem. E, na verdade, estamos a empurrá-las para uma rua de sentido único, em vez de lhes mostrarmos que há vários sentidos e que alguns desses sentidos as podem fazer sentir mais felizes.

Nesse sentido, a revogação da lei é um passo atrás?

Sem dúvida. Esta lei era uma lei de protecção da maternidade, de promoção da maternidade e, principalmente, de dignificação da mulher. Voltamos mais um passo atrás, mas, se Deus quiser, havemos de dar mais passos à frente.

Em toda a conversa, nunca falou de um dos temas que apareceram mais associadas a esta lei: a questão das taxas moderadoras. Não é um assunto importante?

É uma questão importante, mas é uma questão menor. O que é importante é a maneira como lidamos com as pessoas.

É evidente que a taxa moderadora é um sinal. Não há razão nenhuma para que uma mulher que decide abortar a sua gravidez até às 10 semanas por vontade própria, sem que haja nenhum outro motivo, seja dispensada de uma taxa moderadora que doentes com outras situações realmente patológicas têm de pagar. É uma questão de justiça. Mas, do meu ponto de vista, o que mais conta aqui é a noção de que o Estado, mais uma vez, vai transmitir que as mulheres são deixadas sozinhas.

Comentários
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  • Rodrigo
    23 nov, 2015 Lisboa 11:53
    Aborto é a maior forma de terrorismo! Vão ver vídeos de aborto, imagens de bébés in utero...
  • Batam no peito
    19 nov, 2015 Lisboa 12:49
    Tudo isto é muito bonito e muito nobre...mas a vida muitas vezes não tem nada de nobre, e não raras vezes nada de bonito. Por exemplo, uma adolescente, que mal sabe o que a vida é, comete um erro, muitas vezes condicionada, e engravida. Tem ela que pagar a vida inteira por um erro que cometeu um dia? Tem ela que condicionar a sua vida toda por isso? Estas pessoas que aqui falam de ser crime, de ser errado, que nunca venham a ter uma filha a engravidar na adolescência, porque aí a conversa para muitos estou certa que mudaria drasticamente. É muito fácil bater no peito e falar bonito quando o problema é dos outros.
  • Alberto Sousa
    19 nov, 2015 Portugal 11:47
    Toda a mulher devia ter um aconselhamento obrigatório na hora de abortar. Nesse momento a maioria das mulheres está confusa, sobre pressão, e optar pelo assassinato de um inocente não é tarefa fácil, não se pode tomar essa decisão de ânimo leve. Se depois resolve ir para a frente...o crime é seu e a consciência também, mas primeiro devia "conversar" sobre isso.
  • Tania
    19 nov, 2015 franca 11:36
    sinceramente eu não vejo i mal de haver aconselhamento afinal os médicos estão lá e para isso! Eu sempre fui contra o aborto, mas sinceramente alguém me explique a lógica de uma mulher que QUER abortar ficar isenta da taxa moderadora pff seguindo por aí eu que tenho um cancro benigno na cabeça também QUERO tirá-lo sem pagar!
  • Judite Gonçalves
    19 nov, 2015 Barreiro 10:47
    Um dia o meu filho que agora tem 11 anos, mas na altura tinha por volta dos 8 anos, perguntava-me mãe o que é o aborto? Fiquei um pouco embaraçada, mas lá consegui encontrar uma resposta. O aborto é matar um bebé que ainda está dentro da barriga da mãe. Uns meses mais tarde fui a uma caminhada pela vida e uma criança pequena fazia a mesma pergunta à sua mãe. Mera coincidência, a senhora deu à filha a mesma resposta que eu havia dado ao meu filho. É assim que ter de ser encarada a vida, se dentro de um ventre está um ser vivo, o que faz o aborto, não interrompe a gravidez, acaba com ela, mata a vida que já está a crescer e a desenvolver-se. O que mais me espanta em tudo isto é que partidos e ativistas de defesa dos amimas, não comem carne, são contra isto e contra aquilo, porque defendem a vida dos animais, mas para defender a vida humana quem é que está lá. Mais me espanta que aqueles que defende a vida votem em Partidos que definitivamente, a única coisa que têm para fazer na vida é defender o aborto e fazer tudo para o facilitar e não só, levar as mulheres a fazê-lo. Porque na vida como em tudo é mais fácil destruir do que construir. Nós seres humanas temos uma tendência nata para eliminar tudo o que achamos que é um obstáculo para nós. Como canta o Roberto Carlos: " Como é possível que você tenha coragem De não deixar nascer a vida que se faz Em outra vida que sem ter lugar seguro Te pede a chance de existência no futuro" Mais palavras para quê?
  • João Lopes
    19 nov, 2015 Viseu 10:47
    Em Portugal, desde 2008 fazem-se em média 51 abortos por dia. Nalguns países o aborto e é visto como um sinal de progresso e conquista da liberdade. Mas é um crime abominável, porque são as próprias mães que matam os seus filhos indefesos e inocentes e por isso ficarão, sempre, com uma cicatriz dolorosa no seu coração…
  • Peter
    19 nov, 2015 Lisboa 10:10
    Sou a favor da despenalização do aborto, mas acho que se dev pagar taxas moderadoras como qualquer outro tratamento clínico.
  • Que disparate!
    19 nov, 2015 Lisboa 09:55
    É absolutamente discriminatório este tipo de entrevistas. Tratarem as mulheres como seres acéfalos que não sabem o que fazem e que "não podem ser deixadas sozinhas", ou então pegam fogo á casa..., é de um machismo impar. Obrigá-las a assinar ecografias? Obrigá-las a consultas no psicólogo? Ter alguém atras de si a medir todos os seus passos? Isto é ultrajante! Faz lembrar o século passado, ou até mais atrás, quando as mulheres começaram a lutar por ter uma voz activa na sociedade, e os maridos, justamente com o apoio dos médicos, colocavam-nas em hospícios, porque eram histéricas, ou estavam desequilibradas. Choca-me esta sociedade que ainda trata as mulheres como animais de estimação dos homens! As mulheres são donas do seu corpo, são donas da sua vida, são donas do seu intelecto e são donas do seu destino! E têm que ser livres para poderem tomar as decisões que melhor corresponderem ao que pretendem para si. E se precisarem de aconselhamento com certeza que o procurarão, sem ter que ser imposto. E ter que escrever isto em 2015, faz-me sentir ferida na minha dignidade enquanto mulher, faz-me sentir desrespeitada e faz-me sentir uma revolta imensa...

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