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Reportagem. O segundo Natal sem luz do Bairro da Torre

29 dez, 2017 - 18:00 • Elsa Araújo Rodrigues (texto e fotografias)

No dia em que o Governo criou um regime provisório para abastecer bairros precários com eletricidade pública, a Renascença volta a publicar uma reportagem de dezembro num bairro de Loures que esteve a sobreviver com geradores.

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O dia amanheceu luminoso no Bairro da Torre, em Camarate, Loures. Josefa, de 71 anos, a irmã Gertrudes, de 87, e uma amiga de visita estão sentadas à porta de casa, uma construção precária de tijolo, chapas de zinco e praticamente sem janelas. O sol brilha e tirou as irmãs da cama. “A casa está muito fria, parece um frigorífico”, diz Josefa, em jeito de cumprimento. Talvez para justificar a roupa de quarto que têm vestida. “Na cama tinha os pés muito frios.”

Falamos do sol e da temperatura, excepcionalmente quente para um dia de Dezembro. Josefa não quer aprofundar a conversa. Vive no bairro há 21 anos e já perdeu a conta aos jornalistas que viu passar por ali. “E continuo à espera”, frisa. Espera pelo realojamento que não chega. “Já estou aqui no bairro há tanto tempo que agora só saio para uma casa como deve ser.”

O resto da família foi realojada na Quinta do Mocho, em Sacavém, Loures. Quando Josefa chegou a Portugal em 1996, vinda de São Tomé e Príncipe, o recenseamento no âmbito do PER (Programa Especial de Realojamento) já estava fechado, e por isso, não teve direito “a uma casita”. Repete que não quer voltar a contar a história, falar do passado.

“Estamos aqui numa calamidade, numa casa sem luz. Nem televisor tenho mais”, explica Josefa, apontando para a pequena antena parabólica presa às chapas de zinco do telhado.

“Na altura, quando tinha luz, fiz o contrato com a NOS e tinha internet, tinha tudo. Ficámos aquele tempo todo sem energia, agora não tenho nada.”

Mais de um ano é o tempo de que fala Josefa. Até Outubro de 2016, quase todas as habitações do bairro estavam ligadas à rede eléctrica de forma ilegal. A luz chegava às barracas a partir de “puxadas”, ligações artesanais aos postes de iluminação pública, fornecida pela EDP.

As “puxadas” não autorizadas eram um crime de roubo de energia – que nenhum dos habitantes do Bairro da Torre diz saber ao certo quem ou quando começou. Sabem, porém, que num dia de Outubro de 2016 o bairro ficou às escuras. A iluminação pública foi cortada, com a EDP a alegar razões de segurança relacionadas com a sobrecarga da rede.

Largos meses depois, por insistência da Câmara de Loures, o problema técnico foi resolvido e os candeeiros públicos do bairro voltaram a acender. Nas barracas, nem todos voltaram a ter luz.

No meio tempo, a autarquia instalou no bairro geradores a combustível – uma solução transitória que nunca chegou a funcionar em pleno devido ao custo elevado que tinha para os moradores.

Há mais de duas décadas no bairro, Josefa já viveu melhor do que hoje. O pior nem é a falta que lhe faz a companhia da televisão. “Não tenho frigorífico, não tenho nada. Limpei o frigorífico e está ali vazio, sem nada. Quanto dinheiro é preciso ter para estar todos os dias a comprar alimentos? Não dá!”

Sem acesso a electricidade, Josefa não consegue ter um electrodoméstico fundamental e que a ajudaria a gerir a magra reforma. “Cada vez que a gente compra comida temos que comer no mesmo dia. E onde é que há dinheiro para aguentar isso?”, revolta-se.

À espera de uma vida melhor

O Bairro da Torre fica nos limites dos terrenos do aeroporto de Lisboa. Uma estrada de gravilha parte o bairro ao meio. Do lado esquerdo (de quem vê a pista principal do aeroporto ao fundo) moram sobretudo famílias de origem africana; do lado direito, famílias ciganas. São 47, no total.

A divisão foi forçada pelas circunstâncias e pelas afinidades, mas não impediu a criação de uma associação de moradores – de todos os moradores. Ricardina Cuthbert, mais conhecida por tia Cadi, é a representante do bairro, onde vive desde 1998. Chegou de São Tomé e Príncipe já casada e nos primeiros tempos viveu na casa dos pais, que já não existe. Foi uma das muitas casas demolidas em 2006, na sequência do processo de realojamento.

Os pais mudaram-se para a Quinta do Mocho e Ricardina mudou-se para o outro lado da rua – para uma das “casas de tijolo” com chapas de zinco no telhado – com o marido e os filhos. É ali que vive desde sempre, à espera da mudança. Há quanto tempo está à espera? Ricardina já nem sabe “porque o tempo de espera não existe. Nós nem estamos assim à espera de tanta coisa… Estamos à espera de uma vida melhor.”

A resposta parece vaga, mas Ricardina concretiza. “Esperamos ter, pelo menos, as condições básicas, acesso a água, luz e bens essenciais. O tempo de espera nem conta tanto porque, enquanto vivemos, estamos com esperança.”

Vive há quase 20 anos sem água e electricidade “da rede”. Ricardina e a família têm luz “uma ou duas horas por dia” fornecida por um gerador a gasolina. O custo é elevado e por isso não há electrodomésticos ligados à corrente a tempo inteiro. “Fomos forçados a perder o acesso à electricidade desde Outubro do ano passado. Vamos passar mais um Natal sem luz”, desabafa.

O acesso de que Ricardina fala não era legal, mas era “gratuito”. Perguntamos se não terá sido por isso que foi cortado. “Talvez”, admite. Mas diz que a situação já poderia ter sido resolvida dentro da regularidade, “se houvesse vontade”. E resume: “O que as pessoas aqui no bairro querem é ter um contador de luz individual, a pagar, como em qualquer lugar do mundo.”

“As pessoas confundem, dizem que nós queremos luz, queremos casa, tudo de graça. Mas não é aquilo que acontece porque a Câmara de Loures não dá casa às pessoas, simplesmente arrenda a casa. E cada um paga consoante o seu rendimento. Não posso ganhar 300 euros e pagar uma casa de 300 euros. As pessoas confundem muito isso. Dizem que as pessoas que moram numa barraca vêm, aconchegam e ficam à espera de uma casa nova e, por isso, não têm direito a nada. Outros dizem: querem luz de graça. Não. Põem a luz, põem o contador e quando não se paga, corta.”

Visitas às escuras

O irmão José Manuel Duarte, dos Missionários Combonianos, trabalha no bairro há cerca de dois anos e é um dos cicerones habituais das visitas quer dos jornalistas, quer dos "políticos", como lhes chama. No dia em que a Renascença esteve no bairro, teve trabalho a dobrar.

É também o dia da visita à Torre de um grupo de técnicos da autarquia de Loures e do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) que tentam resolver o problema do bairro em conjunto. Em Janeiro, a autarquia prevê realojar mais sete famílias (das 47 que ainda vivem ali).

O presidente da Câmara de Loures, Bernardino Soares, diz que não é possível fazer mais. “Porque não temos habitações suficientes para tanta gente”, explica o autarca comunista à Renascença.

As famílias que estão de saída do bairro (segundo as previsões, já em Janeiro de 2018) vão ser realojadas em fogos que estão a requalificados. Para as restantes, a câmara está a fazer “trabalho conjunto com o IHRU e a Secretaria de Estado da Habitação”. “Achamos que o Estado, a administração central, o Ministério das Finanças, que é quem tutela o terreno, devem ter aqui um papel a dizer.”

Na impossibilidade de resolver no imediato o problema do realojamento de todas as famílias, o autarca considera que, “até lá, deve haver condições para que as condições de vida sejam minimamente melhoradas, mesmo dentro da precariedade em que as pessoas vivem”.

Em Junho, por iniciativa da Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação foi votada por unanimidade na Assembleia da República a resolução nº. 151/2017, que recomenda ao Governo que legisle no sentido de permitir às famílias que vivem em habitações precárias realizar contratos de fornecimento de energia eléctrica.

No entanto, apesar de a recomendação ter sido aprovada há cinco meses, o decreto legislativo tarda em chegar. Questionamos a comitiva no bairro: se o realojamento tarda, porque não avançar já com uma medida que poderia aliviar a vida quotidiana destas famílias?

Alexandra Gesta, presidente do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, não compreende a inacção do Executivo: “A questão da electricidade é uma questão que não percebo como é que é possível alguém estar tranquilo no Governo e ter estas situações. Provavelmente tem muitas outras para resolver, mas tem que haver alguém em quem delegar que possa tratar destes assuntos”.

Depois da casa de Ricardina, a “comitiva de técnicos” não consegue entrar mais nenhuma casa. A notícia de que andam no bairro corre depressa e mais depressa ainda são rodeados pelas pessoas que querem saber em que ponto está o processo de realojamento.

Perguntamos ao irmão José Manuel Duarte se acontece sempre a cada visita. “Não, porque no dia-a-dia não se vê este tipo de visitas”, explica. Esta semana é especial? Sim, “porque é Natal”, responde. “Porque esteve cá a comunicação social e também para mostrar que se é solidário e se quer resolver os problemas. Mas não sei, como não sou político, é difícil entender o que vai na cabeça de um político.”

Comentários
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  • Raul Silva
    26 dez, 2017 Agualva 17:56
    Ao Bairro da Torre não vai o Presidente da República Os comediantes não gostam de atuar às escuras.
  • Martins
    25 dez, 2017 LX 16:19
    Deixam entrar no país toda a casta de gente. Só facilidades e depois são a câmara e o contribuinte que têm que pagar a incúria dos governantes. Loures também não está isenta de responsabilidades pois vai fechando os olhos à construção ilegal.
  • Artur António Carval
    25 dez, 2017 Vila Nova de Gaia 00:16
    E a si o que se de chamar? Podemos chamar egoísmo, indiferença e sem coragem de se mirar ao espelho
  • Pedro
    23 dez, 2017 13:10
    Quantos mais realizarem gratuitamente e á custa do contribuinte mais chegaram a pedir o mesmo. O povo burro paga tudo.

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