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“As Igrejas não existem para estar fechadas”

04 jun, 2018 - 18:44 • Ângela Roque

No dia em que arrancam as obras na Igreja de S. Cristóvão, na Mouraria, o padre Edgar Clara anuncia um novo projeto: vai abrir ao público o acesso à Torre dos Sinos da Igreja do Castelo.

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Há oito anos a lutar pela recuperação e restauro da Igreja de S. Cristóvão, em Lisboa - onde é pároco - Edgar Clara diz que o arranque das obras no telhado do edifício é um “momento importante” para si e para toda a comunidade da Mouraria.

Afinal, todo o bairro se envolveu nas várias iniciativas de angariação de fundos que organizou, que também contaram com a colaboração de muitos turistas. Houve noites de fado e arraiais pelos santos populares, venderam-se biscoitos e até telhas onde se podia escrever uma mensagem, que agora vão serão aplicadas na nova cobertura.

Foi em 2014 que o projeto ganhou o Orçamento Participativo da autarquia, com vista à sua divulgação. Mas foi através das várias campanhas realizadas que a totalidade dos fundos, 140 mil euros, foi angariada. Três anos depois, a “primeira telha” da obra foi lançada esta segunda-feira pelo presidente da câmara, Fernando Medina.

Em entrevista à Renascença, Edgar Clara conta que muitos lhe chamam o “padre engenheiro” por estar sempre a falar das obras.

Não gosta da ideia de cobrar entrada nas igrejas, porque o património é para estar disponível e acessível a todos, mas reconhece que até nas zonas mais turísticas há dificuldades em mantê-las abertas. Uma realidade que espera conseguir alterar na igreja de Santa Cruz do Castelo, onde vai abrir o acesso à Torre dos Sinos, a partir da próxima quinta-feira.

Como é que se sente agora que arrancaram as obras na Igreja de São Cristóvão, que encontrou muito degradada?

É um momento importante penso que para toda a comunidade, e para mim em particular. O projeto de São Cristóvão já tem pelo menos cinco anos. Eu há oito que fui para estas paróquias e comecei logo a procurar preservar o património e uma das coisas que quis fazer foi envolver a comunidade.

Podemos dizer que essa é uma das marcas deste projeto?

É uma das suas marcas, sim. Outra foi transformar a arte pela arte, artistas de arte contemporânea ajudaram a restaurar a arte antiga. Envolvemos também as associações do próprio bairro e as pessoas singulares. No total conseguimos reunir 170 mil euros. Já temos os 140 mil para o telhado, mas já houve 15 mil que foram usados na recuperação de duas telas da igreja (de Bento Coelho da Silveira) e houve dinheiro gasto noutras pequenas obras. Quase todo este dinheiro foi dado pelas pessoas, porque houve várias iniciativas ao longo dos anos. Houve arraiais, noites de fado, houve a campanha “Não fiques com a telha”, em que as pessoas compraram telhas e escreveram mensagens.

Essas telhas vão ser agora usadas?

Vão. Começa hoje a parte mais dura, que é tirar as telhas antigas, começar a limpar o tardoz do teto e colocar as telhas em que as pessoas escreveram e em que podem ainda escrever ao longo do próximo mês e meio. Neste momento já temos umas 2 mil telhas vendidas e todas serão colocadas no telhado. Eu até gostava muito de fazer uma coisa que era contar a história de cada uma destas telhas. Porque há histórias interessantíssimas, por exemplo, de mães que escreveram uma oração pelos filhos que já morreram, ou de avós que ofereceram, da sua própria reforma, uma telha por mês, com o nome de cada neto. Mas há histórias que não vamos conseguir contar.

Quais?

As das telhas escritas em chinês, em japonês, em árabe, por exemplo. Houve uma quantidade de turistas que acharam a ideia muito curiosa e passaram por lá. Habitualmente os estrangeiros são muito sensíveis a este tipo de campanhas a favor do património.

E estamos no ano europeu do património. Também tem relevância lançar esta obra nesta altura?

Tem esta relevância para mim muito importante, que é as pessoas poderem conhecer o seu património. Eu tenho quatro paróquias em Lisboa - Socorro, São Cristóvão, São Tiago e Castelo. Esta igreja de S. Cristóvão, na Mouraria, foi a primeira que consegui manter sempre aberta, desde há quatro anos, graças a uma senhora que faz agora quase 80 anos. Continua aberta com voluntariado. Todas as outras estão fechadas.

Muitas pessoas dizem-me para cobrar bilhete, como acontece em muitos países, e até em Portugal, em algumas catedrais. Eu prefiro ter as igrejas fechadas, porque para mim o património é algo que deve cumprir a função para a qual foi construído. A igreja continua a ser o último reduto de cultura gratuita aos pobres. Um pobre pode entrar dentro de uma igreja e sentar-se e contemplar arte, mesmo que seja (apenas) arte religiosa. O nosso património tem de estar disponível e acessível a todos.

Estas quatro igrejas onde é pároco situam-se numa das zonas mais visitadas por turistas em Lisboa, nos bairros históricos do Castelo e da Mouraria, junto a Alfama.

O que é uma vantagem e uma desvantagem. Onde há mais turistas é no Castelo, segundo as estatísticas o ano passado um milhão e 400 mil pessoas visitaram o Castelo.

Mas a igreja está fechada.

Só abre uma hora por semana, para a missa. Ora, ao estar fechada não cumpre a sua missão. E só tenho no máximo 10 pessoas que vão à missa, porque já não vive lá ninguém.

Por causa da pressão imobiliária e do turismo?

Sim. Agora até vendem lá umas t-shirts que dizem ‘Queremos o bairro de volta’. Na Mouraria a mesma coisa.

Hoje vai ter o presidente da câmara na inauguração das obras em S. Cristóvão. Vai dizer-lhe isso?

Sim, talvez. Mas pretendo agradecer-lhe, porque este também é um bem da câmara. Porque todo este projeto só foi possível com uma coisa chamada 'Orçamento Participativo’ (OP), que ganhámos em 2014. Os 75 mil euros do OP permitiram-nos lançar uma campanha de marketing cultural, mas foi a câmara que nos ajudou com isso, não recebemos diretamente esse dinheiro. Depois é que avançámos com as campanhas de angariação de verbas. Mas em tudo o presidente e os funcionários da câmara municipal têm acarinhado este projeto como seu. Portanto, estando o presidente disponível para fazer o lançamento da ‘primeira telha’, como nós lhe chamamos, quero dizer-lhe ‘Obrigado'.

O custo total das obras na Igreja é de quanto?

É de um milhão de euros. Já só me faltam 860 mil euros…

Mas começa-se pelo telhado?

O telhado vai ficar por cerca de 140 mil euros. Mas, começam a aparecer problemas. Não nos lembrámos, por exemplo, da rede anti pombos, são mais dois mil euros. Não nos lembrámos que também devíamos incluir no orçamento a parte das janelas, que são mais dez mil euros. São sempre contas de somar, e ao mesmo tempo de 'sumir'...

Por isso, vai continuar a precisar da ajuda das pessoas e a ‘inventar’ campanhas?

Vou. A próxima será com as telhas velhas que estão no telhado, vamos tirá-las e personalizá-las com diferentes coisas, com o Santo António, com uma imagem nossa senhora para o Dia da Mãe, ou de São José para o Dia do Pai. Portanto, as pessoas poderão vir à igreja comprar uma telha das antigas e dar um presente aos amigos. Vamos fazer visitas às obras, uma vez por semana as pessoas poderão vir falar com técnicos, ver como se restaura a pedra, as madeiras. E vamos também fazer visitas guiadas à Mouraria cristã, com um guia profissional.

Tem também um projeto novo para a igreja do Castelo. Como é que vai funcionar?

Vamos reabrir a igreja das 9h da manhã às 9h da noite, porque vamos permitir o acesso à Torre dos Sinos. Os turistas, os lisboetas, os portugueses em geral, quem quiser pagará um bilhete para subir e ver toda a imagem sobre Alfama, sobre o rio Tejo. Será um novo miradouro com uma vista única, porque para o outro lado, a parte da Graça já se pode ver da muralha do Castelo. Isso vai-nos permitir manter a Igreja aberta durante todo o dia, para que os turistas, que estão cansados de subir até lá acima, possam parar, descansar, contemplar e rezar.

Esse também é um dos objetivos destas suas iniciativas, evangelizar através da arte, levar as pessoas a aproximarem-se de Deus desta forma?

Sim. Às vezes as pessoas olham para mim e dizem que pareço um ‘padre engenheiro’, sempre com obras, ou um ‘padre gestor’ de património... o que é verdade. Mas, o importante é que eu faça todos estes projetos com um objetivo, levar as pessoas a encontrarem-se com Aquele que me chamou há 25 anos para ser sacerdote.

Há quem o procure, de outras paróquias e dioceses, para lhes ensinar como é que isto se faz, esta mobilização das pessoas?

Sim, e não só das paróquias, também pessoas que estão nos serviços das câmaras ou na direção-geral do património cultural. Partilho materiais com estas pessoas. Há padres que às vezes me telefonam a dizer 'estou a pensar fazer biscoitos, como os biscoitos de São Cristóvão, que vocês inventaram aí’, mas há coisas que funcionam numa paróquia e podem não funcionar na outra. Os projetos têm que ter algo de local, comunitário, fazer com que seja uma coisa das pessoas e para as pessoas.
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