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Terrorismo ou multiculturalidade: Afinal o que leva a Turquia a atacar Afrin?

22 mar, 2018 - 15:00 • Filipe d'Avillez

Ancara diz que está em curso uma guerra ao terrorismo. As Forças Democráticas da Síria dizem que a Turquia tem medo do modelo de governo multicultural que está a ser aplicado na região que controlam.

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Centenas de mortes e mais de 300 mil civis em fuga, tudo em nome do combate ao terrorismo. Mas será essa a verdadeira razão por detrás do ataque da Turquia à cidade de Afrin, no nordeste da Síria?

Ancara alega que a YPG, a milícia curda que fornece a maioria dos combatentes às Forças Democráticas da Síria (FDS), é uma extensão do PKK, o grupo militante que leva a cabo uma insurreição contra o Estado turco há décadas.

É com essa linguagem que o Governo turco tem revestido toda a sua retórica sobre este conflito. Até a operação foi apelidada de “ramo de oliveira”, como se o propósito fosse pacífico e não bélico.

Mas é uma narrativa que as FDS rejeitam linearmente. Em conversa com a Renascença, o porta-voz deste grupo armado, Kino Gabriel, recorda que, nos últimos anos, as Forças Democráticas têm sido aliadas da coligação internacional que derrotou o Estado Islâmico em toda a linha. “Não é aceitável que a Turquia nos chame terroristas, quando temos provas – e todo o mundo tem provas – de que a Turquia é que tem apoiado grupos terroristas, em especial o Estado Islâmico, a Frente al-Nusra e muitos outros”, diz.

Kino Gabriel dá exemplos: “A Turquia teve o Estado Islâmico junto à fronteira em vários locais, nalguns casos, durante três anos, e nunca agiu militarmente contra eles. Kobani” [cidade curda que esteve cercada durante meses pelo Estado Islâmico em 2015, numa batalha que acabaria se tornar um símbolo da resistência contra os terroristas] fica mesmo na fronteira e a Turquia nada fez para evitar os ataques. Mais: julgo que até estavam a apoiar o Estado Islâmico na sua tentativa de controlar Kobani.”

“A Turquia teve uma fronteira enorme com a Frente al-Nusra e com o Estado Islâmico, desde 2014, em locais diferentes, e mantiveram sempre os postos fronteiriços abertos com estas organizações, permitindo a entrada de pessoas e de mantimentos. Mas quando nós controlámos esses postos, foram imediatamente encerrados. Mas nós não atacámos ou ameaçámos a Turquia uma única vez, pelo contrário foram eles que nos atacaram e ameaçaram”, continua Kino Gabriel.

Medo da multiculturalidade democrática

A verdadeira razão para estes ataques, consideram as FDS, é o medo que a Turquia tem da diversidade cultural e étnica no seu próprio país.

“Não quero dizer que este é um problema entre a Turquia e os curdos, ou entre curdos e turcos. É muito mais que isso”, diz Kino Gabriel, que não é curdo, mas pertence à minoria cristã, de etnia siríaca, com uma presença assinalável no nordeste da Síria.

“Trata-se de uma tentativa por parte da Turquia de travar o programa democrático que temos em curso aqui no norte da Síria. É um programa baseado nas diferentes etnias e culturas das pessoas que vivem no norte da Síria, a sua aceitação uns dos outros e o trabalho por um futuro comum. A Turquia não aceita isto, porque ao mesmo tempo eles têm uma grande diversidade étnica, mas tentam identificá-los a todos como turcos. Tal como outros países da região, tenta impor uma cultura e uma identidade às diferentes nacionalidades que vivem no país”, acusa Kino Gabriel.

As FDS orgulham-se de contar nas suas fileiras com milícias cristãs e árabes, para além das YPG curdas, que de facto compõem a maioria. No início da Guerra Civil da Síria, há cerca de sete anos, o Exército Sírio recuou da área, deixando-a à mercê das populações locais, que acabaram por montar uma região de facto autónoma. No papel, esta é inimiga de Damasco, que não aceita a ideia de um país federal, como propõem os curdos, árabes e cristãos do Nordeste, mas na prática Damasco e as FDS colaboraram frequentemente no combate contra o Estado Islâmico e têm respeitado um pacto de não-agressão informal. Damasco até enviou alguns reforços, simbólicos, para ajudar a defender Afrin.

Mas segundo Kino Gabriel o ataque turco pode estar a contar com o conluio do regime, sobretudo dos seus principais aliados, russos e iranianos. “Posso dizer sem dúvida que houve um acordo entre a Rússia, Irão e Turquia sobre Afrin e Ghouta”, diz, referindo o enclave rebelde nos arredores de Damasco que tem sido fortemente atacado pelo regime, com o apoio aéreo russo. “Segundo este acordo, Ghouta seria entregue pela Turquia, que apoia alguns dos grupos rebeldes que lá estão, ao regime e os rebeldes seriam transferidos para Idlib, que a Turquia controla. Em troca, a Rússia e o regime abririam espaço para a Turquia atacar Afrin, e não diriam nada”.

O conflito entre a Turquia e as SDF é mais um fator que complica uma guerra civil que dura há mais de sete anos.

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