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Papa. A compaixão como antídoto para o "zapping espiritual"

09 jul, 2015 • Aura Miguel, na Bolívia

“Não somos testemunhas de uma ideologia, uma receita, uma forma de fazer teologia. Somos testemunhas do amor sanador e misericordioso de Jesus”, disse Francisco aos padres e religiosos da Bolívia.  

Papa. A compaixão como antídoto para o "zapping espiritual"
O Papa Francisco pronunciou-se, esta quinta-feira, contra aquilo a que chamou uma espiritualidade "zapping", que resulta de "um coração que se habituou a passar sem se deixar tocar; uma existência que, andando por aqui e por ali, não consegue radicar-se na vida do seu povo".

Francisco dirigia-se aos seminaristas, padres e religiosos da Bolívia, neste seu segundo dia no país, parte de uma viagem de dez dias que está a fazer à América Latina e que inclui passagens pelo Equador e a Bolívia, terminando no Paraguai.

A reflexão do Papa seguiu-se à leitura da passagem do Evangelho que fala do cego Bartimeu. Nesse trecho, o mendigo clama várias vezes para Jesus o ajudar, mas a multidão que o segue ou o ignora ou o manda calar, até que Cristo manda chamar Bartimeu e lhe pergunta o que pode fazer por ele, curando-o de seguida.

Francisco destacou as diferenças entre estas três atitudes, a começar pelas vítimas do "zapping espiritual", que passam e ignoram as necessidades dos mais pobres. "Neste passar, temos o eco da indiferença, do passar ao lado dos problemas, procurando que estes não nos toquem. Não os ouvimos, não os reconhecemos. É a tentação de ver como coisa natural a dor, a tentação de habituar-se à injustiça. Dizemos cá para nós: é normal, sempre foi assim."

"É o eco que aparece num coração blindado, fechado, que perdeu a capacidade de admiração e, portanto, a possibilidade de mudança", explica.

O Papa não aceita sequer a justificação de que alguns dos que passaram por Bartimeu não ligaram porque estavam demasiado absortos em Jesus e no que ele dizia. "Isto é o maior desafio da espiritualidade cristã. Como nos lembra o evangelista João, 'aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê'. Dividir esta unidade é uma das grandes tentações que nos acompanharão ao longo de todo o caminho."

"Temos de estar cientes disto. Tal como escutamos o nosso Pai, assim escutamos o Povo fiel de Deus", disse o Papa aos sacerdotes e religiosos.

Piores, contudo, do que os que não ouvem são aqueles que mandam calar Bartimeu. "Pensam que a vida de Jesus é apenas para aqueles que consideram aptos. A seus olhos parece lícito que encontrem espaço apenas os 'autorizados', uma 'casta de pessoas diferentes' que pouco a pouco se separa, diferenciando-se do seu povo. Fizeram da identidade uma questão de superioridade", lamenta Francisco.

"Ouvem, mas não escutam; vêem, mas não fixam o olhar. A necessidade de se diferenciar bloqueou-lhes o coração. A necessidade de dizer 'Eu não sou como ele, como eles' afastou-os não só do grito do seu povo e do seu pranto, mas também e particularmente dos motivos de alegria. Rir com aqueles que riem, chorar com os que choram: está aqui parte do mistério do coração sacerdotal."

Atitude antagónica foi a que Jesus demonstrou ao chamar Bartimeu para perguntar o que pode fazer por ele. "Limita-se a fazer uma pergunta, a identificá-lo pretendendo ser parte da vida daquele homem, querendo assumir a sua própria sorte. Deste modo restitui-lhe gradualmente a dignidade que tinha perdido, faz a sua inclusão", refere Francisco.

Nesta atitude o Papa identifica a compaixão que é o contrário do "zapping espiritual" a que tinha aludido anteriormente. "A compaixão não é 'zapping', não é silenciar a dor; pelo contrário, é a lógica própria do amor. É a lógica que não está centrada no medo, mas na liberdade que nasce de amar e coloca o bem do outro acima de todas as coisas. É a lógica que nasce de não ter medo de se aproximar da dor do nosso povo. Embora muitas vezes se reduza a estar ao seu lado e fazer desse momento uma oportunidade de oração."

Todos os sacerdotes, seminaristas, bispos e religiosos deviam recordar-se disto, insiste Francisco. "Não somos testemunhas de uma ideologia, uma receita, uma forma de fazer teologia. Somos testemunhas do amor sanador e misericordioso de Jesus. Somos testemunhas da sua intervenção na vida das nossas comunidades. Esta é a pedagogia do Mestre; esta é a pedagogia de Deus com o seu Povo. Passar da indiferença do 'zapping' a 'coragem, levanta-te que o Mestre chama-te'".

A Renascença V+ transmite em directo os principais momentos da visita do Papa à América Latina, até domingo. Veja em detalhe o programa das transmissões