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Duas mãos cheias de palavras

29 jul, 2012 • Teresa Abecasis

Chama-se "língua dos gestos", mas são mais do que simples gestos que saem das mãos de quem a fala. São palavras, são sentimentos, são pessoas que se desenham no ar numa espécie de dança que envolve as mãos, o corpo e o olhar.

Duas mãos cheias de palavras
A propósito do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, que se assinala a 3 de Dezembro, recorde a reportagem "Duas mãos cheias de palavras". Chama-se a língua dos gestos, mas são mais do que simples gestos que saem das mãos de quem a fala. São palavras, são sentimentos, são pessoas que se desenham no ar numa espécie de dança que envolve as mãos, o corpo e o olhar. A Língua Gestual Portuguesa (LGP) é recente, mas já mudou a vida a muita gente. E até dá concertos.
Quando tinha quatro ou cinco anos, Patrícia deixou de ouvir a voz dos pais e o barulho dos carros. O mundo deixou de ter som e nunca mais ouviu uma palavra, uma música. Foi para a escola, os professores não a percebiam e não fez amigos, não partilhou segredos, era uma menina tímida. Só muito mais tarde é que descobriu a LGP. Aprendeu a falar com as mãos e mudou de nome.

"Tinha 20 anos quando alguém me enviou uma carta sobre um curso de que eu nunca tinha ouvido falar", conta. Patrícia vivia no Algarve, com os pais, e o curso era em Lisboa, na Associação Portuguesa de Surdos. Foi à capital com a mãe e confessa que achou esquisito o que viu quando entrou na associação pela primeira vez: "Eu sentia que eram pessoas estranhas, mas sabia que eu era igual a elas."

A língua gestual mudou-lhe o nome e a vida. Quando se começa a falar a língua das mãos ganha-se um novo nome, em gestos. “O meu nome gestual significa envergonhada, tímida. Os surdos diziam que eu não falava nada. Agora, o nome gestual já não se adequa à minha personalidade. Com a língua gestual comecei a comunicar muito mais”, explica. Patrícia tem agora 35 anos e um novo nome que já não tem nada a ver com ela.

Cinema, só se não for em português
Patrícia gosta de ir ao cinema, mas só para ver filmes estrangeiros. São os únicos que têm legendas. No início deste ano, saiu um filme português, o primeiro que os surdos puderam ir ver ao cinema. Chama-se “Gesto” e é um filme, o único, feito em Língua Gestual Portuguesa.

Gosta também de música, mas a oferta para os surdos nesta área é ainda menor. De vez em quando há uns concertos que têm tradução em língua gestual. Apesar de não ouvir um único som, Patrícia gosta de sentir o ritmo através da vibração e de ser embalada pelos movimentos do corpo. A música dá-lhe “uma grande satisfação e ajuda-a a sentir bem”.

Uma comunidade “invisível”´aos olhos
A LGP é falada por cerca de trinta mil surdos, sem contar com alguns familiares ou profissionais que a utilizam no dia-a-dia. Mas quantos surdos existem em Portugal? O último censo que existe em Portugal em relação à comunidade surda é de 2001 e está incompleto uma vez que não distingue o grau de surdez.

Um surdo que precise de ir às finanças ou ao médico tem de pagar a um intérprete para o acompanhar porque não vai encontrar ninguém preparado para comunicar com ele. Ana Bela Baltazar, intérprete de língua gestual e autora do segundo dicionário de Língua Gestual Portuguesa, sublinha que é importante as pessoas saberem “pelo menos como abordar uma pessoa surda”.

“A comunidade surda é diferente das outras. Eu posso cruzar-me com uma pessoa surda inúmeras vezes e, se não precisar de contactar com essa pessoa, nunca vou saber que ela é surda. Não é algo visível, que salte aos olhos . Talvez por isso, muitas vezes, ela é desvalorizada”, lamenta.

Uma língua “jovem”
A Língua Gestual Portuguesa é uma língua falada apenas em Portugal e que tem origem na Língua Gestual Sueca. Em 1823, o sueco Per Aron Borg vem para o nosso país, a convite do rei D. João VI, para gerir a primeira escola de surdos do país. É nessa altura que são dados os primeiros passos no desenvolvimento da língua, que, depois disso, ainda enfrentou muitas barreiras.

Em 1880, as línguas gestuais foram abolidas por se acreditar que os surdos deveriam ter como prioridade aprender a oralizar, a falar o português como qualquer ouvinte normal. Mais tarde, descobriu-se que este método estava errado. Apesar de a maior parte dos surdos não serem mudos e conseguirem oralizar, a língua natural para eles é a língua gestual.

Só já no século XX, em finais dos anos 70, é que a língua gestual volta a fazer parte do ensino oficial.  Só em 1981 é que surge a formação profissional de surdos na área da Língua Gestual Portuguesa. Em 1997, a LGP é reconhecida na Constituição como língua oficial. Ainda não existe nenhuma entidade que regule a LGP.