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Eles querem mesmo é ser cientistas

04 fev, 2014 • Pedro Rios

 Cinco investigadores, cinco percursos ligados às bolsas de doutoramento e pós-doutoramento. "Não há alternativas" às bolsas, dizem.

Eles querem mesmo é ser cientistas
André Faustino estuda formas de personalizar o combate à obesidade consoante o doente. Graças aos esforços de Luísa Andrade os painéis solares poderão ser mais eficazes e menos inestéticos. Marco Fernandes quer pôr nanopartículas a combater a poluição e Viviana Silva ajudou a fazer gasóleo mais ecológico. Patrícia Nogueira sonha estudar o webdocumentário em Portugal e nos Estados Unidos. As bolsas de doutoramento e pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), alvo de um grande corte este ano, estão em todas estas histórias.


OS GENES QUE NOS QUEREM ENGORDAR
André Faustino e Luísa Andrade sabiam o que não queriam: embarcar numa sucessão de bolsas e mais bolsas e fazer do estatuto de “bolseiro” uma condição permanente. André fez uma empresa, Luísa conseguiu o muito desejado posto de investigador auxiliar.

Foi com uma bolsa da FCT que André, hoje com 36 anos, conseguiu estar quase cinco anos a fazer o doutoramento no Baylor College of Medicine, em Houston, no Texas, Estados Unidos.

Quando regressou a Portugal, já tinha na cabeça uma ideia: “fazer uma empresa”.

As bolsas permitem que “uma pessoa encare o mestrado e o doutoramento como uma profissão”, conta. Mas André não queria continuar nas bolsas em Portugal, “acima de tudo pela incerteza e pela dificuldade que seria progredir para uma carreira minimamente estável”.


André Faustino criou a Gene PreDit
Em 2006, com Joana Branco, fundou a Gene PreDiT, empresa com sede no Biocant Park, o parque biotecnológico português, em Cantanhede. Trabalha para identificar marcadores genéticos de doenças como a obesidade, usando sobretudo a mosca da fruta.

O combate à obesidade deve passar por adequar a terapia a grupos específicos de doentes, acreditam André e Joana. “Os tratamentos para uma pessoa devem ser diferentes dos que são usados noutras pessoas”, diz o director executivo da Gene PreDit.

“Os nossos genes estão predispostos para que facilmente ganhemos peso e temos vários marcadores genéticos ou componentes genéticos que nos predispõem para uma maior acumulação de peso. E são esses marcadores genéticos que estamos a tentar identificar”, afirma. A empresa procura agora investidores para chegar ao mercado global.

A Gene PreDiT nasce dos conhecimentos produzidos por André e Joana Branco, marido e mulher, durante os seus doutoramentos em Houston. “Se não tivesse feito o doutoramento, a empresa, provavelmente, não teria nascido”, reflecte. A equipa da Gene PreDit tem seis pessoas, metade são doutoradas. O doutoramento, diz André, “dá ferramentas”.

Um painel solar quase transparente
Um doutorado, diz Luísa Andrade, de 30 anos, “conceptualiza melhor do que as outras pessoas porque para isso foi treinado. E conceptualizar é o mais importante porque fazer é muito fácil, o difícil é encontrar soluções para resolver o problema.”

Um dos principais problemas que Luísa, investigadora auxiliar da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto desde Março de 2013, quer resolver é dar durabilidade e viabilidade às células fotovoltaicas de última geração. Dispositivos semitransparentes poderão vir a retirar os pesados painéis solares das paisagens urbanas, graças a uma parceria entre a FEUP e a Efacec.

Estas novas células têm vantagens estéticas e “permitem absorver mais radiação difusa do que as de silício”. Por isso, podem ser colocadas em locais como fachadas, janelas e clarabóias.

Foi graças à bolsa de doutoramento da FCT que Luísa esteve algum tempo na Suíça, onde pôde trabalhar com Michael Grätzel, inventor destas células de “terceira geração” – um “orgulho” para a cientista portuguesa, que procura fazer com que as células que Grätzel concebeu resistam aos elementos naturais.


Luísa Andrade é investigadora da FEUP
Luísa iniciou uma bolsa de pós-doutoramento, que não chegou a concluir porque surgiu a “oportunidade” de trabalhar na FEUP como investigadora auxiliar. “Muitos dos meus colegas arrastam-se de pós-doutoramento em pós-doutoramento. É uma vida inteira como bolseiro, que era algo que não queria para mim.” Uma vida de precariedade, com descontos escassos para a Segurança Social e sem direito a subsídio de desemprego.

Luísa compreende os colegas porque, muitas vezes, não há alternativa às bolsas para quem quer fazer ciência em Portugal. “Para a maior parte das empresas, o doutorado é um teórico que não vai ser capaz de materializar nada. Isso é cada vez menos verdade, vemos cada vez mais doutorados a serem empreendedores e a montarem empresas.”

André Faustino, um desses doutorados que montou uma empresa, receia os efeitos do corte na atribuição de bolsas da FCT, sobretudo numa área emergente como a biotecnologia. Teme que se recue 15 anos no número de bolseiros.

“Existe uma série de empresas [biotecnológicas] a nascer em Portugal e a grande maioria delas foram criadas por pessoas que estiveram a fazer doutoramento com bolsas FCT, muitas delas no estrangeiro. Quebrar este ciclo de uma forma tão abrupta é um risco relativamente elevado.”



CONTRA A POLUIÇÃO, NANOPARTÍCULAS

Marco Fernandes conseguiu bolsa na área da biologia
As preocupações de Marco Fernandes são “nano”. Pequenas, pequeníssimas, tão pequenas que só podem ser vistas com um microscópio electrónico.

Aos 24 anos, o cientista de Santa Maria da Feira ficou a saber, em Janeiro, que conseguiu uma bolsa de doutoramento da FCT para estudar o efeito combinado em organismos aquáticos de nanomateriais e poluentes orgânicos persistentes.

Marco, que fez licenciatura em Biologia e mestrado em Biologia Aplicada, vai focar-se sobretudo no fulereno. “É uma estrutura de átomos de carbono na forma de uma bola de futebol, mas à escala nanométrica. Numa fase mais adiantada do projecto, vou testar a hipótese do seu uso como agente de remoção de poluentes existentes nos sistemas aquáticos", diz.

Esta forma de melhorar a qualidade ambiental de zonas de água é “inovadora” em Portugal, mas já é usada em países como os Estados Unidos. Marco quer pôr os fulerenos a “absorver ou a formar uma estrutura tipo jaula de forma a envolver” poluentes, como derivados de petróleo, pesticidas e outros.

O júri gostou da candidatura e deu-lhe uma “boa classificação”. Se não conseguisse a bolsa, “seria quase impossível” dedicar-se ao projecto a tempo inteiro. O mais certo, diz, seria ter rumado a outro país. “Queria continuar na investigação. Se não conseguisse cá teria que ir para um sítio onde houvesse as condições para tal.”

O doutoramento vai decorrer nas universidades de Aveiro e de Plymouth, no Reino Unido. E o futuro? "Penso continuar neste domínio de investigação, mas focalizado no design de nanopartículas com potencial de transporte e libertação de medicamentos em zonas alvo do corpo humano."

O futuro é "nano".



O SONHO FICOU A QUATRO CENTÉSIMAS
Quatro centésimas. Quatro centésimas separaram Patrícia Nogueira do objectivo de conseguir bolsa de doutoramento. Pensava que ficaria a “meio da tabela”, mas o júri reconheceu a “originalidade” e o “pioneirismo” da sua candidatura. Mas ficou a quatro centésimas, quatro centésimas apenas, do sonho.

“É uma frustração. É muito pouco mesmo”, confessa Patrícia, 34 anos, de Matosinhos, que ainda deposita alguma esperança que, na fase de recurso, os jurados possam aumentar a nota e fazer com que ultrapasse a linha de água.


Patrícia Nogueira quer estudar o webdocumentário
A bolsa da FCT é fundamental para Patrícia tirar total partido do programa doutoral em que se inscreveu, uma parceria entre as universidades do Porto e do Texas em Austin. Sem bolsa, e com uma filha de seis anos, Patrícia não se poderá dedicar em exclusivo à investigação sobre o comportamento dos consumidores do webdocumentário, formato em que o espectador pode interagir com o filme.

“Gostava de perceber o que vai mudar na atenção e no envolvimento do espectador de um webdocumentário em relação a uma narrativa linear”, conta. Algo que ninguém no mundo estudou, garante, e que terá implicações em áreas como o marketing e a publicidade.

“Sem a bolsa, não tenho capacidade económica para pagar as propinas, a minha casa, as minhas contas e estar três meses fora do país. Sem a bolsa, a investigação terá que ficar circunscrita ao território nacional”, lamenta a autora do documentário "3 Horas para Amar", de 2012, filme que realizou no âmbito do mestrado em comunicação audiovisual, na Escola Superior de Música, Artes e Espectáculo, no Porto.

Para Patrícia, ficar sem bolsa de doutoramento é uma “oportunidade de internacionalização” que “se perde”: “nos Estados Unidos, em particular em Austin, existe já investigação nesta área e várias infra-estruturas que me iriam permitir uma investigação mais profunda.”



INOVAR E DEPOIS EMIGRAR
“É o coração da engenharia: fazemos a transformação de moléculas noutras moléculas.” Viviana Silva descreve com entusiasmo a engenharia das reacções, uma das áreas que mais lhe tem interessado ao longo da carreira de engenheira química.

Viviana, com 39 anos, foi elogiada em Portugal, recebeu um prémio internacional, mas encontrou na Alemanha uma forma de fugir às contingências do sistema científico português. Trabalha em Ludwigshafen, cidade industrial alemã que é a casa da BASF, um gigante mundial da indústria química. O que lá faz ao certo não revela: é segredo profissional.


Viviana Silva encontrou emprego no gigante BASF
Em 1997, concluiu a licenciatura em Engenharia Química da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP). Nesse mesmo ano, conseguiu uma bolsa de doutoramento da FCT, também na FEUP. Em 2004, tornou-se investigadora de pós-doutoramento, depois de ter sido assistente do Instituto Politécnico de Bragança, entre 2001 e 2004.

No Laboratório de Processos de Separação e Reacção da FEUP, Viviana e os colegas desenvolveram um processo inovador de produção de um aditivo “verde” para gasóleo, capaz de reduzir em 20% as emissões de partículas na combustão do combustível. O projecto, cujo processo foi patenteado em 2005 pela Universidade do Porto, venceu um prémio internacional que reconhece a excelência da investigação na área da engenharia química.

Na FEUP, consegui um contrato como investigadora auxiliar do programa “Ciência 2007” e chegou a co-orientar alunos de doutoramento e pós-doutoramento. Mas, prevendo que não seria integrada nos quadros, decidiu mudar de vida e rumar à Alemanha, em Janeiro de 2012.

“Poderíamos pensar em mudar de universidade, mas, quando estamos tão especializados em determinadas áreas, não é fácil encontrar uma outra universidade, porque certa área de investigação só existe naquela universidade”, explica.

O marido, Pedro Sá Gomes, hoje com 31 anos, também encontrou na emigração e na BASF uma forma de sair do circuito infindável de bolsas e vínculos precários. Em Portugal, conseguiu bolsas de doutoramento e pós-doutoramento na Alemanha, ambas da FCT, e uma bolsa Marie Curie, atribuídas pela União Europeia, para desenvolver um projecto entre o MIT e a FEUP.

Trabalhar numa das “maiores empresas químicas do mundo” entusiasma Viviana. “A BASF desenvolve a sua própria tecnologia dentro de casa e isso oferece muitas oportunidades para fazer investigação aplicada na indústria.”