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Congo

Noviças baleadas, acólitos e padres detidos. A Igreja resiste a Kabila

12 mar, 2018 - 17:01 • Filipe d'Avillez

Na ausência de uma oposição política credível, é a Igreja que assume as despesas de contestar a sede pelo poder de Joseph Kabila. Um europeu que vive no país há décadas descreve um ambiente explosivo em Kinshasa.

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A 25 de fevereiro, milhões de cristãos foram à missa ou aos cultos protestantes nas diversas igrejas de Kinshasa e das principais cidades do Congo. Mas aquele não era um domingo qualquer. A seguir às celebrações, os fiéis e seus padres e pastores iam para a rua para protestar contra o facto de Joseph Kabila continuar no poder.

A manifestação, como outra que tinha ocorrido em dezembro, tinha sido convocada pelo Comité de Coordenação de Leigos (CCL), com total apoio do cardeal Monsengwo, arcebispo de Kinshasa e de toda a conferência episcopal congolesa.

Mas tal como já tinha acontecido em janeiro e em dezembro, as autoridades tinham outras ideias. Quando as celebrações acabaram as principais igrejas estavam já cercadas por militares ou polícias. Alguns fiéis insistiram em marchar. Houve tiros de bala de borracha e de munições verdadeiras, gás lacrimogéneo lançado para dentro dos templos. Padres e acólitos foram detidos, pelo menos uma dezena de pessoas já morreu no conjunto dos protestos, registaram-se dezenas de feridos e centenas de detidos.

Ditadura, estado falhado, repressão, são palavras infelizmente comuns nesta região de África. A diferença aqui é o facto de a Igreja estar a liderar a oposição, em parte pela ausência de figuras políticas credíveis que o possam fazer.

“A Igreja é de facto a única autoridade reconhecida e respeitada” no país, diz C. um europeu que se encontra em Kinshasa há mais de 30 anos e tem bons contactos na igreja local, mas prefere não dar o nome verdadeiro, pois naquele país “nunca se sabe o que pode acontecer a quem critica o regime”.

É precisamente por a Igreja ser tão respeitada que o regime teme e reprime estas manifestações, considera. “Por isso é que temos estes ataques tão brutais e infundados. Todas as manifestações são pacíficas, os ataques são feitos pelos militares a pessoas completamente indefesas e desarmadas, e nas últimas marchas as balas eram verdadeiras, não de borracha. A Igreja tem um papel muito importante, é uma autoridade credível, a única, a oposição mete pena, é pura fantochada.”

Kabila e a sede do poder

Os protestos são dirigidos a Joseph Kabila. O Presidente assumiu o poder em 2001, dez dias depois do assassinato do seu pai, Laurent. Em 2006 foi eleito Presidente e reeleito para um segundo mandato em 2011. Esse segundo mandato deveria terminar em 2016, mas tal nunca aconteceu e as autoridades já disseram que não haverá eleições antes de 2019. Temendo que, tal como os Chefes de Estado dos países vizinhos, Kabila pretenda eternizar-se no poder, a Igreja decidiu agir.

O Congo é um país de maioria católica, e há católicos em posições influentes tanto no partido do Governo como nas Forças Armadas que o sustentam. Até ao momento, diz C., estes não se têm deixado influenciar pela posição dos bispos e da CCL. “Alguns protestam, em privado, contra os ataques aos padres, mas para já não passa disso”, diz, em relação aos políticos. Quanto aos militares, “até agora apoiam o Governo, mas também é certo que há muitos mercenários. Para certas ações e em certas zonas são mais mercenários que militares ou polícias congoleses. Em algumas situações, e de forma esporádica, a polícia ajudou os manifestantes”.

Mas num país onde o Governo se “baseia na corrupção”, segundo C., não existe o risco de Kabila agir contra os próprios bispos? “Não me admirava que se atreva pois ultimamente as suas ações mostram que ultrapassa facilmente limites normais”.

Mas enquanto os bispos até agora não foram molestados, os leigos que se atrevem a protestar não têm tido a mesma sorte e já todos conhecem casos de quem deu a vida por esta causa. “Um irmão de uma amiga foi morto apesar e não ter participado na última marcha”, diz C., “mas era do partido e não estava de acordo, foi espancado até à morte. Também numa das últimas marchas mataram uma jovem noviça que não participou, mas estava no recinto da paróquia. Não foi uma bala perdida, era filha de um chefe da polícia”, explica ainda.

Rumo à mudança, muito devagarinho

No Congo há mais de três décadas, C. diz que já viveu tempos muito difíceis, “mas a situação é grave, já dura há muito tempo e a degradação é grande; a miséria aumentou, a corrupção é moeda corrente e institucionalizada; o poder de compra está muito diminuído, os funcionários públicos têm salários miseráveis e recebem com grandes atrasos”.

Como em tantos locais em África, o problema não é falta de dinheiro, “pelo contrário, há muito, mas só nas mãos de alguns. Há demasiada riqueza e são muitos os que procuram o proveito pessoal, por isso não têm interesse em que as coisas mudem”.

Toda esta realidade contribui para um ambiente explosivo. “Há uma grande tensão e nota-se a degradação mesmo entre os cidadãos comuns, uma certa insegurança está já instalada, à qual nos habituamos”, diz ainda este europeu.

Mas apesar do cenário complicado traçado, ainda existe alguma esperança de que possa surgir uma figura credível que assuma este papel e permita à Igreja retirar-se de cena. “Para já não conheço ninguém, mas a situação está a dar a volta. Há muitos jovens de valor que estão a surgir. Há muita corrupção para apodrecer os jovens, muito dinheiro em jogo com esse fim, mas há jovens que começam a sobressair.”

“Alguns foram mortos”, lamenta, “mas há esperança, pode parecer lento, mas sairemos desta situação”.

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