09 out, 2015 - 07:03 • André Rodrigues e Sérgio Costa
António Capucho foi, em 1983, um dos principais negociadores do lado do PSD para a formação do governo do Bloco Central.
Com base na experiência de há 32 anos, Capucho olha, na Renascença, para o processo agora em curso, resultante do resultado eleitoral de 4 de Outubro e conclui: o facto de estar também em conversações à esquerda, dá ao PS e a António Costa força negocial, pelo que Passos Coelho terá de ceder mais do que poderia esperar-se.
Para o antigo dirigente do PSD, hoje próximo do PS, ficou claro da mensagem presidencial que Cavaco Silva não rejeitará, mesmo sendo do seu desagrado, convidar António Costa para formar governo à esquerda, caso as negociações PSD/CDS/PS falhem.
Quais deverão ser, do seu ponto de vista, as prioridades desta negociação?
Fundamentalmente, a negociação tem a ver com os quatro pontos que o Partido Socialista apresentou na noite das eleições, que, não sendo maximalistas ou absolutistas, ou seja, são susceptíveis de moderação por parte da Coligação, podem permitir que o PS compreenda e possa explicar aos seus militantes e eleitores que há, de facto, razões para apoiar um governo liderado por Pedro Passos Coelho.
Tudo está relacionado com questões inerentes à Segurança Social, que foi o tema de maior crispação da campanha, embora me pareça que as posições até estão agora algo próximas. Depois, terá que haver uma atenção redobrada do PSD à impossibilidade de manter o frenesim das privatizações, nomeadamente, a privatização do sector das águas que, como é óbvio, tem que ser posta de lado, e ainda o Estado Social. Claro que o PS também terá que abrandar as suas exigências, terá que fazer cedências pois um acordo é isso mesmo.
Olhando para o Orçamento de Estado, se Passos Coelho receber a garantia de, pelo menos, um cenário de abstenção do PS, isso será decisivo?
Eu acho que é determinante. Mais do que o próprio programa de Governo, o orçamento é que é essencial, pois estão lá os números e, com números, a negociação é mais difícil. Na minha opinião, o importante é que, no caso de se chegar a um acordo global de princípio, António Costa não pode garantir à partida a viabilização do Orçamento. Terá que ver os números.
Eu admito, até, que o actual governo tem obrigação de já ter preparado um orçamento que vá ao encontro das exigências do PS, de modo a poder apresentar esse “draft”, o que facilitará o diálogo entre as duas partes.
Admite que a abertura de António Costa ao diálogo à esquerda pode condicionar esta negociação?
Condiciona na medida em que essa abertura dá muita força negocial a António Costa, ou seja, Pedro Passos Coelho não pode contar, à partida, com uma posição do PS que, em resumo, seria de não valer a pena fazer exigências. As informações que temos mostram que Bloco de Esquerda e Partido Comunista flexibilizaram muito as suas exigências. Sobretudo, as mais radicais, que têm a ver com acordos internacionais, seja a NATO ou a Europa. E aí há a perspectiva de Passos Coelho assumir que, se não chegar a um entendimento com este PS, não haverá dúvidas que poderá haver um acordo com a esquerda radical. Não estou a dizer que isso seja desejável, mais por uma razão de problemas inerentes ao cumprimento dos tratados internacionais do que por razões de natureza ideológica. Portanto, na negociação, Passos Coelho não pode ignorar que António Costa tem alternativa. Em democracia, há sempre alternativa e, neste caso, uma solução que parecia impensável está tornar-se, não direi provável, mas possível. Mais do que isso, interpretando bem a mensagem do Presidente, percebe-se que ele não rejeita, embora não deseje, a hipótese de convidar António Costa para tentar formar governo num quadro de falhanço das negociações PSD/PS.
Em 1983, esteve envolvido na negociação entre PS e PSD que levou ao governo do Bloco Central. Quais são as diferenças fundamentais entre essa e a negociação de hoje?
Em 83, as negociações foram muito mais tensas do que se pode pensar. De tal maneira que, depois dos negociadores do PSD terem chegado a um pré-acordo com o PS e quando pretendíamos apresentar a solução ao Conselho Nacional, o professor Mota Pinto ameaçou demitir-se da liderança do partido, se aquele acordo fosse aprovado. Então, chegados a este ponto, vários dirigentes, entre os quais o professor Vítor Crespo e eu próprio, disseram-lhe que seriam eles a demitir-se, deixando a decisão para o Conselho Nacional. Mota Pinto recuou à última hora, perante a pressão de variadíssimos dirigentes nacionais que entenderam que, não sendo perfeito, o acordo era o possível. A partir daí, as coisas até correram bem, pois Mota Pinto deu-se bem com Mário Soares e Almeida Santos, na altura o número 2 do PS e desse governo, e, fundamentalmente, deram-se bem com o ministro das Finanças, o saudoso e competentíssimo Ernâni Lopes.
As matérias fundamentais tinham a ver com a Europa e, aí, havia uma grande aproximação, embora nos "dossiers" europeus houvesse questões muito melindrosas que motivaram o desacordo do professor Cavaco Silva, então na oposição interna do PSD. Portanto, foi um processo bastante conturbado. Houve muita discussão.
Nessas eleições, foi o PS o vencedor, com maioria relativa. Quem está nessa posição é quem cede mais?
Houve cedências significativas de parte a parte. Agora, havia a noção, por parte de Mário Soares e de Mota Pinto, apesar das suas hesitações no final, do que era o interesse nacional. Mário Soares sobrevoava um pouco os "dossiers", mas tinha negociadores bastante afirmativos e exigentes, e a verdade é que o interesse nacional se sobrepôs aos interesses partidários. Estávamos numa situação difícil. Era uma situação financeira não comparável à actual, pois tínhamos uma moeda própria, mas as coisas foram muito difíceis e houve cedências de parte a parte
Na altura, as forças mais à esquerda não assumiam uma posição idêntica à de hoje…
Era impensável. O Partido Comunista de hoje, e eu estou á vontade porque estou nas antípodas, não tem nada a ver com o radicalismo do Partido Comunista da altura, a não ser do ponto de vista verbal, por vezes. Nessa altura, era impensável o PCP aceitar uma coligação com Mário Soares. Na altura, também não havia um Bloco de Esquerda, que está na moda e tem duas figuras, a Mariana Mortágua e a Catarina Martins, muito bem preparadas. Mariana Mortágua não é surpresa pois é economista. Já a Catarina Martins é para mim uma surpresa. Tinha assistido ás intervenções dela de natureza política bastante agressiva, na Assembleia da República, e, se me é permitida a expressão, agora deu um banho a todos os interlocutores com quem debateu. Estava muito bem documentada quanto a números e a políticas gerais. Por isso, o Bloco é uma força a contar, sabendo contudo que lá dentro aquilo é uma coisa parecida com o antigo Syriza, com muitas pessoas saudosas das figuras do comunismo internacional, desde Estaline a Lenine até ao Marx. Mas, enfim, é o parceiro de coligação possível numa solução á esquerda.
Recuperando a ideia, Passos Coelho tem a tarefa mais complicada pelo facto da esquerda estar a dialogar com o PS. Terá que ser Passos a ceder mais?
Claro. Se Passos Coelho não tivesse a hipótese de uma coligação à esquerda, estaria muito mais forte na negociação com o PS. Neste momento, ele sabe que assim não é. Está diminuído e terá que pensar melhor nas cedências que tem mesmo de fazer. Há ainda uma razão adicional: para este PSD, é complicadíssimo sair da área de governo. São milhares de laranjinhas que perdem posições, para não falar de empregos, dentro da máquina do Estado e, até, nas autarquias locais. Seria uma situação muito difícil para um partido que, neste momento, em termos de ocupação de lugares de chefia na administração pública, é profundamente tentacular. Portanto, o que Pedro Passos Coelho pretende é continuar no poder, mesmo que tenha de pagar um preço muito elevado.
O que é então mais provável?
É uma governação PSD/CDS com um acordo parlamentar com o PS. É mais desejável e mais provável, fundamentalmente pelas implicações negativas que um governo de maioria à esquerda poderia ter na economia e designadamente no investimento.