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​Entrevista

Kalaf: “Os bairros sociais são fábricas de cultura”

15 dez, 2017 - 19:29 • Maria João Costa

“Não acredito na arte sem compromisso”, diz o músico dos Buraka Som Sistema. Acaba de lançar o seu primeiro romance, “Também os Brancos Sabem Dançar”.

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Não acredita na arte sem compromisso. Kalaf Epalanga, músico dos Buraka Som Sistema, lançou o primeiro romance. “Também os Brancos Sabem Dançar” é uma autoficção que tem a música como personagem principal, um livro construído como um álbum. “Neste momento a cultura que está a levar Portugal mais além, tirando o fado, é feita naqueles prédios que foram construídos pelo Programa Especial de Realojamento”, diz em entrevista.

“Também os Brancos Sabem Dançar” é um romance musical porque é em torno da música que toda a acção se passa?

Acho que a música é, sem dúvida, a personagem principal do livro, mas estão ali todos os ingredientes que compõem um romance clássico. Tem um estilo próprio, que não é assim tão visível porque este é o primeiro romance. Mas quem acompanha as minhas crónicas já consegue identificar alguns lugares que me são comuns, pelo menos, nos dois volumes de crónicas.

Acho que era um livro para se escrever nesta altura, depois de passar 10 anos com os Buraka. Fazia todo o sentido a transição, até para arrumar as coisas nas caixas e dizer: “OK, passou uma fase e agora vamos construir outra”.

É muito diferente escrever crónicas e escrever um romance. Treina-se a escrita na crónica para se poder escrever um romance?

Sim, acho que a crónica é o grande exercício. Pelo menos para mim, foi assim. O que eu sinto que é importante num romance é, sem dúvida, ter uma boa história. E depois as questões de ritmo, de não nos perdermos naquele deslumbre de que estamos a escrever um livro com muitas páginas e, aí, nos despistarmos na narrativa. A crónica é boa para nos dar essas balizas: tem um limite de caracteres, tem um limite de palavras e dentro desse limite eu tenho que conseguir expressar a ideia que me levou até ela. E usei o mesmo método para o romance, ou seja, tinha uma ideia, tinha um “outline” – as cenas mais ou menos encadeadas, não todas, mas grande parte delas – e depois foi trabalhar para conseguir fazer com que elas fizessem sentido, uma atrás da outra. Depois, trabalhei com o editor para afinar ainda mais essa questão.

Foto: PLUMA

Poderíamos transpor para a música todo esse processo criativo porque a questão do ritmo, de não perder o sentido, também é da linguagem musical.

Sim, totalmente. E construí como se estivesse a construir um álbum, a compor um álbum – mesmo na própria divisão do romance em três partes. Em duas partes, eu estou muito preso à ideia da hora e do passar do tempo, mas na segunda parte, já construo aquilo como se fossem canções. Com os títulos de cada capítulo existiram alguns truques que alguém que esteja familiarizado com a forma se constroem os discos poderá entender que há ali uma proximidade.

“Também os Brancos Sabem Dançar” conta uma história, em particular a dos Buraka Som Sistema, mas não só. É, no fundo, o contexto musical de uma época, a criação artística de toda uma época.

Sim. Sendo uma autoficção, eu parti de alguns lugares que me são próximos e que as pessoas conhecem. E isso deu-me gozo. Pude usar o meu personagem, desconstruí-lo, torcê-lo um pouquinho, para caber dentro da história que queria contar. Trabalho sobre uma matéria que todo o mundo conhece – ou, se quiserem conhecer, podem ter acesso às referências musicais que levanto aqui, conseguem ter acesso às pessoas que trago para a história. Provavelmente, algumas pessoas vão dizer que isto é tudo mentira, mas esse foi o gozo de contar esta história.

Há uma brincadeira constante com o leitor que vive entre a realidade e a ficção.

Exactamente. Sobre a memória e as ideias que se tem, até sobre a minha pessoa e a banda da qual faço parte. Eu levantei o véu sobre uma ideia que não é “concreta”, é ficção, mas que usa a realidade. É um livro sobre mobilidade, viagens, sobre autodescoberta. Gosto muito desse género de literatura, o jovem faz-se homem. Momentos de transição.

Numa das passagens do livro escreve: “A minha condição de emigrante é o que dá sentido ao meu discurso artístico”.

Já estou aqui há muito tempo. Cheguei em 1995 a Lisboa. É interessante, porque muitas pessoas, por me verem muito activo e muito envolvido com a cidade e a cena cultural desde os anos 90, têm a audácia e a arrogância de achar que eu sou mais português do que angolano. Eu acho curioso porque toda a minha angolanidade vem comigo. O facto de chegar aqui como emigrante e ter de enfrentar o SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], de ter de pedir visto, tudo isso eu transporto para a minha escrita e música. Não recuso nada, tudo faz parte, inclusive a minha condição de africano que se expressa nesses meios.

Há outras questões sociais neste livro, onde escreve que Cavaco Silva teve influência no percurso da quizomba em Portugal por ter feito nascer os bairros sociais nos arredores de Lisboa.

Esse livro foca a questão de como nós encaramos os subúrbios e os bairros sociais. Eu olho para os bairros sociais como fábricas de cultura. Neste momento, a cultura que está a levar Portugal mais além, tirando o fado, é feita naqueles prédios que foram construídos pelo programa PER [Programa Especial de Realojamento]. Essa era a discussão que eu queria trazer para o livro. Agora, que o racismo também é um dos pontos, sem dúvida. Mas o chamar de atenção que eu quis que o livro fizesse era para ali [para esses bairros sociais]. Há pessoas que olham para os Buraka e quase nos isolam, mas nós estamos sempre a relembrar as pessoas: “o que fazemos tem uma origem, que é esse corredor que começa em Luanda e vai acabar na Linha de Sintra, em Setúbal, nos subúrbios da Margem Sul.”

É, por isso, tudo um livro muito urbano.

Absolutamente!

E “criar é comprometedor”, como escreve?

Sim, porque traz responsabilidades. Sinto que ao escrever, ao escolher os temas que escolho, estou a chamar a mim a responsabilidade de acrescentar ao que já foi feito, a apontar caminhos novos e isso, todo o artista é obrigado a fazer. Não acredito na arte sem compromisso.

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  • alberto sousa
    16 dez, 2017 portugal 07:04
    "Eu olho para os bairros sociais como fábricas de cultura". É, temos óculos diferentes. Eu olho-os como fábricas de decadência, de degradação, de escolas de criminosos. Óbvio que nem todos os que lá vivem vão por esse caminho, felizmente, mas que são autênticas fábricas do que pior existe na sociedade são.

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