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Morreu Germana Tânger, a voz feminina de Álvaro de Campos

23 jan, 2018 - 12:12

Tinha 98 anos e ficou conhecida por declamar de cor o heterónimo de Fernando Pessoa, sobretudo a “Ode Marítima”. Em 2004, lançou um audiolivro com vários autores, como Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro.

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A actriz, declamadora e pedagoga Germana Tânger, que em 1959 levou a "Ode Marítima" de Álvaro de Campos para cena, morreu na segunda-feira à noite, em Lisboa, aos 98 anos. A informação é avançada pela família.

O velório realiza-se a partir das 19h00 na Basílica da Estrela, em Lisboa. A missa de corpo presente realiza-se na quarta-feira, às 14h30, seguindo o funeral para o cemitério de Queluz, disse à agência Lusa fonte próxima da família.

Germana Tânger destacou-se na divulgação da poesia e na arte de a dizer, tendo leccionou durante 25 anos no Conservatório Nacional a “Arte de Dicção”.

Na década de 1950, depois de uma temporada no Brasil, regressou a Portugal e, além das aulas no Conservatório, iniciou os programas culturais da RTP e na antiga Emissora Nacional/Radiodifusão Portuguesa (RDP) – nomeadamente, "Ronda Poética" e os recitais "Pró Arte", que levaria a todo o território português e a instituições ligadas ao ensino da Língua e da Cultura portuguesas no estrangeiro, e às comunidades portuguesas.

Privou com a artista Sarah Afonso, a escritora Fernanda de Castro e a poeta Natália Correia, partilhando tertúlias e o gosto pela palavra, pela poesia portuguesa e pelos seus autores.

Em 1959, ousou dizer, pela primeira vez na sua carreira, "na íntegra e de cor", a "Ode Marítima", de Álvaro de Campos.

Foi num espetáculo público no Teatro da Trindade, em Lisboa – o mesmo local onde se despediu dos palcos, em 1999, repetindo o poema do heterónimo de Fernando Pessoa a quem ficaria sempre associada, acompanhada pelo actor João Grosso ("o meu querido João Grosso", como escreveu), um dos seus dilectos discípulos.

Uma vida de poesia

Foi Almada Negreiros que lhe pediu que começasse a declamar. O pedido começou com "O Corvo", de Edgar Alan Poe, traduzido por Fernando Pessoa.

"A aprovação foi imediata", escreveu António Macieira Coelho, amigo da declamadora, no prefácio de "Vidas numa vida", a autobiografia que Germana Tânger publicou em 2016, recordando que aquele instante e aquele poema constituíram o "arranque imparável para a arte de dizer poesia", que perduraria durante décadas.

No final da década de 1940, Germana Tânger fixou-se com o marido em Paris. Fez um curso de dicção no Teatro Jean Vilar, estudou com George Le Roy, actor da Comédie Française e professor do Conservatório de Paris, foi titular de Estudos Camonianos, na Universidade de Sorbonne.

Firmou a carreira de declamadora no Brasil, após a colocação do Manuel Tânger no Rio de Janeiro, como adido cultural. Privou com os meios literários da época, fez amizade com a escritora Cecília Meireles.

Foi homenageada pelo Festival de Teatro de Almada e a revista “Phala”, dirigida pelo editor Manuel Hermínio Monteiro, da Assírio & Alvim, dedicou-lhe então um número especial, com uma selecção dos 'seus' poemas, como a "Ode Marítima", de Álvaro de Campos.

Cinco anos depois, em 2004, a mesma editora convidou-a para fazer um audiolivro, com autores à sua escolha. Gravou Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa.

Em 2010, quando completou 90 anos, Germana Tânger foi homenageada pelo Festival ao Largo, do Teatro Nacional São Carlos. Três anos mais tarde, o Nacional D. Maria II assinalou o Dia Mundial da Poesia com a celebração da sua carreira e a inscrição do seu nome numa placa junto ao salão nobre.

A apresentação da sua autobiografia, "Vidas numa vida", em Abril de 2016, foi um dos últimos actos públicos em que participou.

Germana Tânger nasceu em Lisboa, em 16 de Janeiro de 1920, e estudou no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, tendo depois seguido para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Integrou aí o grupo de teatro fundado por Manuel Tânger, investigador, professor universitário, com quem viria a casar-se.

Foi agraciada com o Grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique pelo Presidente da República Jorge Sampaio, com a Medalha de Mérito da Câmara de Lisboa, a Medalha de Mérito de Sintra e ainda com o Prémio Maria Isabel Barreno – Mulheres Criadoras de Cultura do Governo português, entre outras distinções.

No final da autobiografia, escreveu: “Por último, assim resumo a minha vida”: “tanta surpresa, tanta dedicação, tanto amor, tanta amizade, tanta desilusão, tanta força, tanta alegria, tanta esperança, tanta rebeldia, tanto desgosto, tanta saudade”.

“Aos que vivem com a maldade que anda no ar e bem recheada de mentira, de injustiça e de rancor, este livro ['Vidas numa vida'] não lhes diz respeito. À alma dos que me construíram e dos grandes amigos que me cercam com a verdade, a justiça, a força da vida e, sobretudo, com o amor, sim, a esses dedico este livro”.

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