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Ideia que muitos têm da Cúria não corresponde à realidade

21 fev, 2013 • Filipe d’Avillez

As críticas e os desabafos de Bento XVI e diversos escândalos vindos recentemente a público levam muitos a considerar que o Vaticano é um antro de intrigas, mas esse não é o verdadeiro retrato da realidade, garante um profundo conhecedor do funcionamento da Santa Sé.

Ideia que muitos têm da Cúria não corresponde à realidade

“Penso, particularmente, nos pecados cometidos contra a unidade da Igreja, das divisões no corpo da Igreja.” Assim falou o Papa Bento XVI, durante a homilia de Quarta-feira de Cinzas, dois dias depois de anunciar a sua resignação, efectiva a partir de 28 de Fevereiro.

Já na viagem a Portugal o Papa tinha sublinhado que os piores ataques à Igreja vêm de dentro e não do exterior. Mas a verdade é que esta não foi a primeira vez que Bento XVI aproveita discursos públicos para fazer críticas que têm por objecto, claramente, elementos internos da Igreja, o que, por sua vez, conduz a muita especulação sobre o ambiente, no Vaticano e na Cúria romana, que o rodeia.

Para quem vive fora de Roma e apenas ouve histórias e lê notícias sobre o que lá se passa, é fácil imaginar que o Vaticano é um antro de intrigas e lutas de poder. O padre John Wauck, professor na Universidade de Santa Croce, em Roma, conhece bem a  Santa Sé e alerta para o facto de que a realidade é diferente.

“A imagem da Cúria como estando repleta de corrupção, ganância e cardeais sedentos de poder é muito exagerada. Na Cúria, como em qualquer lugar, há defeitos, fraquezas humanas e pecado. Mas a vasta maioria das pessoas em Roma são muito humildes, trabalhadoras dedicados, que dão toda a sua vida e não procuram reconhecimento. São verdadeiramente homens de oração”, diz John Wauck à Renascença.

“Há pessoas que se deixam influenciar pelo orgulho? Claro. Isso acontece sempre. Mas não é uma maioria, de maneira nenhuma”, sublinha o padre americano.
O problema, na perspectiva de John Wauck, coloca-se desde sempre e tem a ver com um paradoxo cristão: “A Igreja é santa, mas nós somos pecadores. A beleza do corpo místico de Cristo é sagrado, mas está constantemente a ser manchada pelos pecados das pessoas que nela vivem”.

As palavras e o contexto
Em todo o caso, diz Wauck, as várias instâncias em que Bento XVI fez críticas internas devem ser vistas no seu contexto. A célebre meditação da quinta estação da Via Sacra, em 2005, elaborada por Joseph Ratzinger nos últimos tempos do pontificado de João Paulo II, em que se lamenta “quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele!”, diz respeito aos crimes de abusos sexuais praticados por membros do clero. Tal como a referência aos ataques à Igreja, feita durante a viagem para Portugal.

Numa carta de 2009, endereçada aos bispos de todo o mundo, o Papa queixa-se, com franqueza, de ter sido “tratado com aversão, sem temor nem decência” por alguns. Mas essa carta dizia particularmente respeito às conversações com os tradicionalistas da Sociedade de São Pio X, numa tentativa de reunificação criticada por muitos bispos católicos.

Noutras ocasiões, contudo, as palavras parecem mesmo ter sido motivadas por desgosto com a fraqueza moral das pessoas que o rodeiam. É o caso das proferidas na Quarta-feira de Cinzas e do discurso aos cardeais, na altura do consistório de Fevereiro de 2012, quando, no auge do escândalo Vatileaks, o Papa alerta: “Domínio e serviço, egoísmo e altruísmo, posse e dom, lucro e gratuidade: estas lógicas, profundamente contrastantes, defrontam-se em todo o tempo e lugar”. Bento XVI pede aos novos cardeais que a sua “missão na Igreja e no mundo se situe sempre e só ‘em Cristo’ e corresponda à sua lógica e não à do mundo, sendo iluminada pela fé e animada pela caridade que nos vem da Cruz gloriosa do Senhor”.

“Raspanete” no aeroporto
O hábito de usar a cadeira de Pedro para repreender altos membros da Igreja não é novo. O padre John Wauck recorda que João Paulo II criticou severamente alguns padres e bispos de forma pública, como quando chegou à Nicarágua e deu um autêntico “raspanete”, de indicador em riste, a um sacerdote que aceitara um cargo político, enquanto este se ajoelhava à sua frente na pista do aeroporto.

“É importante recordar que, antes do Segundo Concílio Vaticano, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé era o próprio Papa. Por isso coisas como o ‘Syllabus de erros’ (um documento do século XIX, de Pio IX, que condenava um conjunto de ideologias, entre as quais o comunismo, o panteísmo, o racionalismo a maçonaria e o liberalismo religioso) e as condenações de heresias vinham directamente dele. Nesse sentido, uma preocupação com a unidade, sobretudo ao nível da doutrina, era parte comum da actividade do Papa e era frequentemente expressa nos termos mais firmes”, explica o sacerdote americano.