Emissão Renascença | Ouvir Online

Conversas Cruzadas

Cofres cheios? Não há êxito, responde Carvalho da Silva

22 mar, 2015 • José Bastos

País tem "cofres cheios", garantiu a ministra das Finanças. "Persiste teimosia da austeridade" é a contra-análise de Carvalho da Silva. Já Daniel Bessa enquadra a frase no "bom momento no financiamento do Estado".

Cofres cheios? Não há êxito, responde Carvalho da Silva
País tem “cofres cheios”, diz Maria Luís Albuquerque. “Persiste teimosia da austeridade”, é a contra-análise de Carvalho da Silva. Já Daniel Bessa enquadra a frase no “bom momento no financiamento do Estado”.
"Cofres cheios" vs "bolsos vazios"? Na semana em que a ministra das Finanças certificou que Portugal tem "cofres cheios para honrar compromissos", na resposta, o líder do PS chamou a atenção para a pobreza. "Os portugueses infelizmente estão com os bolsos vazios", disse António Costa, para quem "o governo não compreende que o centro da actividade política são as pessoas".

Mas não deve ser a confortável almofada financeira de 15 mil milhões um elemento positivo a valorizar na análise política?

"Entendi a afirmação da ministra como a consequência de atravessarmos um bom momento. O país tem boas condições de financiamento", afirma o ex-ministro da Economia Daniel Bessa, no Conversas Cruzadas da Renascença.

"A tesouraria cheia, cheia não deverá estar. Não há nenhuma tesouraria que esteja cheia em absoluto", indica Daniel Bessa. "Mas funciona como um factor de estabilidade. Não estou a falar dos desempregados. Não estou a falar dos pobres. Não estou a falar das verdadeiras desgraças", matiza. "Estou a falar da tesouraria do Estado que atravessa um bom momento. Estou a falar da tesouraria do Estado onde há.... dinheiro".

Para Daniel Bessa, "isto tem de ser entendido com alguma leveza e vale o que vale, mas não é um disparate".

"Temos cofres cheios para poder dizer que se alguma coisa acontecer à nossa volta que perturbe o funcionamento do mercado, nós podemos estar tranquilamente, durante um período prolongado, sem precisar de ir ao mercado", garantiu Maria Luís Albuquerque.

Almofada de 15 mil milhões de euros
Quando a ministra usava a expressão "cofres cheios" referia-se a uma almofada que ronda aos 15 mil milhões de euros avançou, no fim-de-semana, o "Expresso", apoiando-se em números da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP).

O número resulta da soma da almofada existente no final de 2014 (12,4 mil milhões de euros) com as emissões de obrigações do tesouro feitas este ano (8,7 mil milhões de euros) e as subscrições líquidas de certificados. Da cifra está já descontado o valor do reembolso ao FMI de parte (22%) do empréstimo (6,6 mil milhões).

O que há então de censurável na afirmação da ministra? A forma? A substância?

Manuel Carvalho da Silva sustenta que a frase se enquadra na linha de uma declaração de Luís Montenegro ao "Jornal de Notícias", em Fevereiro de 2014. Com o final do programa de ajustamento à vista, o líder parlamentar do PSD dizia que "a vida das pessoas não está melhor", mas "a vida do país está muito melhor".

"A afirmação da ministra assenta na manutenção e aprofundamento da ideia de que há um país que está melhor, embora os portugueses estejam pior", sustenta Carvalho da Silva.

"Continua-se com isto e a frase tem sido glosada muitas vezes", insiste o sociólogo.

"Na fase actual uma das coisas que me impressiona mais é a persistência em Portugal – da parte do Governo, então, é um absolutismo total – da ideia de que a ideia destas políticas de austeridade são o único caminho e de que na Europa não está a haver reacções a esta política", afirma Carvalho da Silva.

"Se a tempestade vier, levaremos com impactos muito duros. Mas já aqui fizemos uma abordagem de cenários numa perspectiva muito mais ampla, até 2019, por exemplo, de perspectivas de futuro. Esse é que é o desafio", observa.

"Aspectos conjunturais – como, por exemplo, trocar dívida, pagando ao FMI, etc. – estão a ser possíveis pontualmente. Até podem ser positivos, mas não nos podem iludir no plano da resposta aos grandes desafios do país", refere Carvalho da Silva.

"Não estamos perante nenhum cenário de êxito consumado. Mais: é uma asneira persistir na tese de que na União Europeia não existem outros sinais da necessidade de se encetar outras políticas que não as seguidas até agora", nota.

"Esta insistência do Governo na teimosia da austeridade, da submissão absoluta aos fundamentos da austeridade, é uma aberração. É limitadora para o aproveitamento das capacidades do país", acusa o professor da Universidade de Coimbra.

Daniel Bessa: "Portugal está pior?"
Daniel Bessa interpela o antigo líder da CGTP. "Mas, Manuel Carvalho da Silva, o país está pior? Está pior que há seis meses, há um ano, há três anos?, questiona o antigo ministro.

"Não estou a fazer comparações a seis meses", responde Carvalho da Silva. "Mas, como sabemos, há vários indicadores cujas leituras, do emprego, da situação económica, estão altamente influenciadas por factores meramente conjunturais", observa.

"De evoluções de que não podemos antecipar o sentido", afirma Carvalho da Silva. "Não posso estar mais de acordo", anui Daniel Bessa.

O antigo líder da CGTP prossegue: "É por isso que não é possível falar com segurança em comparações de seis meses. Ou seja, até podíamos chegar à conclusão que do ponto de vista conjuntural havia alguma valoração a fazer, mas no plano estratégico dizer que as coisas estão mal".

"Porque aí avaliamos a questão demográfica, a perda de população empregada, a dimensão do desemprego a pobreza, etc.", alerta Carvalho da Silva.

Já Daniel Bessa reenquadra a análise à expressão "cofres vazios". "Li na declaração da ministra Maria Luís Albuquerque o seguinte: Portugal atravessa um bom momento do ponto de vista do acesso às condições de financiamento", indica.

"Portugal tem hoje taxas de juro mais baixas do que em algum momento da sua história. Tem acesso a financiamento nessas condições. Esse é um dado favorável. Sabemos que o Estado português tem ido buscar dinheiro ao mercado nessas circunstâncias", recorda Daniel Bessa.

"Eu próprio, no passado, já aqui emiti a opinião de que nenhum governo deve ter menos de um ano de tesouraria para satisfazer as suas necessidades. Durante um ano ter a certeza que – aconteça o que acontecer – o dinheiro está ali", remata.

"Acredito que estejamos agora muito próximos desse cenário, muito próximos dessa situação", conclui Daniel Bessa.