Tempo
|
A+ / A-

"Acabar com a corrupção no Brasil seria uma ilusão"

24 abr, 2018 - 16:41 • José Pedro Frazão

O jornalista brasileiro Vladimir Netto esteve em Portugal para apresentar o seu livro sobre os primeiros anos da "Operação Lava Jato". Em entrevista à Renascença, garante que a investigação "mudou o Brasil" para sempre. "É um facto. O Brasil nunca mais será o mesmo."

A+ / A-

Vladimir Netto é jornalista e filho de conhecidos profissionais da comunicação social brasileira. O livro-reportagem que escreveu sobre os primeiros anos da "Operação Lava Jato" trouxe-o a Portugal para uma intensa ronda de entrevistas. À Renascença, diz acreditar que a investigação judicial vai fortalecer a democracia brasileira, assegura que a Justiça do seu país é mais que um juiz de Curitiba e elogia Lula pelo combate à desigualdade, sem contudo arriscar cenários para as eleições presidenciais de Outubro.

Gostava de começar pelo fim do livro, pelas conclusões que tira da investigação que faz. Escreve que "foi diagnosticado um mal que estava a levar o Estado brasileiro até à metástase, o que pode levar à refundação do sistema político brasileiro". Onde é que estão hoje os sinais dessa refundação?

Os primeiros sinais são discussões de questões como a prisão após uma condenação em segunda instância ou a do fim chamado "foro privilegiado", que no Brasil é alargado a todo o Parlamento, deputados, senadores, ministros de Estado, conselheiros de tribunais. Muitas autoridades acabam por ser investigadas pelo Supremo Tribunal Federal. Isso está gerando uma velocidade diferente. Casos de primeira instância, de quem não tem foro privilegiado, são mais rápidos do que outros que estão no Supremo Tribunal Federal. O uso da "delação premiada" e as mudanças de financiamento de campanha são também sinais de que alguma coisa está a acontecer. Não posso dizer ainda se essa transformação chegará ao seu final, qual será a sua extensão e profundidade. Mas o Brasil mudou, isso é um facto. Nunca mais será o mesmo.

Os sinais a que se refere são de refundação do sistema judicial.

Também. Essas questões acabam por afetar o sistema político. Mas há ainda o financiamento das campanhas, que a dado momento levou à proibição de financiamento por empresas. Ainda está a ser discutida a melhor forma de o fazer. Quando tinha acesso aos denunciantes e investigados em esquemas de corrupção e suborno, sempre os questionei sobre o que os move até chegar a este ponto. Muitos apontam as campanhas políticas como o principal fator.

O financiamento privado de campanhas políticas existe em muitos países, só por si pode não ser um problema.

Talvez o caminho seja o financiamento público. O primeiro movimento foi parar com o financiamento de empresas. Agora está a ser discutida a saída. Sem o financiamento de empresas, como será a campanha deste ano? Tudo são testes que acho que podem levar a um melhoramento da democracia. A minha esperança é que a Lava Jato melhore a qualidade da democracia brasileira. É a única opinião que dou no final do livro, como referiu. A Lava Jato deu-nos uma oportunidade de refletir sobre o futuro. O que queremos? Uma sociedade como estava ou uma outra coisa? E que outra coisa seria ? Essa discussão está em pleno andamento hoje na sociedade brasileira. Os partidos estão hoje em xeque. O que é que vai acontecer ? A Lava Jato está a investigar políticos de 14 partidos.

Por isso perguntei como se consegue a refundação se todos os partidos estão envolvidos no problema.

Lembra-se do que aconteceu na Itália? Depois da Operação Mãos Limpas os partidos mudaram. Não estou a dizer que isso vai acontecer no Brasil. Mas é uma discussão. Como podemos fazer para melhorar essa representação ? Como conseguimos ter políticos e campanhas que sigam a regra do jogo e que façam uma coisa honesta? Não tenho uma visão ingénua de que é possível acabar com a corrupção. Pode ser combatida, reduzida a níveis mínimos, mas acabar seria uma ilusão.

O que vemos, pelo menos a partir de Portugal, é uma enorme fratura e crispação na sociedade e na política brasileiras. Existem esses pontos de acordo?

Acho que sim. Se consegue chegar a discutir no Supremo Tribunal Federal a possibilidade de restringir um foro privilegiado, isso significa que há um consenso na sociedade brasileira. É natural que haja tanta controvérsia. Estão a tocar nos principais partidos brasileiros, em paixões nacionais. A prisão do Lula foi um movimento de paixões. Era natural que um líder tão popular, ao ser preso, gerasse uma controvérsia imensa. Isso faz parte do processo. Por outro lado, estamos a ver que as coisas estão a ser discutidas, estão a amadurecer. No Brasil temos casos de avanços em torno de consensos, mesmo em momentos difíceis. Cito três, de forma rápida. Em 1985, a sociedade brasileira chegou a um consenso. Era preciso acabar com o totalitarismo, como se passou convosco em 1974. Mais à frente, chegou-se à conclusão de que é preciso combater a inflação e isso foi feito com um esforço nacional. Houve um terceiro consenso, era preciso reduzir a desigualdade. Isso foi feito, inclusive no Governo do Lula. Ele atuou com políticas de redução da desigualdade, foi muito bem sucedido nisso. Mas agora chegámos ao quarto consenso. É preciso combater a corrupção. A maioria da população brasileira, de todas as esferas e matizes políticas, concorda num ponto: é preciso combater a corrupção. Seja do PT, PSDB, PMDB, mesmo acossados por denúncias, todos concordam que temos de combater a corrupção.

Como observador, acha que tudo o que tem rodeado Lula e outras grandes figuras do PT vai pôr em causa a memória desse terceiro consenso conseguido na sociedade brasileira? A fratura vai colocar em causa as conquistas desse tempo?

Acredito que não. Essas conquistas - a democracia, a estabilidade económica, a contínua luta contra a desigualdade - serão preservadas. Desses três pontos, temos que tomar mais cuidado com a desigualdade. A estrutura económica da sociedade brasileira favorece a desigualdade. É uma questão histórica no Brasil. É um dos problemas mais graves, profundos e difíceis de combater. É preciso fazer muito mais. Mas não vejo, por exemplo, que a democracia esteja ameaçada. Acho que a democracia está a fortalecer-se. Este processo vai ser regenerador.

A sua presença em Portugal coincide com a de Tarso Genro e de Guilherme Boulos, figuras da esquerda que estiveram por cá, até na tentativa de perceber o que se passa em Portugal ao nível de acordos do ponto de vista político. O que pode acontecer politicamente no Brasil, agora que a grande figura da esquerda está presa?

Essa deve ser a pergunta mais difícil que é possível fazer a um brasileiro. Não dá para saber. O quadro está muito confuso. Nem os candidatos estão definidos ainda. Estamos a seis meses da eleição. As sondagens da Datafolha são feitas num cenário com e sem Lula. A eleição vai ser o termómetro do que o brasileiro quer para o futuro. O que acho interessante apontar é que, pela primeira vez, a corrupção aparece como a principal preocupação do brasileiro. O que me leva a crer que a corrupção será um fator muito importante na formação da opinião do eleitor deste ano. Isso é bom. Será com certeza um dos temas mais fortes da campanha. A escolha do eleitor vai basear-se muito nisso, na imagem da corrupção, ligada um candidato ou a outro.

O problema é que o eleitor procura a "ficha limpa" do candidato e não encontra.

Pois é. Isso é que é o drama nacional. Por isso é que é muito difícil prever o que vai acontecer. Nada está claro.

Lula aparece mais nos capítulos finais deste livro. Os tempos da Justiça foram muito questionados do ponto de vista político. Houve ou não aceleração do processo para um calendário político?

Acho que não. Não vejo, em nenhum momento, na história da Lava Jato, uma aceleração do processo tendo em vista algum tipo de eleição. Passámos duas eleições na Lava Jato, 2014 e 2018, e também eleições locais em 2016. Nunca vi um aceleração ou um direcionamento político. Seria natural que o primeiro partido a ser investigado num caso desses fosse o que está no Governo. A Lava Jato descobriu um esquema de corrupção imenso instalado na maior empresa estatal brasileira. Como conto no livro, os primeiro investigados não foram do PT, mas do PP, o Partido Progressista, que é um partido de direita que, aliado ao PT, ocupava um cargo na Petrobrás. Os dois primeiros denunciantes da Lava Jato que abriram essa "Caixa de Pandora" estão ligados ao Partido Progressista.

Escreve que a Operação não foi obra de um homem só. Falamos de Sérgio Moro.

Ele é uma figura central desse processo. Ele realmente teve um papel importante, mas não é obra de um homem só. Seria injusto com as outras pessoas que se dedicaram tanto para fazer essa operação chegar onde chegou, como delegados, comissários, procuradores, denunciantes, advogados. Com o passar do tempo, a Lava Jato foi ampliando-se e surgiram outros atores, como o juiz Marcelo Bretas, importante para a prisão do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, do PMDB. Ou o juiz Edson Fachin, relator dos casos no Supremo Tribunal Federal, sem falar no juiz Teori Zavascki, que morreu num acidente trágico de avião. Tudo isso mostra que seria impossível apenas uma pessoa avançar com isso.

Está a dizer que, afinal, o aparelho judicial estava preparado para investigar uma corrupção a esta escala?

Isso é uma das coisas mais interessantes da Lava Jato. Se me perguntar qual é o fator do sucesso da Lava Jato eu diria que é uma sucessão de fatores. Um desses é o amadurecimento da Justiça brasileira. Depois da Constituição de 1988, a Constituição ficou mais forte, a Polícia Federal ficou mais independente com o Governo Lula. Esse processo foi acontecendo de forma paralela em várias instâncias. Antes da Lava Jato houve um aperfeiçoamento da legislação, a regulamentação de um instrumento que foi muito importante para a Lava Jato como a "delação premiada". São coisas que vão somando. Havia um juiz que se especializou no tema, que desde 2003 comandava uma vara especializada em crimes de lavagem de dinheiro e que já tinha liderado um grande caso, o Banestado, que condenou 97 pessoas. Era um "cara" treinado para isso. Havia delegados que estavam preparados e que conheciam Youssef. Procuradores capazes de ir à Suíça buscar informações sobre as contas do Paulo Roberto Costa. Tudo estava pronto. Quando surgiu a oportunidade da prisão de Alberto Yousseff, aí as coisas andaram mais rápido. É inegável que a Lava Jato é a investigação mais bem sucedida da história brasileira.

Há mais Sérgios Moros na Justiça brasileira para investigar casos destes?

Isso é uma grata surpresa. Começámos a perceber que outros juízes também estavam a tomar decisões interessantes nessa área, com uma postura mais firme, como Marcelo Bretas. Ou como o juiz Vallisney de Oliveira em Brasília que prendeu o Geddel Vieira Lima depois de terem encontrado 50 milhões de reais num apartamento em Salvador. São sinais de um fortalecimento das instituições brasileiras.

E a contaminação entre os juízes e o contexto político e ideológico? Em todas as sociedades existe indicação de juízes por origem política, mas uma separação está já garantida ou apenas a começar?

Está a levantar uma questão interessante. É possível discutir, melhorar e aperfeiçoar isso. Mas não vejo direcionamento político na Lava Jato. O Supremo Tribunal, que está a julgar estes casos e que julgou agora o recurso do Lula, tem muitos juízes indicados pelo PT. O tribunal não se comportou como um aliado do Governo. Essa polémica que está a ser levantada por partidos sob investigação é natural. É natural que haja reacções políticas intensas. Mas não vejo dessa maneira. Vejo uma investigação que, do ponto de vista técnico, está a atingir todo o processo politico brasileiro.

Se um cidadão aqui em Portugal lhe perguntasse em que ponto está a Lava Jato, o que lhe diria?

Diria que passou do meio mas que ainda está longe do fim.

Como sabe há uma série baseada no seu livro, "O Mecanismo", que tem sido criticada pela mistura entre ficção e realidade. Como autor do livro que lhe serviu de base, acha que a série pode ter ido longe demais?

Respeito totalmente a liberdade deles. Eles compraram os direitos do livro e desde o começo a proposta era fazer uma obra de ficção, virada para o entretenimento, em que os autores tinham liberdade de mudar pontos da história se achassem que isso seria importante para aumentar e prender o interesse do telespectador. Mas gosto de frisar que a série traz coisas que são bem próximas da realidade.

Palavras que são colocadas na boca de Lula que ele não proferiu...

Sim, isso gerou a maior polémica. Eles dizem que queriam retratar todo um sistema. E realmente a série aproxima-se da realidade, quando ela retrata um grande esquema de corrupção que atingiu uma grande empresa brasileira, financiado por empresas que tinham contratos com o Governo federal, que foi combatida por um grupo de investigadores. Nesse ponto que fala, os detalhes foram alterados, gerando a maior polémica.

Não tem problema para si? Você escreve um livro com base em factos reais...

Eu sabia que ia ser assim. Não esperava esta repercussão toda. Mas prefiro ver a série desse lado. A série guarda uma essência como a dificuldade da luta contra a corrupção, como é complexa, tensa, como sofrem os delegados. O personagem do agente Ruffo reflete muito isso.

Mas também reflete a tensão política e a forma como Brasília e o PT veem toda a operação?

É verdade. Mas também mostra outros partidos envolvidos. A polémica seria inevitável num caso tão delicado como este. Mas um ponto ficou muito claro, é ficção. Eu gostei da série. Dizem que geralmente o autor não gosta da série, mas eu gostei. Claro que há muita ficção. Mas o espírito da Lava Jato está lá dentro.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+