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Jesuítas. Apaixonados pelos eclipses, pioneiros da radioactividade

16 mai, 2015 • Filipe d'Avillez

Incompatibilidade entre religião e ciência é um mito. Prova disso é a ligação entre os jesuítas portugueses e a ciência, defende o historiador Francisco Malta Romeiras.

Jesuítas. Apaixonados pelos eclipses, pioneiros da radioactividade
A ideia de que a religião e a ciência são incompatíveis, conhecida como a "tese incompatibilista", é um mito que ninguém no mundo académico leva a sério, garante o historiador da ciência Francisco Malta Romeiras.

Em entrevista à Renascença, o autor do livro "Ciência, Prestígio e Devoção: Os Jesuítas e a Ciência em Portugal (Séculos XIX e XX)", editado pela Lucerna, explica que essa ideia é um mito que insiste em perdurar, mas que não tem qualquer base.

"Essa tese foi muito popularizada no século XIX e chegou ao domínio popular. O que acontece na realidade é que os cientistas não ligam a esta incompatibilidade. Por exemplo, um dos grandes historiadores da ciência, John Heilbron, diz que a Igreja Católica foi a maior instituição que promoveu a física no século XVII. E dentro da Igreja Católica, a Companhia de Jesus. Há imensos historiadores da ciência ateus, como o Ronald Numbers, que voltam a veicular esta ideia de que não há qualquer incompatibilidade entre fé e ciência."

Contudo, lamenta o historiador, formado em bioquímica, "apesar de no meio académico estar resolvida esta questão, nos meios menos académicos as coisas não são assim são simples."

No seu livro, resultante de uma tese de doutoramento orientada por Henrique Leitão, Prémio Pessoa em 2014, Francisco Romeiras sublinha a importância que tiveram os jesuítas, em particular, para o desenvolvimento científico em Portugal.

"Nos séculos XIX e XX os jesuítas em Portugal voltaram-se muito para a botânica e para a zoologia, e começaram nestas áreas porque eram áreas que facilitavam o trabalho de amadores. Isto é, eles que não tinham formação universitária quando começaram podiam facilmente recolher espécimes de animais e plantas e depois identificá-los", explica."

"O que é extraordinário é que eles passaram rapidamente de amadores a profissionais e passaram a contactar com os maiores profissionais da Europa e dos Estados Unidos. Essas foram as primeiras áreas."

"Mais tarde, dedicaram-se à bioquímica e à genética e melhoramento de plantas, e trabalharam muito com os laboratórios de Estado que foram fundados na altura do Estado Novo, como a Estação Agronómica Nacional. A seguir, um dos contributos mais relevantes foi a introdução da genética molecular em Portugal, pelo padre Luís Archer, que foi o primeiro doutorado em genética molecular e introduziu esta disciplina importantíssima para a investigação em biologia em Portugal, nos anos 60 do século XX", diz ainda o historiador.

Francisco Romeiras acrescenta que o Colégio de Campolide é o primeiro lugar em Portugal onde se fazem experiências com radioactividade. "Foi um padre jesuíta que foi trabalhar com Marie Curie por volta de 1910 e depois vem para Portugal e trabalha pela primeira vez com radioactividade."

"A maior campanha de sempre"
Paradoxalmente, embora os jesuítas sempre se tenham dedicado à educação, foram as fortes campanhas antijesuítas, encabeçadas pelo Marquês de Pombal, que incentivaram a Companhia de Jesus a investir mais na área científica quando voltam a Portugal, de onde tinham sido expulsos.

"Quando regressam, em meados do século XIX, a tese pombalina é muito forte, por isso sentem-se na necessidade de combater essa tese. E o que vão fazer é, nos seus colégios, investir imenso nas ciências naturais. Vão fazer laboratórios, criar colecções científicas, promover expedições com os alunos – por exemplo, para ver eclipses. Isto acontece sobretudo por causa deste antijesuitismo do século XIX, que é pouco original, porque retoma muitas das teses do século XVIII e eles sentem necessidade de combater essas teses."

Não se deve subestimar a dimensão da campanha contra os jesuítas, explica o autor, e embora a perseguição se tenha dado em vários países, Portugal foi um caso particular: "O Marquês de Pombal é o primeiro grande estadista europeu a expulsar os jesuítas. Os outros países vão seguir as pegadas de Pombal e isto leva inclusivamente a que a ordem seja extinta em 1773 pelo Papa Clemente XIV."

"José Eduardo Franco, um grande historiador da companhia no século XVIII e que estudou muito o mito jesuíta e antijesuíta, diz que esta foi a maior campanha publicitária de sempre. Por exemplo, a ‘Dedução Cronológica Analítica’, que é o livro mais importante publicado por Pombal, foi traduzido para chinês, para que pudesse chegar a todo o mundo e toda a gente pudesse saber as acusações que tinha contra os jesuítas", diz o autor.

Estudar mais, estudar sempre
A importância da ciência para a Companhia de Jesus não deixou de se fazer sentir com o passar dos anos. Ainda hoje, o Observatório Astronómico do Vaticano é gerido por jesuítas.

Em Portugal, contudo, tem diminuído o número de jesuítas especializados em assuntos científicos. "Penso que há um ou dois que estão a fazer o doutoramento em física, mas o que é peculiar na Companhia de Jesus é que esta ordem religiosa incentiva sempre os seus membros a prosseguirem os seus estudos e a fazer doutoramentos. Não necessariamente em ciência, pode ser em filosofia, em teologia, há jesuítas que fazem em arquitectura, ou até em ciência política. Mas o que é peculiar é isto: serem sempre incentivados a estudar mais."