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“Uma casa em Mossul”

Dez dias num cemitério para (tentar) perceber o Estado Islâmico

11 mai, 2018 - 13:00 • Marta Grosso

Paulo Moura esteve onde poucos estiveram e viu o que ninguém quer ver. "Naqueles dias, as ordens eram para se matar toda a gente. Vi cadáveres de crianças por todo o lado", conta à Renascença. O livro em que relata os dez dias que passou no último bastião do grupo radical no Iraque já está à venda. "É, sobretudo, um testemunho pessoal."

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Paulo Moura queria saber o que é o Estado Islâmico, perceber como realmente funciona este autointitulado Estado que é, no fundo, um grupo terrorista, hoje com células espalhadas por todo o mundo.

Foi até onde conseguiu, no caso "Uma Casa em Mossul", na parte ocidental daquela cidade iraquiana – a casa que dá o título ao seu último livro.

Só dormiu nela num dos dez dias que passou em Mossul. O facto de haver mulheres na família impedia que ficassem debaixo do mesmo teto. “À noite, quando estavam a jantar e ao serão, não podia estar nos mesmos aposentos em que elas estavam”.

Acabou por ir dormir para a rua, numa cama ali montada, ao lado de uma mesa de plástico, por cima de um cemitério.

“Primeiro é preciso perceber que, durante o dia, estavam 50 graus – quer dizer, 52, 53... À noite, ficava um bocadinho mais fresquinho, 47 graus. Soprava uma brisa abafada e quente que vinha do cemitério. Estava a dormir em cima de um cemitério com 50 graus...”, recorda em conversa com a Renascença.

Um dos problemas imediatos? Estar na rua significa estar exposto. “Isto era uma zona de raptos. Um jornalista raptado por alguém do Estado Islâmico ou por alguém que lhes vender um jornalista, eles pensavam que valia muito dinheiro.”

A sorte que teve é que ninguém sabia que era essa a sua profissão. Só o dono da casa tinha essa informação – um rapaz que o repórter português conheceu numa viagem entre Erbil e Mossul. “Ele trabalhou comigo como meu tradutor, arranjou um amigo que tinha um carro e que podia trabalhar connosco como meu ‘chauffeur’ e eu vivia nesta casa."

Paulo Moura chegou ali em julho de 2017, numa altura em que o Estado Islâmico ainda estava a sair – ou melhor, a ser expulso – da parte ocidental da cidade.

“De facto, consegui estar a viver dentro de Mossul Ocidental enquanto decorriam os últimos combates – que não eram combates, eram as últimas matanças, porque naqueles dias as ordens [das forças iraquianas, apoiadas pela coligação internacional] eram para se matar toda a gente, incluindo mulheres, crianças e famílias inteiras. Tudo. E não vamos lá perguntar se és do Estado Islâmico ou não, ou que idade tens, se és esposa, se tens família... não interessa. Vi cadáveres de crianças por todo o lado.”

É por isso que "eles não queriam testemunhas", acrescenta à Renascença. “Não havia jornalistas e eu só entrei ali porque passava por iraquiano. Não sou propriamente louro de olhos azuis, estava lá com os meus amigos e tinha roupas iraquianas. As ordens eram para acabar totalmente com eles. E não podia haver testemunhos disso.”

O que resultou da campanha militar foi uma cidade de quase três milhões de habitantes reduzida a umas poucas pessoas “que não conseguiram fugir”, mas que, ainda assim, tiveram a sorte de não ser mortas. Pessoas com “histórias horríveis para contar", relembra o jornalista. "Todas tinham familiares que morreram ou que foram assassinados. Não tinham trabalho nem comida nem casa, as casas estavam todas destruídas. Um cenário terrível.”

Daqui surgiu um ciclo quase inquebrável de vinganças. “Nesta região acontece muito, porque as coisas passam de geração para geração”, explica Paulo Moura. Mais ainda em Mossul, com “as coisas acabadas de acontecer" e "ainda tudo muito vivo”.

“Falei com uma mulher que dizia que ia 'matar-lhes as crianças'. Estava mesmo focada nisto. 'Vou matar-lhes as crianças todas. Eu sei onde eles estão, onde eles moram, estão ali e eu vou matá-los'. Tinham assassinado os dois filhos dela. Já não se trata dos combates entre militares. São as pessoas, os civis, que querem matar-se uns aos outros."

Acresce a isto o que o jornalista diz ser uma “batalha religiosa” entre as duas grandes correntes do islamismo. "As pessoas consideram que os sunitas fizeram esta vingança contra os xiitas e, portanto, todos aqueles que são xiitas vão agora querer matar todos os que são sunitas, independentemente de serem ou não do Estado Islâmico.”

As mulheres nesta zona do mundo

Esta é uma realidade, ou duas que se misturam e que Paulo Moura quis incluir no seu livro, depois de ter comprovado que a mulher não tem qualquer papel nas sociedades com que contactou em Mossul. Percebeu-o através do que viveu – “Fui expulso de casa por causa disso, das mulheres” – e também das pessoas com quem falou – entre elas Nadia Murad, uma yazidi que foi escrava sexual do Estado Islâmico.

“Esta componente da mulher não é um problema do Estado Islâmico, é um problema daquela região e de praticamente todos os muçulmanos nesta zona. É uma coisa muito enraizada. Não há nenhum movimento para que isto mude, nenhum movimento das mulheres, não há nenhuma sensibilidade em relação a isto. Estamos na Idade Média completa”, conta o autor à Renascença.

Veja-se a conversa com Murad, a mulher remetida ao papel de escrava durante dois anos, às mãos do grupo extremista e de outros.

“Foi raptada quando eles entraram na aldeia dela e mataram os homens todos. Depois raptaram as mulheres jovens e distribuíram-nas pelos líderes do Estado Islâmico como escravas. Ela viveu dois anos assim, foi vendida, o dono vendeu-a a outro, que depois se fartou dela e a ofereceu a outro, e depois esteve numa zona da fronteira, num 'checkpoint', a servir como uma espécie de prostituta de serviço para quem passava, qualquer um podia usá-la. Isto foi a vida dela durante dois anos. E esteve no mercado de escravos em Mossul, foi vendida no mercado de escravos”.

Estes mercados eram montados ao ar livre. As mulheres “iam em camiões" e "a população via o que acontecia", recorda o jornalista com indignação. "Alguém se revoltou? Alguém a apoiou, alguém se indignou? Ninguém!”.

Isto faz crer a Paulo Moura que o tratamento das mulheres é algo enraizado, que faz parte da cultura. Passados todos estes anos, Murad está a viver em Berlim e a trabalhar na ONU "a divulgar o que aconteceu", mas ainda diz que nada mudou na forma como vê a relação entre homens e mulheres.

E a verdade, partilha o repórter, é que, mesmo durante a entrevista com esta mulher, ela quase não podia falar. “O próprio tradutor zangou-se comigo, não a deixava falar. E o tradutor é yazidi como ela. Falava por ela.”

Conclui-se que nem os yazidis – que foram vítimas de um genocídio e que não são muçulmanos, mas sim curdos – estão a fazer alguma coisa contra a maneira como as mulheres são tratadas. Na verdade, “continuam a fazer o mesmo” às suas.

Esta é uma das outras realidades que Paulo Moura quis juntar à análise do Estado Islâmico em "Uma Casa em Mossul".

“Vamos ser cada vez mais manipulados”

Fazer uma reportagem como esta é algo cada vez mais difícil, sobretudo porque não há dinheiro. Foi graças a uma bolsa que o repórter português conseguiu financiar a sua viagem, na demanda de tentar chegar o mais perto possível do Estado Islâmico e de um dos seus bastiões.

"A Nomad é uma agência de viagens que criou esta fundação chamada Manifesto que, por sua vez, tem esta Bolsa de Exploração Nomad", conta. "Geralmente apoiam projetos de viagens, mas podem ser reportagem. Eu propus-lhes este trabalho e eles apoiaram, senão nunca teria sido possível. É demasiado caro para que possa ser viável."

Trabalhar neste contexto é particularmente difícil para jornalistas independentes como Paulo Moura. “Numa zona qualquer de guerra, tudo é muito caro. Viajar até ao Iraque ou à Síria, numa situação normal, antes de haver a guerra, era muitíssimo barato e qualquer pessoa podia ir. Hoje não. Basta haver guerra e, de repente, um tradutor já custa 200 dólares por dia e um carro 300. Uma pessoa paga largas centenas de euros por dia só para poder estar lá a trabalhar”, explica.

“Qual é o jornalista independente, freelance, que pode fazer isso? Nenhum. E nenhum órgão de comunicação está disposto a investir esses recursos”, lamenta.

Além disso, “nas zonas do Estado Islâmico, pura e simplesmente não deixam entrar jornalistas", acrescenta. "Não está ninguém na Síria, naquelas zonas que estão a ser bombardeadas. São raríssimos os jornalistas que conseguem chegar lá e aqueles que lá estão geralmente são jornalistas ou que já estão muito enviesados ou que são próximos dos combatentes, não são jornalistas independentes.”

É por isso que a informação que chega a este lado do mundo é cada vez menos livre de constrangimentos. “Temos muita informação que nos chega de pessoas que não são jornalistas, pessoas locais que fazem filmes e vídeos e pequenas entrevistas e recolha de depoimentos, mas que nunca sabemos se não estão a ser manipuladas. Eu não consigo ter a certeza se aquilo aconteceu ou não.”

Assim, a tendência é, na opinião de Paulo Moura, que se saiba cada vez menos sobre o que está a passar-se nos locais de guerra, o que por sua vez faz com que sejamos todos “cada vez mais manipulados, porque os atores dos próprios conflitos é que divulgam a informação que lhes convém e há cada vez menos jornalistas independentes nos locais”.

“Uma Casa em Mossul” chegou às livrarias esta semana e vai ser lançado em Lisboa na próxima terça-feira, dia 15 de maio, às 18h30, na livraria Ler Devagar (Lx Factory). A apresentação estará a cargo de Bernardo Pires de Lima.

No Porto, o lançamento está marcado para o dia 18 de maio, domingo, pelas 21h30, na Fundação Manifesto (Matosinhos). O historiador Manuel Loff estará a cargo da apresentação da obra.

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  • oraaíestá!
    11 mai, 2018 pelo menos não sou cego e tenho opinião 16:09
    Bom, até dá gosto ver os comentário que por qui estão. Que tristeza. Que mentes tão pequenas que nem comentam nada. Só aparecem aqui como as hienas quando se trata de denegrir os funcionários públicos. Mas ainda se especificassem aquilo menos bem, ou mesmo as desigualdades, ainda se compreendia, mas o facto é que falam de uma classe de trabalhadores no geral... Cambada de nojentos! Mas tirando o aparte. Ninguém sabe ver onde está o problema? Afinal a culpa no geral e os podres destas raças não é só o estado islâmico, tem a ver com a cultura e religião. Com a maneira de pensar. Eles matam-se uns aos outros. Sunitas que matam xiiitas, xiiitas que querem depois se vingar e matar os sunitas, uma guerra sem fim à vista. Onde tratam as mulheres abaixo de cão, mulheres escravas, meninas que casam com velhos, submissão à burka e por ai... mas isto torna-se tudo normal porque faz parte da cultura e ninguém destes povos vê mal nenhum nisto, mas isto é um cancro para os países que têm de aceitar estes costumes, mas há muita gente tola, burra que ainda diz que as pessoas são racistas se não aceitarem estas práticas. Será isto digno de ser aceite e respeitado em países democráticos, burros de merda?!

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