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Abel Mateus. “Não é dando dinheiro a conta-gotas aos ministérios que se resolvem os problemas"

15 mar, 2018 - 00:02 • Sandra Afonso (Renascença) e Vítor Costa (Público)

“Temos de responsabilizar os ministérios, os ministros, para que giram de uma forma mais eficiente os recursos que têm”, defende o economista Abel Mateus.

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Abel Mateus admite nova ajuda dos contribuintes à banca
Abel Mateus admite nova ajuda dos contribuintes à banca

Abel Mateus defende uma mudança radical na forma de gerir o dinheiro público em Portugal, responsabilizando os ministérios e os ministros para que giram de uma forma mais eficiente os recursos que têm. O economista critica os cortes cegos feitos na despesa e a política de cativações. E considera que, face ao nível de endividamento que temos, já devíamos estar com um excedente orçamental para fazer face aos choques externos que inevitavelmente teremos de enfrentar.

No ano passado Portugal registou o melhor crescimento em 17 anos, com o PIB a crescer 2,7%; esse crescimento foi conseguido sem agravar as contas externas; e o défice orçamental diminuiu. Estamos no melhor dos mundos ou a viver uma ilusão que não é sustentável?

Os números em relação ao crescimento no ano passado são claros e incontestáveis e este ano iremos registar uma taxa de crescimento claramente superior a 2%. Estamos com um bom ritmo. Mas temos de o enquadrar em termos internacionais. A Europa está a viver um bom momento, o mundo está a viver um bom momento e isso arrasta a economia portuguesa. Mas em termos comparativos não estamos melhores do que os outros – por exemplo, em relação aos países da crise [Espanha, Grécia e Irlanda], somos o terceiro, abaixo da Irlanda e da Espanha e só no final de 2018 é que devemos recuperar o nível de produção que tínhamos antes da crise, enquanto a Irlanda já está 25% acima do valor que tinha em 2009.

É só a conjuntura externa a ajudar?

O número um de toda esta expansão tem sido o boom turístico. Os últimos números do Banco de Portugal mostram que as receitas turísticas terão crescido cerca de 18% no ano passado e estavam a crescer 10%, o que já era um número extraordinário. E o turismo já pesa cerca de 10% na economia portuguesa. Portanto, de um crescimento de 18% tira-se logo dois pontos percentuais para o crescimento do PIB, o que é uma fatia dominante do crescimento de 2017. E está ainda a induzir, por exemplo, a construção de habitação. Agora, pode perguntar-se porque é que se deu esse boom.

Porquê?

Por um lado, devido à recuperação na Europa, por outro, devido aos conflitos no Norte de África e no Médio Oriente, o que levou a uma reorientação das correntes turísticas para o Sul da Europa.

Mas é negativo ter o crescimento muito assente no turismo?

A economia portuguesa já é há muitos anos uma economia assente nos serviços. Não me parece que seja mau ou bom, são as nossas características naturais que determinam esta especialização. Evidentemente que a indústria ou a agricultura são sectores importantes, mas o que temos de ver é como melhorar o valor acrescentado, por exemplo, no turismo, porque só aí, tal como noutros sectores, poderemos crescer na cadeia de valor. Não devemos dizer que é errado a especialização, mas devemos ver como melhorar a produtividade e o valor acrescentado nestes sectores.

E como é que explica que, em termos relativos, o nosso crescimento saia tão mal da comparação com o dos países que estiverem sob ajustamento?

Em parte por causa das reformas estruturais e das políticas internas de cada um dos países. A Irlanda, por exemplo, é um país de baixos impostos e é uma economia que conseguiu construir um capital humano e uma base de especialização da mão-de-obra extremamente apelativa em termos internacionais. São coisas que nós ainda não conseguimos fazer.

E não chegamos a esse patamar…

Por um lado, por causa do peso da despesa pública que leva a que continuemos com níveis de impostos relativamente elevados. Por outro, por causa de a nossa mão-de-obra ainda não ter a especialização e a capacidade para ter o tal valor acrescentado de que falámos há pouco.

Mas estamos a exportar mão-de-obra especializada...

Há dia lembrava-me de um exemplo interessante. Portugal, no futebol, ganhou o Europeu, mas as equipas portuguesas não conseguem chegar aos quartos-de-final [nas competições europeias]. É uma contradição. Portugal tem a nível global um talento enorme, mas infelizmente muito desse talento está fora do país, o que significa que temos de atrair e de ser capazes de atrair e de sustentar o talento em Portugal. Isso era uma política importante a seguir em todos os sectores da nossa política interna.

Não se aproveitou o período de ajustamento para fazer as reformas estruturais? Foi uma oportunidade perdida e apenas aplicámos medidas restritivas?

Tínhamos de cortar a despesa pública. Era indubitável. Agora, tanto no chamado “período da troika, com cortes transversais, como atualmente, com as cativações, adotaram-se medidas cegas. E se seriam necessárias no curto prazo, porque não havia outra maneira de resolver o problema, passados uns anos verifica-se que a qualidade dos serviços começa a deteriorar-se. O que é necessário é uma alteração radical na forma como gerir a causa pública, os serviços públicos. É preciso reorganizar a forma como se gere o Estado, é preciso que os ministros sectoriais tenham mais responsabilidade e sejam responsabilizados pela gestão do seu dinheiro. Não é dando a conta-gotas o dinheiro a cada um dos ministérios que se resolvem os problemas. Aliás, estão à vista, cada vez mais, as dificuldades que é gerir um país com este tipo de regras. É necessário que cada uma das políticas públicas seja feita com a preocupação da eficiência e da qualidade dos serviços.

Essas medidas, esses cortes cegos e transversais, eram justificadas no período da troika, mas hoje em dia já não são face à situação das contas públicas?

Exatamente. Temos de ultrapassar rapidamente esse tipo de problemas, esse tipo de técnica de gestão do Orçamento e do Estado. Temos de responsabilizar os ministérios, os ministros, para que eles giram de uma forma mais eficiente os recursos que têm. Se formos ver, não é uma questão de recursos globais, porque estamos a gastar na Educação, na Saúde, qualquer que seja o sector, valores que são iguais à média europeia ou muitas vezes até superiores. O problema está na forma de como utilizamos os recursos.

Gastamos mal o dinheiro disponível…

Na Educação, por exemplo, formamos muito mais alunos, mas serão aqueles de que a economia e a sociedade necessita? Há dias um empresário do Norte dizia que não tinha técnicos para poder empregar na sua fábrica. Isso significa que há falta de técnicos e sobretudo a nível intermédio. É errado, por exemplo, que se estejam a cortar os cursos curtos de formação profissional a nível de secundário e superior. Poderá haver lógicas de dizer que toda a gente tem de ter pelo menos 12 anos de formação de base, mas o problema está em que é necessário entrosar a educação com as empresas. É necessário criar cursos que estejam próximos das necessidades das empresas.

Há muito que se ouve esse discurso.

É um lugar-comum, já muitos o disseram, mas o problema é que não foi feito. Fiz um estudo para o Ministério da Educação nos anos 70, em que identificava exatamente o problema do ensino vocacional e deste tipo de qualificações como crucial, mas ainda hoje estamos a discutir o mesmo. É impressionante como os sucessivos governos, todos, têm o mesmo diagnóstico, mas depois falhamos na aplicação prática.

Estamos preparados para enfrentar um choque económico externo?

Estamos a viver numa boa conjuntura, mas daqui a três, quatro anos, tendo em conta os ciclos económicos, o que pode acontecer é apanharmos com um choque externo. Se olharmos para os Estados Unidos da América (EUA), já vamos com mais de 100 trimestres seguidos de expansão. É o quarto ciclo de expansão mais longo desde que há registos. E o que os economistas sabem é que os ciclos de expansão não são eternos. Há vários bancos de investimento que dizem que a partir de 2019 há 60% de probabilidade de haver uma recessão nos EUA. A Europa está com um ciclo um pouco mais atrasado, mas o que temos de pensar é que daqui a três ou quatro anos a conjuntura internacional vai deteriorar-se e temos de nos preparar. Isso é o que me está a preocupar muito no atual ciclo. E numa economia extremamente endividada com a nossa já devíamos ter as contas públicas com um excedente para criar o espaço possível para depois podermos entrar em défice razoável no período recessivo.

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