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​Genro de Trump despromovido pelo chefe de gabinete por causa dos negócios

28 fev, 2018 - 09:59 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Jared Kushner deixou de ter acesso a informação ultra secreta, o que pode comprometer-lhe o futuro na Casa Branca. O seu império imobiliário está na origem da decisão.

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Há um pequeno grupo de responsáveis da Administração Trump que tem tentado manter alguma “normalidade” no funcionamento governamental. Gente sensata que sabe o que é um estado de direito, tem a noção do que é serviço público, responsabilidade cívica, decência e respeito pelos compromissos internos e externos do país.

Não são muitos, mas têm bastado para manter alguns equilíbrios e bom senso no meio da insanidade, da incompetência e da ignorância que carateriza esta administração.

Talvez não por acaso, a maioria deles são militares, que Trump foi aconselhado a contratar e que o impressionaram ao primeiro contacto. Os populistas, de um modo geral, gostam de homens duros e os militares projetam uma imagem de dureza que Trump, nos limites do seu intelecto, identificou com a sua ansiedade de cortar a direito sem olhar a meios.

Esqueceu-se que os militares têm uma sólida formação ética e legal e são talvez o setor social que mais cumpre a lei e atua segundo as regras. Independentemente do posicionamento ideológico ou simpatia por um presidente, qualquer militar que integre uma administração tem uma noção clara dos limites do poder num estado de direito, bem como dos consensos consolidados na sociedade americana e das responsabilidades dos Estados Unidos no mundo.

Na administração Trump, há neste momento três militares em posições-chave que, em conjunto com mais um ou dois civis, são os responsáveis pela manutenção do "status quo" interno e externo e são a garantia de que a ordem internacional não descarrila ao primeiro impulso (ou twitt) do presidente.

São eles o secretário da Defesa, James Mattis, o conselheiro de segurança nacional, H. R. McMaster, e o chefe de gabinete, John Kelly, todos generais. A estes acrescentem-se dois civis: o secretário de Estado, Rex Tillerson, e o ministro da Justiça (ou procurador-geral) Jeff Sessions.

Quase todos eles já foram desautorizados publicamente por Donald Trump, mas nenhum deles se demitiu. O mais fustigado até agora tem sido o responsável pela Justiça, a quem várias vezes Trump acusou de não o defender e de prosseguir com a investigação à interferência russa na campanha eleitoral, que considera uma “caça às bruxas”. Há vários twitts de Trump a perguntar por que é que Sessions não investiga Hillary Clinton ou Obama em vez de investigar a pista russa.

Sessions foi um dos mais fiéis ativistas de Trump na campanha eleitoral e foi o primeiro senador a declarar-lhe apoio. Mas quando decidiu afastar-se das investigações à Rússia por ter omitido no Senado alguns contactos que tivera com responsáveis do Kremlin, passou a ser considerado por Trump um “fraco” que deixou avançar o inquérito em vez de defender o presidente.

É esta a noção que Trump tem do estado de direito e da separação de poderes — o ministro da Justiça existe para defender o presidente de quaisquer suspeitas que possam surgir contra ele. Mas Sessions não se demitiu apesar das desautorizações públicas.

O outro civil também desautorizado publicamente, embora bastante menos, foi o secretário de Estado, Rex Tillerson. Há poucos meses, no auge da crise com os testes de mísseis da Coreia do Norte, e quando a retórica de ambos os lados se agudizava, Tillerson disse que a prioridade absoluta era a diplomacia e que os canais com Pyongyang se mantinham abertos, sugerindo mesmo que havia contactos e diálogo bilateral longe dos olhares públicos.

Nesse mesmo dia, Trump escreveu um twitt a “aconselhar” Tillerson a não perder mais tempo com os norte-coreanos porque eles só conheciam a linguagem da força e não a da diplomacia. Mas Tilllerson não se demitiu apesar da desautorização pública.

Há pouco mais de uma semana, o conselheiro nacional de segurança, McMaster, disse na Conferência de Munique sobre Segurança Global que a interferência russa na campanha eleitoral americana era “incontestável”.

Nesse mesmo dia, Trump escreveu um twitt a acusar McMaster de se ter “esquecido de dizer que os resultados eleitorais de 2016 não foram afetados ou alterados pelos russos e que o único conluio que houve foi entre a Rússia e a desonesta Hillary”. McMaster não se demitiu apesar da desautorização pública.

Não há registo, por ora, de desautorizações públicas ao secretário da Defesa, James Mattis, ou ao chefe de gabinete, John Kelly, mas estes dois militares têm primado pelo laconismo. Kelly, que tem a posição mais influente de todos porque, enquanto chefe de gabinete do presidente, é ele que manda na Casa Branca, esteve sob fogo há cerca de duas semanas.

Em causa acusações de violência doméstica a um dos seus assessores mais próximos feitas por duas das suas ex-mulheres. O visado acabou por ser afastado da Casa Branca, mas ficou a suspeita de que Kelly conheceria o passado do assessor, mas terá transigido com ele.

A despromoção

O caso alertou para a necessidade de rever os processos de escrutínio de quem trabalha na Casa Branca e redefinir os níveis de acesso de cada um à informação confidencial (clearance). E foi aqui que John Kelly foi posto à prova, porque um dos visados neste processo de revisão era o genro do presidente.

Desde que começou a trabalhar como conselheiro presidencial, Jared Kushner dispunha do nível mais alto de acesso à informação (ultra secreta), mas esta autorização tinha-lhe sido atribuída interinamente, até estar concluído o processo de escrutínio, geralmente feito em conjunto pelo FBI e pela Casa Branca.

Empenhado em acabar com autorizações provisórias, Kelly avançou com o processo de revisão, o que levantou expectativa nos meios políticos de Washington quanto ao futuro de Kushner. Na passada sexta-feira, Trump foi interrogado pelos jornalistas sobre o assunto e remeteu a decisão para Kelly por entre elogios desmesurados ao genro.

O chefe de gabinete não se fez rogado e nesta terça-feira decidiu que Kushner passava a ter acesso apenas a informação secreta e não ultra secreta. Uma clara despromoção do conselheiro preferido de Trump, que lhe atribuiu vários dossiers complexos. A nível externo, o conflito israelo-palestiniano, as relações com a Arábia Saudita, e o comércio com o Canadá e a China. A nível interno, a inovação tecnológica e a reforma das prisões.

Se nas questões internas, a despromoção poderá não ter efeitos na ação de Kushner, já a nível externo o acesso limitado a informação será uma desvantagem significativa, segundo os especialistas. Aaron David Miller, um perito em questões do Médio Oriente que trabalhou no Departamento de Estado, disse ao New York Times que “ele agora não sabe o que ignora e não tem forma de descobrir. Isso é uma real deficiência, quando são os serviços secretos que controlam muita informação”. Kushner deixará de ter acesso ao briefing diário que os serviços secretos fazem ao presidente, por exemplo.

Geralmente, em negociações internacionais dispõe de vantagem quem tem mais informação sobre os interlocutores, sabe o que eles pensam e sabe até onde podem ir. Um trunfo poderoso para os negociadores americanos que dispõem, em regra, da melhor informação.

Os negócios imobiliários

A despromoção põe, portanto, Jared Kushner numa posição vulnerável, podendo estar em risco a sua condição de conselheiro principal do presidente. E põe-no naturalmente em rota de colisão com John Kelly, com quem já não teria boas relações. Mas, mais do que isso, surge como um desafio ao próprio Trump, para quem nenhum critério se sobrepõe ao da lealdade familiar.

Ao decidir limitar o acesso de Kushner à informação, John Kelly terá seguido as recomendações dos serviços secretos, norteada pela preocupação com os negócios internacionais do império imobiliário de Kushner. Oligarcas e governos estrangeiros estariam a tentar aproximar-se de Kushner para terem influência na Casa Branca.

Segundo o Washington Post, foram interceptadas conversas de responsáveis governamentais de, pelo menos, quatro países — China, Emiratos Árabes Unidos, Israel e México — apontando para negócios com as empresas de Kushner como forma de ganhar influência junto do próprio. Os Emiratos Árabes Unidos seriam os mais empenhados nesta estratégia.

Os negócios de Kushner foram motivo de preocupação das entidades fiscalizadoras desde que ele entrou na Casa Branca. Por mais do que uma vez lhe foram pedidas informações sobre negócios e contactos internacionais e por mais do que uma vez Kushner teve de adicionar dados que tinha omitido inicialmente.

Particularmente sensíveis são os negócios na região do Médio Oriente, cujo dossier Trump lhe atribuiu na Casa Branca. Além de ser judeu ortodoxo — Ivanka Trump teve de se converter ao judaísmo para casar com ele —, Kushner tem tido investimentos de muitos milhões de dólares nas suas empresas imobiliárias provenientes de magnatas israelitas.

John Kelly terá, por isso, colocado o interesse público acima da potencial promiscuidade entre interesses privados e Estado. Resta saber se será esse o entendimento de Donald Trump, que desde que se candidatou a presidente ainda não revelou a declaração de impostos e cujo império empresarial continua mergulhado em razoável obscuridade no que respeita ao seu afastamento total e ao aproveitamento do cargo presidencial para maximizar lucros.

Nos últimos tempos, os rumores sobre a eventual substituição de John Kelly têm proliferado em Washington. Trump estaria, sob a influência de Kushner, a preparar-se para o despedir. Mas até à madrugada de quarta-feira, não houve qualquer reação presidencial.

Será que o vai desautorizar num twitt como fez com outros? E nesse caso será que Kelly se demite? Ou fará que não entende como os seus colegas sensatos, em nome da manutenção de alguma normalidade nesta administração? Os próximos dias (ou horas) clarificarão certamente a situação.

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