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O risco de escrever sobre a atualidade na ficção de Nuno Camarneiro

09 jul, 2018 - 15:27 • Maria João Costa

"O Fogo Será a Tua Casa" é o novo romance do vencedor do Prémio Leya 2012. O autor é o narrador de uma aventura em que é raptado por fundamentalistas islâmicos.

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Chama-lhe "bioficção" e assume que é um risco escrever sobre um tema da atualidade. No seu novo livro, o escritor Nuno Camarneiro é também personagem de uma ficção que conta a história de um grupo de ocidentais feitos reféns por radicais islâmicos.

Editado pela Dom Quixote, "O Fogo Será a Tua Casa" nasceu de uma vontade do autor em saber mais sobre a cultura islâmica. Em entrevista à Renascença, para ouvir no "Ensaio Geral" esta sexta-feira depois das 23h, o engenheiro físico de formação diz que a escrita o ajuda a libertar-se dos rigores científicos.

Nuno Camarneiro assume neste livro o papel de narrador. Como estabeleceu as fronteiras? Até que ponto é o escritor e até que ponto é o narrador?

Este foi um exercício algo difícil e arrojado. É uma bioficção. Para abordar um tema tão complexo e que passa tanto por esta ideia do cativeiro, de estar refém de um grupo durante este tempo, achei que teria de sentir na pele tudo isto, de algum modo. Não seria suficiente fazer um narrador omnisciente. Então decidi pôr-me no centro da ação e ser uma das personagens. Isso ajudou-me a centrar e a olhar de dentro, em vez de estar a olhar de fora.

Dava mais corpo à ficção que queria contar?

Achei que uma narrativa , com os temas complexos que este livro aborda, ficaria enriquecida se eu estivesse a olhar de dentro e não de fora, que acaba por ser mais ou menos o costume.

Seria mais verdadeiro?

Sim, mas obviamente que é sempre um simulacro de verdade. Contudo, a verdade é sempre em si uma estimativa. As nossas verdades são estimativas, mesmo aquilo por que passamos. Eu tenho a minha e outra pessoa terá outra. Esta é a minha versão de verdade em forma de ficção.

"O Fogo Será a Tua Casa" é um livro com os pés bem assentes na atualidade. Inspirou-se nas notícias do dia-a-dia?

É verdade que se diz, por vezes, que escrever sobre a atualidade é um risco. Fazer literatura e ficção com base na atualidade comporta os seus riscos, porque a realidade muda muito rapidamente. No entanto, no caso tanto da questão do Islão, dos atritos, como das guerras entre a cultura dita ocidental e a dos países islâmicos, é uma atualidade muito antiga, com 700 anos. Teve sempre formas diferentes, desde a guerra aberta das Cruzadas, das invasões muçulmanas e da reconquista, até esta forma mais contemporânea que temos. Por um lado, várias ocupações e colonizações de países europeus e dos Estados Unidos da América em países de tradição muçulmana e ultimamente com a retirada dos impérios, há uma espécie de contra-ataque feito sobre os civis, sob a forma de terrorismo.

Essa atualidade mantém-se.

Vamos assistindo com vários grupos. A Al-Qaeda, o Daesh, o Isis... Virão outros... Infelizmente, nada nos leva a supor que isso terminou. Isto mistura-se também, por outro lado, com a questão dos refugiados. O pico da chegada de refugiados à Europa coincidiu com o domínio do Daesh e o seu apogeu na Síria e no Iraque. Tudo isto está interligado e tem sido uma questão tão prevalente nos últimos anos que eu achei que deveria pegar nela e deveria tratá-la de algum modo, até para a poder entender melhor ou tentar entender melhor.

No livro lemos a história do escritor e de um grupo bastante heterogéneo que fica refém de um grupo radical islâmico e que dá por si em cativeiro. Eles tentam sobreviver e percebemos todas as diferenças culturais que existem entre eles.

Um risco que existe neste tipo de exercícios é cairmos no estereótipo, seja no lado do inimigo - neste caso do mundo Islâmico, que é meu inimigo no livro mas não na realidade - como também do lado ocidental. O Ocidente é muita coisa. Neste grupo temos reféns uma freira inglesa, um engenheiro belga, um francês e depois vamos ter um norte-americano. O Islão também é muita coisa. Mesmo do lado dos nossos sequestradores há diferenças e, ao longo do livro, vamos vendo, com alguns diálogos e cenas que se vão passando, como também não são todos iguais. Há muitas histórias que levam estas pessoas para estes grupos radicais e a mim interessou-me matizar, ir ao detalhe, e que não fosse tudo igual de um lado e do outro.

Ou seja, quebrar os estereótipos?

Claro. Isso é muito importante, porque enquanto falarmos utilizando apenas estereótipos não há comunicação possível, vamos sempre ser os demónios uns dos outros. Precisamos do conhecimento do outro, da outra cultura, nós da deles e eles da nossa. Há um grande desconhecimento de parte a parte. Uma coisa, por exemplo, que eu acho estranha é como nós, na nossa formação normal, em Portugal e na maior parte dos países europeus, não estudamos nem aprendemos o que é o Islão na escola. Nem o Islão, nem o Judaísmo ou o Hinduísmo... Se calhar pelo menos quatro ou cinco maiores religiões do mundo. Atrás delas estão filosofias, modos de vida. Faria sentido que fosse aprendido na escola para que não fosse papão escuro e do qual nós não sabemos nada. Normalmente isso dá péssimos resultados, tanto do nosso lado como do outro.

Para escrever este livro teve de passar por todo esse processo de aprendizagem e pesquisa para não cair nos estereótipos?

Sim, por um lado tive uma experiência de dois meses na Argélia a dar aulas que me deu alguma base para este livro. Depois tive de ler muito. Li o Alcorão, que nunca tinha lido, pelo menos totalmente. Li muitos livros de História da religião, livros específicos sobre o Islão, por um lado porque era esse o projeto do livro. Eu queria de facto aprender mais sobre o Islão para escrever este livro e depois porque, estando a lidar com matérias tão sensíveis, não poderia arriscar cometer erros grosseiros. Quando se toca nas religiões, isso obriga-nos a ter um mínimo de conhecimento para não dizermos disparates. Creio e espero não o ter feito.

Escreve para entender o mundo que o rodeia?

No meu caso os livros que tenho escrito têm também muitas vezes a função de me permitirem estudar e aprofundar temas, questões que já me interessavam. Cada livro é um projeto, obriga-me a estudar e a pensar mais sobre as coisas e até, como no caso deste livro, a experienciá-las. A escrita de um romance sobre um tema é também vive-lo e vivê-lo intensamente.

Ou seja, é também uma forma de expressar a sua forma de viver a vida e de olhar o mundo?

Sim, os romances não se prestam a grandes teorias, mas ajudam-nos a entender o outro, a pormo-nos no lugar dos outros, e isso está muito presente aqui neste livro.

Escrever continua a ser uma segunda profissão ou é cada vez mais a primeira?

Tenho várias profissões que vão competindo entre elas. Dou aulas na Católica do Porto numa área mais cientifica de químicas e físicas e faço-o muito a sério, leva boa parte do meu tempo. Mas a escrita também é diária. Vou saltitando entre estes dois pólos com grande alegria. Custa-me afunilar numa área de ação. A escrita vai-me ajudando a libertar dos rigores científicos e a ciência e o ensino vão também ajudando a pensar que há coisas que são mesmo como são. Por outro lado, o contacto com os alunos também me ajuda a espairecer das longas horas de escrita que normalmente tenho.

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