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Entrevista

Afonso Cruz. Viajar é conhecer melhor “o lugar de onde saímos”

21 dez, 2017 - 09:00 • Maria João Costa

Em entrevista à Renascença, o escritor abre as portas do seu novo livro “Jalan, Jalan – Uma Leitura do Mundo”.

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Uma tempestade de pirilampos surpreendeu-o na Bolívia, recebeu de um monge um manuscrito embrulhado numa toalha de Natal. Aventuras das viagens do escritor Afonso Cruz que estão no novo livro. “Jalan, Jalan – Uma Leitura do Mundo” editado pela Companhia das Letras não é um apenas um livro de viagens. “É um livro de uma vida”, explica o autor à Renascença, onde há poesia, filosofia e fotografias que colecionou nos seus passeios.

Vamos começar pelo título “Jalan, Jalan”. O que quer dizer?

“Jalan, jalan” é uma palavra indonésia que significa passear. Descobri esse título numa viagem. Estava com uma pessoa, o João Soares, não o político, mas um leitor do Instituto Camões. Estamos a passear no campo na Indonésia e alguém pergunta o que estamos a fazer e ele diz “Jalan, jalan” e eu perguntei o que significava. Ele disse que “jalan” significa rua ou andar e quando se repete, significa passear. Eu achei bonito, porque normalmente essas repetições servem para formar plurais, mas neste caso dava uma outra dimensão á palavra andar que era esta questão do passeio. E o passeio é algo que se faz por prazer, não há necessariamente um destino, é o próprio passeio que tem um valor intrínseco. E achei isso muito bonito, por isso titulei o livro.

Este livro propõe essa ideia de passeio, de viagens que o Afonso Cruz fez, mas este não é um livro de viagens. Propõe uma leitura do mundo.

É um passeio, não só pela geografia no contexto mais clássico da literatura de viagens, que também está no livro, mas é também um passeio pelas minhas próprias leituras, sobre a cultura, a literatura, a ciência, a filosofia, a arte, ou seja, pelos temas que me fascinam e interessam. A geometria do Universo, a topologia do Cosmos, a própria ideia de tempo, o que isso significa e o que é. É um passeio também pela política e sociedade e outros temas que me interessam.

Sendo um fresco dessas impressões tem também a particularidade de juntar a fotografia. Nem sempre é um suporte de ilustração?

Há fotografias que servem para ilustrar determinadas realidades ou até, às vezes, para corroborar, porque há histórias que são tão incríveis que parecem ficção. Por vezes, coloco fotografias quase como prova material de que aquilo realmente aconteceu. Exemplo disso é a do monge que me enviou um manuscrito em romeno, embrulhado numa toalha de Natal, em que o envelope dizia que vinha "do aeroporto para o céu". Tem uma série de coisas que parecem ficção. Era um monge ermita que vivia no Monte Atos, onde o conheci. Era austríaco e viveu uns 15 anos numa gruta em Israel.

A quanto tempo de vida e de viagens corresponde este livro?

Eu acho que é um livro de uma vida. As viagens aqui retratadas são a partir dos anos 90, mas a verdade é que as leituras são das recordações mais antigas que tenho. Também há textos que têm recordações familiares, da minha infância na Figueira da Foz e, nesse sentido, este livro trata de uma altura que abrange todas as minhas memórias, das mais antigas às mais recentes.

Nessas memórias estão alguns episódios insólitos. Parece que o escritor Afonso Cruz atrai esses casos.

Focamo-nos nas coisas extraordinárias. Não vamos comentar o tédio das viagens ou das nossas rotinas. Há um momento para mim muito fascinante quando estou a viajar nos pântanos da Bolívia. E vejo uma tempestade de pirilampos. Foi um momento incrível e muito mágico. Até difícil de descrever. Afinal eram só pirilampos, muitos pirilampos! Na altura pelo o que estava a passar, pelos dias que já estava a caminhar nos pântanos com um índio, e ser uma noite completamente escura em que não se via rigorosamente nada, excepto estrelas no céu, foi um espetáculo incrível! De repente, via as estrelas a mexerem-se no céu, no chão. Também estava com muita fome e muito cansado. Tudo ajudou a que aquilo fosse um instante muito especial dessa viagem.

É nesse momento que tira um queijo de cabra da mochila.

Eu tinha levado queijos de Évora secos, para ir comendo. Durante a viagem dei a comer ao índio que estava comigo e ele adorou aquilo. Ele vivia numa aldeia de "chimanes" na orla da reserva e, quando combinamos ir a um acampamento, ele confessou-me que tinha uma amante no acampamento. E disse-me que adorava dar um queijo à amante e eu acabei por lhe oferecer o outro queijo que ainda tinha.

Este livro é uma pausa na escrita dos romances. É uma recolha de textos que já tinha?

Há muitos textos inéditos que não cabiam em nenhuma publicação, ou porque são muito longos ou porque são demasiado complexos para o tipo de leitura. Há outros que foram publicados e que foram alterados. E há outros que são aquilo que já tinha publicado.

E a viagem ajuda a conhecer-se melhor a si, conhecendo melhor os outros?

Não tenho essa visão demasiado romântica de que viajo para me conhecer a mim mesmo. Na verdade, todo o conhecimento inclui essa possibilidade e desejo. Não sei se a viagem o fará da maneira mais eficaz. Acho que o facto de sairmos do lugar onde estamos nos permite, talvez não conhecer tão bem o lugar para onde vamos, mas o lugar de onde saímos. Quando viajo por exemplo para a Palestina, não tenho pretensões de conhecer a realidade palestiniana, mas, olhando da Palestina para Portugal, tenho uma outra visão de Portugal, e isso sim.

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  • Eliseu
    21 dez, 2017 Ilhavo 11:18
    O melhor escritor da nova geração.

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