Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

45 anos do Partido Socialista

Como o “miúdo rebelde” foi vencido pela urgência de Soares

19 abr, 2018 - 07:00 • Catarina Santos

Faltava um ano e seis dias para a ditadura cair quando 27 oposicionistas se reuniram na Alemanha para fundar o Partido Socialista. O antigo jornalista Mário Mesquita regressa àquele momento “pré-histórico” em que não partilhou do otimismo obstinado de Mário Soares.

A+ / A-

Alemanha, 19 de abril de 1973. Nevava na estância termal de Bad Münstereifel, a 40 quilómetros de Bona. Vinte e sete membros da Ação Socialista Portuguesa (ASP) tinham chegado ali depois de várias viagens em ziguezagues, inventando escalas noutras cidades europeias, para esbater o rasto que a polícia política portuguesa poderia seguir. Aos exilados em países como a Alemanha, França, Itália, Bélgica, Suíça, Suécia ou Inglaterra juntavam-se os que vinham de Portugal.

Mário Mesquita, então com 23 anos, fazia parte deste último grupo. “Eu parti para a Alemanha sem ter a noção de que daquela reunião ia sair já a fundação do Partido Socialista”, conta à Renascença. Tinha 23 anos e integrava o núcleo de Lisboa da ASP, que “tinha decidido que ainda não era o momento oportuno” para dar esse passo. O mesmo núcleo representado por Maria Barroso, já então casada com Mário Soares, e que a fez votar contra a proposta do marido para a criação do partido.

“Esse era o mandato que me tinha sido atribuído – a mim e às sete pessoas que iam do interior do país”, recorda o fundador do PS, ex-deputado e antigo diretor do 'Diário de Notícias'. Soares havia de o descrever mais tarde [em entrevista a Maria João Avillez, em 1996] como o seu “grande antagonista” na reunião de Bad Münstereifel.

Do congresso naquele “local magnífico”, o antigo jornalista guarda memória de “tensões, que sempre resultam do debate político”, mas o contexto era sobretudo de “alegria e de satisfação”, sustenta. “Nós nunca tínhamos tido ocasião de uma reunião tão alargada, com quase três dezenas de pessoas, e também num contexto em que estávamos à vontade”. As reuniões da ASP em Portugal eram sempre feitas com cautelas.

Mário Mesquita agarra uma imagem amarelada que o mostra sentado ao lado de Mário Soares. Na fotografia é reconhecível também Elke Sabiel [na altura, ainda com o nome de solteira Elke Esters], funcionária da Fundação Friedrich Ebert (ligada ao SPD alemão, que providenciou o local para o congresso). A memória de Mesquita diz-lhe que terá sido tirada na véspera daquele 19 de abril.

“Claro que olho para esta foto com grande emoção, por estar aqui Mário Soares e porque eu também era amigo da Elke. E às vezes penso porque é que eu estou num lugar de tanto relevo…”. Atribui a circunstância à “grande habilidade nas relações pessoais e na análise política de Mário Soares, que chamou para si o miúdo rebelde, que tinha 23 anos e podia ser tentado a contestar certas posições.”

Os receios dos pessimistas

Soares sabia que o grupo de Lisboa tinha decidido contestar a ideia de formação de um partido. “Receava que eu pudesse ser uma voz incómoda. Ao sentar-me ao seu lado foi como que chamar-me a si. Mas, aos 23 anos, a rebeldia das pessoas acho que é um dado positivo”.

Se foi essa a intenção de Soares, não surtiu efeito e Mário Mesquita não se coibiu de argumentar contra a iniciativa colocada a votação. “O que pesou mais na minha decisão foi a ideia de que não ia ter credibilidade no próprio meio oposicionista a transformação da ASP em partido”, porque “isso pressupunha um trabalho faseado”, conta.

O grupo de Lisboa receava que a criação de um partido político a partir de uma estrutura ainda tão frágil fosse vista pela oposição democrática “como algo puramente nominal, uma mudança de título.” Consideravam que “era preciso um período de reorganização para a fundação do partido.”

Havia também quem receasse um aumento da repressão da polícia política com a formalização de um partido – à semelhança do que acontecia com o PCP. “Nós, Ação Socialista, éramos grupos conhecidos, não tínhamos uma regra de clandestinidade” nem as precauções que lhe são associadas. Tinham apenas “uma certa cautela”. O que fazia com que “uma pessoa que fosse presa e interrogada com os métodos da PIDE pudesse revelar os nomes dos militantes todos do país”, reconhece, apesar de sublinhar que não era a razão fundamental das suas reticências.

Mas o momento era aquele e, entre os 27 presentes, uma maioria clara de 20 votou favoravelmente a proposta encabeçada por Mário Soares. Tomada a decisão, “houve aplausos de toda a gente”, recorda. Mesmo os sete que tinham votado contra “frisaram que era uma questão de oportunidade e não de porem em causa a necessidade e a sequência lógica da Ação Socialista, que era transformar-se em partido.”

Abril ao virar da esquina

Hoje “tudo isto parece pré-história” e Mário Mesquita reconhece que o tempo deu razão a Mário Soares, que “tinha naquele momento duas vantagens”: a noção de que estava iminente a queda do regime e “o otimismo que sempre o acompanhou”.

O que se fez naquele derradeiro ano de ditadura, entre abril de 1973 e abril de 1974, foi fundamental, considera Mesquita. “Foi importante que, quando chegou o 25 de Abril, já houvesse um Partido Socialista como tal, definido, com o seu programa e estrutura.”

Chegada a democracia, o jovem jornalista foi ainda deputado à Assembleia Constituinte (1975‐1976) e à Assembleia da República (1976‐1978), mas haveria de se incompatibilizar com o partido nessa reta final dos anos de 1970. As razões estavam “muito ligadas à forma como exerci a direção do 'Diário de Notícias'”, recorda.

“Mário Soares era primeiro-ministro dos dois primeiros governos constitucionais, mas que eram instáveis e que tiveram duração curta, e, portanto, ele não apreciava subtilezas da autonomia jornalística – para formular isto de um modo bastante suave… As coisas correram mal nesse plano e eu demiti-me do partido.”

Em 1993, Mário Mesquita havia de entrevistar o então Presidente da República a propósito dos 20 anos da fundação do PS. No livro de crónicas “O Estranho Dever do Ceticismo” recorda como Mário Soares o recebeu, questionando com ironia: “Vem para continuar a discutir comigo a oportunidade de fundação do Partido Socialista?”. Mesquita conta que respondeu “com idêntica ironia e boa disposição, recorrendo a uma frase que o próprio Soares muitas vezes utiliza em conversa: «Não, esta é a homenagem que o vício presta à virtude.»”
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+