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Reportagem

Um naufrágio não tem hora marcada

16 out, 2015 - 07:45 • André Rodrigues , Marília Freitas (vídeo)

Atrasos no salvamento marítimo são consequência de rotinas trocadas entre pescadores e meios de salvamento. Estações de socorro do Instituto de Socorros a Náufragos só funcionam das 9h00 às 18h00.

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Um naufrágio não tem hora marcada

"Havia vezes em que saíamos às três da manhã e regressávamos antes das nove. Saíamos sem estar lá ninguém e entrávamos sem estar lá ninguém. Pensam que o homem do mar só trabalha oito horas e depois vem para terra dormir. Morria tudo à fome se nós trabalhássemos como eles".

O desabafo é de Francisco, Xico Flores como é conhecido entre os ex-companheiros da faina. Foram mais de 40 anos no mar.

Experiência suficiente para constatar que os atrasos no socorro marítimo não são de agora. A memória recua quase 20 anos à madrugada em que perdeu um irmão e um cunhado, a escassos metros da barra de Aveiro. "À uma da manhã pediram socorro, foram a São Jacinto pedir auxílio aos helicópteros da Força Aérea".

Mas o comandante da base não autorizou. "Entre as seis e as sete da manhã estavam os corpos a aparecer na praia". Xico perdeu um irmão e um cunhado num naufrágio sem sobreviventes. Conta à Renascença que teve a sorte de não morrer "porque tinha deixado aquele barco há um mês".

De norte a sul, 26 estações do Instituto de Socorros a Náufragos (ISN) asseguram as missões de socorro no mar, mas só das 9h00 às 18h00, ou seja, fora do horário habitual das rotinas dos pescadores. À Renascença, fonte da Autoridade Marítima explica que, para lá do horário de expediente, as operações de resgate e salvamento são asseguradas por navios da marinha e meios da Força Aérea.

José Festas, presidente da Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar (APMSHM) desde a sua fundação há quase uma década, lembra que as próprias entidades oficiais reconhecem as debilidades do sistema. "O próprio ministro [da Defesa] sabe que o ISN está nos caos".

E fundamenta: "Há estações salva-vidas que têm um homem. Depois, temos o problema do horário". José Festas defende que o salvamento de proximidade deve estar disponível 24 horas por dia e que as estações do ISN deviam ter, "pelo menos, cinco homens" ou oito, para "assegurar a rotação de horários, como acontece nos hospitais, como acontece no INEM ou nos bombeiros".

Acresce outro problema. A estrutura de missão e resgate do ISN está envelhecida. José Festas fala de uma "média de idades muito elevada, próxima dos 50 anos" e muito mal paga. "Estão na cauda da administração pública, numa profissão de desgaste rapidíssimo", precisa.

A Autoridade Marítima não quer fazer comentários enquanto corre no Ministério Público o inquérito sobre a tragédia na Figueira da Foz.

Naufrágio na Figueira da Foz renova alertas

A experiência recente do naufrágio na Figueira da Foz é mais um sinal da urgência deste problema.

José Festas acusa o ISN de "falta de ética de salvamento". Em causa está a demora, que diz ser excessiva, nas operações de resgate. "O socorro chegou uma a duas horas depois do alerta. O homem que morreu podia ter sido salvo. Os dois sobreviventes estavam salvos por natureza porque estavam a bordo da balsa de emergência".

Mas quantas mortes seria possível evitar se o salvamento no mar fosse mais rápido? "É muito vago dizer que de dez ou 12 náufragos poderíamos salvar seis ou cinco. Talvez metade", admite o presidente da APMSHM.

Já Maria Alcide, presidente da Junta de Freguesia das Caxinas, não tem dúvidas: "Se aparecesse o socorro na devida altura, se calhar não havia tanta gente que fica no mar".

No entanto, a autarca admite que, a pretexto da larga experiência de muitos anos ao mar, há quem facilite "por exemplo ao não usar o colete salva-vidas".

Uma falsa questão para José Festas, que reafirma que "o uso do colete é da responsabilidade de cada um, não é obrigatório". Xico Flores concorda. Para este antigo pescador das Caxinas, "estar a trabalhar num barco não é a mesma coisa que estar sentado a uma mesa a escrever. Nós fazemos muito exercício porque temos de virar redes para um lado e redes para o outro. O colete só dificulta".

Além disso, diz, "a maior parte das mortes não acontece em alto mar. É mesmo junto à costa".

Mar calmo não dá peixe

E a tragédia não tem hora marcada. Dores Arteiro tem banca do peixe no mercado das Caxinas há mais de 30 anos. Como quase todas as mulheres da freguesia, já chorou a morte do marido e de outros familiares que o mar levou. "Dois sobrinhos, tios e padrinho".

O filho também lá anda. "E quando o mar está vivo, a gente apega-se a todos os santos e mais alguma coisa". E quando corre a notícia de um acidente, "ainda nem sabemos o nome do barco e já estamos aos gritos, aflitas... quem será, quem não será".

É uma angústia permanente de quem vive no frágil equilíbrio entre a sobrevivência e uma tragédia muitas vezes anunciada. Nas Caxinas vivem quase 20 mil pessoas. E quase todas vivem daquilo que o mar lhes dá.

Com o Inverno à porta, reaviva-se a memória de tantas histórias sem final feliz. Entra Dezembro e Janeiro. Mar de Inverno. Contra todas as intempéries, os pescadores saem ao mar para a pesca do robalo. "Temos tanto medo que os barcos venham mais até terra apanhar peixe, porque pode vir uma vaga de mar que pode ser fatal."

Mas a vida da faina é mesmo assim. Enfrenta-se o perigo para ganhar o sustento para a família. Nas Caxinas, ninguém alimenta ilusões: "O mar calmo não dá peixe".

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  • António Azevedo
    20 out, 2015 Lisboa 20:00
    Acho que o Jornalista André Rodrigues não foi ao fundo da questão. Deveria ir mais a montante. Todo o acidente é uma sucessão de erros: erros esses, muitas vezes esquecidos pelos pescadores. Mesmo que INS estivesse aberto 24 h, não evita que haja mais acidentes, e irão sempre responsabiliza-los por esses acidentes. As mortes são sempre de lamentar, mas há que evita-las, e não arranjar responsáveis. Vejamos o caso particular da Figueira da Foz: 1ºerro-entrada na força da enchente (baixa-mar tinha sido às 17:29); 2ºerro-o Mestre tem obrigação e dever de juntar a tripulação em local da embarcação, com coletes vestidos (neste caso não iam a trabalhar), seguro para, em caso de naufrágio poderem ficar todos à superfície (um pequeno parêntese - há coletes que parecem casacos e que se auto-insuflam em contacto com a água. Podem ser mais caros, mas salvam vidas); 3ºerro-virar a embarcação à ondulação (aqui, muitas vezes há uma estabilidade muito precária, isto é, o centro de gravidade muito junto ao metacentro, permitindo que a embarcação não tenha um braço endireitante suficiente); finalmente último erro (se é que pode ser considerado erro...) como pode um tripulante ter uma Cédula Marítima sem saber nadar - caso do Pescador que esteve uma hora à espera de ajuda. Enquanto não existirem fiscalizações rígidas às normas de Segurança, irá haver sempre naufrágios com mortes, e, há que insistir numa formação rígida e melhorada, para uma melhor Segurança Marítima Piscatória.
  • Pois Não!
    16 out, 2015 Pr 09:20
    Mas o Instituto de Socorros a Naufragos também não pode fechar. Deve funcionar 24 horas por dia!...e dotado das condições e equipamentos suficientes! Não podemos estar ao sabor da carolice de alguém.
  • Ferreira
    16 out, 2015 Lisboa 09:14
    Não é assim também com a GNR, a PSP a Policia Maritima e com tudo?. Tarabalho diurno com pouco pessoal e com falta de meios estando os que dispõem absoletos. Em compensação tudo o que envolva politicos em grandes cargos publicos excesso de pessoal, carros topo de gama, telemóvel e despesas à farta e muitas horas de trabalho nocturno em grandes jantaradas em restaurantes de luxo. E anda esta malta toda com medo de um governo de esquerda. Somos unicos, não estamos fartos de ser explorados.

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