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"É estranho o silêncio do Vaticano II sobre o comunismo"

24 out, 2012 • Filipe d’Avillez

O historiador italiano Roberto de Mattei está em Portugal para apresentar o seu livro “O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”.

"É estranho o silêncio do Vaticano II sobre o comunismo"
11 Outubro 1962 . foto Getty Images
O historiador italiano Roberto De Mattei é professor de História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma. Em 2008 foi condecorado pelo Papa em reconhecimento dos serviços prestados à Igreja. É ainda colaborador do Pontifício Conselho das Ciências Históricas. Nesta entrevista fala do seu mais recente livro: “O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”.

Em que sentido é que o seu livro é uma “história nunca escrita” do Concílio?
Nunca até hoje foi escrita uma história compreensiva sobre os três anos do Concílio. A única que está escrita, por Giussepe Alberigo, é apenas uma colecção de textos.

Falta-lhe o aspecto de interpretação dos factos?
Exactamente, a ideia é também uma nova interpretação dos factos. Só depois da reconstrução histórica dos factos é que os pastores, os teólogos, podem intervir para formular os seus juízos teológicos e morais. O meu nível é o histórico.

Por exemplo, hoje em dia toda a gente se apercebe do alcance revolucionário do Maio de 68, uma revolução cultural profunda e incisiva. Contudo, antes de 68 houve o Concílio, uma revolução que modificou profundamente a história dos anos seguintes, a começar pelo próprio Maio de 68, que tem uma componente católica que devemos reconhecer para melhor resolver os problemas contemporâneos.

À medida que investigou o Concílio, o que é que o surpreendeu mais?
Talvez o silêncio do Concílio sobre o comunismo. Quando o Concílio se reúne, o Muro de Berlim acabara de desferir uma profunda ferida na Europa. O Comunismo estendia a sua sombra ameaçadora sobre todos os continentes. Porque é que os padres conciliares, reunidos em Roma para tratar das relações entre a Igreja e o mundo moderno, ignoram o fenómeno mais macroscópico da sua era, o imperialismo comunista? Esse é talvez o mistério mais profundo do Concílio Vaticano II.

É cedo para fazer já um balanço do efeito do Concílio na Igreja?
É o momento de se fazer este balanço. O Vaticano II não foi o primeiro nem o último concílio, foi um momento da longa história da Igreja. Ao longo da história houve 21 concílios. Alguns deles, Niceia, Trento, Vaticano I, são inesquecíveis, por causa do alcance teológico dos documentos que deles emanaram. Outros foram esquecidos. Um concílio entra na história pela qualidade dos seus documentos. Nesse sentido temos uma grande liberdade crítica para analisar e fazer um balanço do Concílio Vaticano II.

Daqui a 400 anos as pessoas vão-se lembrar do Concílio Vaticano II?
Não posso dizer isso, mas posso dizer que o Vaticano II foi um concílio diferente de todos os que o precederam, neste a característica mais importante foi a pastoral. Claro que nem o Concílio de Trento nem o Vaticano I tinham sido privados do elemento pastoral, mas no Vaticano II a dimensão pastoral acabou por se tornar prioritária, introduzindo uma revolução na linguagem e na mentalidade. Essa seria a característica principal, essa revolução não no conteúdo, não dogmática, mas na linguagem, na mentalidade, na maneira de apresentar a doutrina da Igreja.

Ruptura ou continuidade?
Em sua opinião o Concílio apresentou uma ruptura com a Igreja anterior, ou não?
O Papa Bento XVI declarou que existe uma hermenêutica da reforma cuja verdadeira natureza consiste numa conjugação de continuidade e descontinuidade a níveis diferentes. Parece-me que é justamente daí que devemos partir e essa continuidade e descontinuidade do Vaticano II, nos confrontos com a Igreja anterior, pode ser considerada sobre dois aspectos: a dimensão histórica-humana da Igreja e a dimensão ontológica. Acho que houve continuação na dimensão ontológica que corresponde à dimensão divina da Igreja, porém houve descontinuidade na dimensão humana que corresponde à natureza humana da Igreja.

O erro é concentrar a atenção sobre os documentos do Concílio, ou seja do conteúdo dogmático. O Concílio, antes de ser uma série de documentos, foi um evento histórico. Nesse sentido podemos dizer, acho, que houve uma ruptura, mas uma ruptura histórica não é necessariamente uma ruptura doutrinal e dogmática.

Qual era o clima na Igreja antes do Concílio?
Houve uma crise na Igreja antes do Vaticano II, mas o clima do Concílio favoreceu a explosão dessa crise. Hoje temos de perguntar se a voz profética que se fez ouvir na aula conciliar foi a do Cardeal Suenens, [da ala liberal], ou a voz dos conservadores que no Concílio combateram o Cardeal Suenens. A minoria conservadora do Concílio é hoje apresentada como a parte derrotada e os liberais são apresentados como profetas. O que faço no meu livro é ser a voz dos vencidos do Concílio, a voz da tradição.

Acredita que essa voz poderá ser reabilitada?
Acho que sim, porque hoje temos necessidade da tradição. A tradição não é o passado, esse acabou, não pode voltar, são os elementos do passado que vivem no presente e que têm de viver para que o nosso presente tenha futuro.

Houve uma grande expectativa à volta do Concílio. Passados 50 anos como vê a situação?
Recentemente Bento XVI falou de como esteve, enquanto jovem teólogo, na Praça de São Pedro quando João XXIII abriu o Concílio e em todo o mundo havia um clima de entusiasmo, parecia haver um clima de aurora, de Pentecostes para toda a Igreja.

Veja-se o contraste entre o clima entusiástico, um pouco utópico e a situação da Igreja que se apresenta nos discursos dos bispos reunidos em Roma para o sínodo da Nova Evangelização. A voz dos padres sinodais é uma voz dolente, pessimista, descrevem nas próprias dioceses uma situação de profundo sofrimento da Igreja, uma Igreja que é perseguida em todos os continentes, incluindo na Europa. Essa é a situação actual.