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Associação dos Médicos Católicos Portugueses

Pedro Afonso. “Temos que esclarecer as pessoas das consequências da aprovação de leis fraturantes"

20 abr, 2018 - 00:02 • Ângela Roque

Associação dos Médicos Católicos Portugueses vai continuar a tomar posição pública sobre matérias sensíveis e quer ser ouvida pelos políticos, para que não façam “más leis”. Objetivos assumidos pelo presidente da AMCP, na véspera do seu encontro nacional.

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“Ser médico hoje - equilíbrios, desafios e missões” é o tema genérico do encontro nacional da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP), que vai decorrer no sábado, no colégio de São Tomás, em Lisboa.

Com cada vez mais associados, sobretudo entre jovens médicos e estudantes de medicina, boa parte dos trabalhos vão centrar-se nas dificuldades de conciliação entre trabalho e família.

Em entrevista à Renascença, o presidente da AMCP diz que boa parte desses problemas resultam da “má gestão” que tem havido dos recursos humanos, que a fuga para os privados agravou.

Pedro Afonso reconhece que a faculdade nem sempre prepara os médicos para o contacto com os doentes e que essa devia ser uma aposta na formação de clínicos.

Sobre as leis fraturantes que têm sido aprovadas em Portugal, nos últimos anos, o presidente da AMCP diz que elas trazem novos desafios éticos e que os médicos católicos têm, por isso, uma responsabilidade acrescida em esclarecer as pessoas sobre o que está em causa.

A conciliação entre trabalho e família vai se um dos temas em debate neste Encontro Nacional. É uma forma de marcar a diferença com o discurso sindical, que incide habitualmente noutras questões?

Os sindicatos legitimamente preocupam-se com questões salariais, e outras, mas eu estou certo que há muitas pessoas que até prescinderiam de algum valor salarial para poderem ter mais tempo de lazer e para dedicar aos filhos. Porque o tempo é importante na qualidade de vida das pessoas. Quando há um excesso de carga horária, há um desgaste que se vai acumulando, que interfere também com a nossa saúde física e psíquica. O médico necessita de estar bem física e psiquicamente, até porque o cansaço, está mais do que demonstrado, aumenta a probabilidade de erro médico, deteriora a qualidade dos serviços prestados aos doentes e também interfere com a capacidade de empatia. Um médico cansado tem muito mais dificuldade em ouvir os pacientes. Por isso, esta é uma questão que afeta e preocupa os médicos, que têm frequentemente trabalho no serviço de urgências, por turnos, e há uma série de serviços que estão desfalcados, o que acaba por sobrecarregá-los. Como qualquer outro cidadão, o médico também tem direito a poder conciliar trabalho e família.

E hoje é mais difícil conciliar trabalho e família do que era há uns anos atrás?

Eu tenho alguma dificuldade em fazer essa medição, mas o que sabemos é que há locais, nomeadamente no interior, hospitais distritais, que são severamente afetados pela falta de recursos humanos. Houve também uma má gestão a nível da formação médica, durante muito tempo entraram poucos alunos de medicina, as coisas agora estão mais regularizadas, mas há aqui um hiato geracional, e muitos dos que continuam a servir no Serviço Nacional de Saúde, até que sejam repostos estes recursos, estão a ser bastante sacrificados em termos da sua vida pessoal e familiar.

O aparecimento de cada vez mais privados também veio baralhar as contas?

Sim, e em alguns serviços provocou uma migração maciça dos médicos do setor público para o setor privado, criando grandes dificuldades para aqueles que ficaram. É curioso que no Estudo que fizemos, e que vamos analisar neste encontro, os médicos avaliaram mais positivamente o setor privado do que o Serviço Nacional de Saúde, em termos de conciliação trabalho e família. 73% deram nota negativa ao Estado. Isto também pode ser um fator atrativo para que os médicos optem por trabalhar no setor privado.

O Estado devia ter um papel mais regulador?

Eu acho que o Estado tem que criar mecanismos mais atrativos para que as pessoas, como em qualquer empresa, se sintam valorizadas e realizadas na profissão. E perceber as necessidades, Neste caso concreto da conciliação trabalho-família, há pequenas medidas que podiam implementadas e que ajudariam muito. Por exemplo, durante muito tempo os grandes hospitais tinham creches para os funcionários. Era uma medida simples que podia ser aplicada, o custo é residual, seguramente melhoraria a satisfação e até diminuiria o absentismo. No Estudo que nós realizámos o que é mais pedido é a flexibilidade do horário de trabalho e a possibilidade dos médicos temporariamente poderem reduzir o horário para darem assistência a um filho que está doente, ou a um familiar, que pode ser um pai idoso, por exemplo. Há uma certa rigidez, do meu ponto de vista, no Estado que tem de ser melhorada.

No Encontro vão falar dos desafios que hoje se colocam aos médicos, ao nível da gestão, da formação e da comunicação, mas também das missões em que estão envolvidos dentro e fora do país. É uma dimensão importante, ainda mais para os católicos?

É muito importante. Os médicos católicos garantem há muitos anos a assistência aos peregrinos no Santuário de Fátima, por exemplo, é uma escala de absoluto voluntariado, que nós cumprimos com muito gosto e zelo, e gostaríamos de transmitir essa satisfação e essa alegria às gerações mais novas. Vamos ter alguns testemunhos de médicos que estiveram em missão noutros países, nomeadamente no apoio aos refugiados. Vivemos numa época de hiperindividualismo, em que os jovens muitas vezes saem das faculdades e entram de imediato no mercado de trabalho. O voluntariado está a ser muito esquecido e devia ser muito mais valorizado em termos curriculares.

A relação com o outro, com o doente, devia ser mais trabalhada ao nível da formação?

Devia valorizar-se mais, nomeadamente a empatia, a capacidade de comunicação com o doente. Estes aspetos têm que ser ensinados e mantidos, fugindo um bocadinho à tentação excessiva que está a haver na medicina atualmente, que se está a tornar cada vez mais tecnológica. Não temos nada contra isso, mas está-se a perder um bocadinho a dimensão humanista e a desvalorizar, ou pelo menos a dificultar um pouco a relação médico-doente, que é muito importante que seja mantida, respeitada e ensinada às gerações mais novas.

Quem se candidata a médico devia ser avaliado também em termos vocacionais, e não apenas pelas notas?

Nunca haverá consenso relativamente a isso. O que é importante acima de tudo é que nas faculdades haja bons professores, que se valorize muito o ensino, a capacidade de relação médico-doente, a empatia. Um médico empático, que estabelece uma boa relação com o seu doente, tem muito mais resultados terapêuticos do que um médico que não o é, isto está demonstrado cientificamente.

E ser empático também se aprende?

Também, e há estudos que o demonstram. É uma área a que se deve dedicar mais tempo a nível formativo. Depois há um conjunto de novas leis que têm vindo a ser aprovadas que de alguma forma colidem com a tradição hipocrática da medicina, o que também levanta novos desafios e discussões éticas.

Está-se a referir aos temas mais fraturantes, como a eutanásia, que levantam novas questões aos médicos no relacionamento com o doente?

Não só com o doente, mas com a prática médica. O código de ética dos médicos foi alterado por causa da provação da lei do aborto. Se se aprovar a eutanásia terá que ser novamente alterado, porque esta não é a tradição hipocrática nem a visão humanista da medicina.

Ultimamente a Associação tem tomado posição pública sobre vários temas ditos ‘fraturantes’. O contexto social e político em que nos encontramos exige que os médicos católicos e se façam ouvir com mais frequência?

Exige, e é justo que tenham maior intervenção pública. Porque nós temos uma palavra a dizer e podemos dar um contributo para o debate sobre estas matérias. É o que temos feito, nomeadamente na discussão em torno da eutanásia, e mais recentemente em relação à lei da mudança de género aos 16 anos no Registo Civil, sem necessidade de haver um relatório médico. Sentimos aqui uma responsabilidade acrescida por sermos católicos, mas há muitos médicos que não são católicos e que pensam como nós sobre estas matérias. Estou certo que, por exemplo, em relação à eutanásia a maior parte dos médicos é contra.

Temos esta missão e esta responsabilidade de sensibilizar os agentes políticos, os nossos colegas, todas as pessoas ligadas à saúde, e também os doentes, para os riscos da aprovação destas leis. Eu admito que haja boa intenção parte dos legisladores, mas temos que esclarecer as pessoas.

Porque é que o diploma da mudança de sexo vos levanta tantas dúvidas?

Em relação à disforia do género, eu acho que as pessoas não estão bem esclarecidas. Porque a disforia do género é uma doença, está assim classificada em todos os manuais de psiquiatria. É uma doença porque provoca mal-estar e sofrimento significativo, porque há uma dessincronia entre a identidade biológica, a parte genética da pessoa, e a sua identidade psicológica ou social, e isto causa um sofrimento enorme. Ao se aprovar uma lei que retira e dispensa a colaboração médica, isso é grave em termos de saúde pública. Estas situações não se resolvem no Registo Civil. Estas pessoas têm que ser acompanhadas clinicamente, o processo é moroso, não é automático. É importante ser dito que há muitas situações de disforia de género em crianças que remitem (diminuem). Há estudos que indicam que entre 80% e 95% das chamadas situações intersexo se resolvem com o tempo e com o acompanhamento devido. Ora esta lei proíbe os médicos, exceto em situações muito graves de saúde pública, de tratarem situações intersexo nas crianças. E situações como a hiperplasia supra-renal congénita ou a insensibilidade androgénica (patologias do desenvolvimento sexual) são situações médicas que têm que ser acompanhadas e tratadas. Isto é muito grave. Esta lei está a querer aqui impôr uma ideologia que vai contra a ciência.

O diploma poderia ser melhorado, se permitisse a intervenção médica?

Estes casos sempre foram tratados colegialmente, não é um médico que decide estas matérias, há uma comissão de ética, há um grupo de médicos que se reúne, obviamente que os pais são ouvidos- Esta situação não é feita de ânimo leve, é acompanhada. Não é admissível que num Estado de direito e numa sociedade moderna se possa publicar um decreto lei que impede a medicina de atuar em situações que são clínicas, que são médicas.

A Associação pediu ao Presidente da República que vete o diploma. Confiam que isso irá acontecer?

Confiamos e estamos certos que o presidente da república, se fôr bem informado, como nós pensamos que será, e nós também demos esse contributo, irá verificar que esta lei não pode ser aprovada, tem que ser vetada. É uma lei puramente ideológica.

Pretendem continuar a tomar posição pública sobre estes temas?

Sim. Queremos crescer também como associação, e estamos a fazer um esforço muito grande para dinamizar a associação no sentido de a renovar, e de captar as gerações mais jovens. É possível hoje um estudante de medicina inscrever-se na nossa associação e queremos que eles, logo no início da sua formação, possam também ajudar-nos nesta reflexão e nesta missão.

Já tiveram resultados desse esforço que estão a fazer?

Tem havido novas entradas, sobretudo de jovens, e no facebook tivemos um aumento exponencial nas últimas semanas, devido à nossa intervenção pública, o que nos dá ânimo. Já tivemos alguns encontros com estudantes, e agora neste encontro nacional vamos ter uma mesa para debater os desafios da formação em medicina, com a intervenção de vários alunos.

Esse papel interventivo que querem ter também passa por serem ouvidos mais vezes pelo poder político?

A nossa expectativa é sermos mais ouvidos, porque achamos que temos uma mensagem que pode ajudar a informar. Os políticos têm que ter informação, e nós achamos que temos representatividade para isso, e obviamente que a sociedade civil não se resume nem se esgota nos sindicatos, nem tão pouco dos partidos. O nosso objetivo é contribuir para a melhoria da nossa sociedade e também dar testemunho, de alguma forma, dos princípios e dos valores da nossa própria fé. Também há aqui uma componente de apostolado, de evangelização, que entendemos que também pode ser feita através da nossa profissão. Portanto, é este desejo, esta alegria e este ânimo que nos inspira a continuar o nosso trabalho.

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  • João Lopes
    20 abr, 2018 Viseu 19:26
    Excelente entrevista!
  • Augusto
    20 abr, 2018 Lisboa 13:21
    Temas fracturantes, são a fome, a miséria, o desemprego.

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