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Igreja portuguesa “perdeu o sal” e continua “sisuda”

29 mai, 2015 • Ângela Roque

O frei Bento Domingues lança mais um livro, resultado de uma colaboração com "Público", mas não se vê como um escritor. Escreve crónicas "por dever de consciência" e porque são também uma "forma de pregação".

Igreja portuguesa “perdeu o sal” e continua “sisuda”
“O bom humor de Deus e outras histórias” é o título de mais um livro com as crónicas de frei Bento Domingues no “Público”. O frade dominicano colabora com o jornal há mais de duas décadas, mas em declarações à Renascença disse que não se vê como um escritor. Escreve crónicas “por dever de consciência” e porque são também uma “forma de pregação”, ou não pertença ele à Ordem dos Pregadores.

Sobre a Igreja portuguesa, acha que tem boas lideranças mas que “perdeu o sal” e continua demasiado “sisuda” e triste. Lamenta também que não haja cristãos mais interventivos, sem vergonha nem medo, e que não se viva a fé com alegria, como pede o Papa Francisco.

É importante haver nos media espaço para estas reflexões de pessoas da Igreja?
Aqui no Ocidente, sobretudo na Europa, o fenómeno da laicidade tenta privatizar a religião, passá-la para o privado, só é pública quando é criticada. Antes de chegar este Papa só os escândalos do Banco do Vaticano e da pedofilia é que apareciam, não havia mais notícias nos meios de Comunicação, e isso era para mim uma tristeza enorme. O que ainda não compreendi, não na Igreja em Portugal, que é uma coisa grande, mas nas lideranças católicas, é que não tenham ainda pegado, por exemplo, no discurso que o Papa fez no Parlamento Europeu e ajudarem os cristãos a entender o seu papel na sociedade. Parece que andam manietados por alguns grupos ou pessoas que não gostam do Papa Francisco. Mas eu creio que Francisco fez uma convocatória também aos bispos, aos padres, aos religiosos, às instâncias de liderança na Igreja, para dinamizarem o Evangelho. Porquê? Porque o Evangelho é o da alegria.

O tema deste livro remete-nos para a importância de se viver a fé com alegria. Falta alegria e até sentido de humor na forma como se vive a religião?
Sim, sentido de humor. Uma coisa que sempre me impressionou foi termos o Evangelho e termos este ar tristonho. Parece que estamos sempre assustados.

O Papa já criticou isso várias vezes. A forma triste e sisuda com que os cristãos vivem e até com que os padres celebram, às vezes com “cara de enterro”, foi a expressão que usou…
Ele tem razão! Por exemplo, as pessoas nunca contam histórias na Igreja ou então são histórias tristes. Não contam uma anedota ou algo que faça rir. As pessoas vão à missa para terem energia para a próxima semana, para se alegrar. Não, se não for sisudo pensam que não é sagrado. Ora, a alegria é o mais sagrado que há!

No geral a Igreja portuguesa continua muito ‘sisuda’ ou com o Papa Francisco já mudou alguma coisa?
Acho que mudou e já há gente que até tem vergonha das atitudes antes assumidas. A mudança de mentalidades é sempre lenta, mas creio que o Papa criou um novo clima: esta concepção de ver o mundo a partir da periferia, ele assentou aí o Evangelho de Jesus.
O termos uma concepção económica e uma concepção política que ficam uns no centro e outros na periferia, faz com que tenhamos sociedades não multiculturalistas mas sim de ‘multi-guettos’. Nós, cristãos, devemos apontar para um mundo fraterno, mas é um trabalho que me parece que desistimos dele.

É obrigatório os cristãos tomarem consciência dessa responsabilidade na defesa do bem comum, na tolerância, na entreajuda?
É. Criticaram muito o Papa Francisco por ele dizer ‘esta economia mata’, mas o que é que ele há-de fazer? É a evidência! Encontremos é outras formas de viver.
Os cientistas sociais católicos, que os há, porque é que não espicaçam os outros a dizer ‘vamos lá ver se também podemos dar um contributo científico para uma outra forma de organização social’? Nós adoptámos o que há de pior no capitalismo, que é o egoísmo levado ao extremo, e o pior que há no comunismo que é ‘as pessoas não contam’. Mesmo cá em Portugal, neste tempo que chamavam ‘da troika’ e da austeridade, só viram números. E as pessoas? Não existem, passa a haver uma abstracção.

Então os católicos precisam de ser espicaçados para se recentrarem nas suas responsabilidades?
Absolutamente! E depois repare que as pessoas, individualmente, até adoptaram o sistema da laicidade: vão à missa, comungam, depois o resto da vida, religião ‘viste-la’! Que afinal é o que a laicidade pretende, é a fé não ter dimensão pública.
Acho que a Igreja portuguesa tem gente boa e as lideranças não são más, de bispos e padres. Parece-me que perderam sal e não conseguem, sobretudo, ajudar a espicaçar as comunidades. Mesmo isto dos sínodos é tão amorfo, tão chatinho! Quer dizer, em vez de ser um grande instrumento, de incentivar, parece que têm medo de explosões.

É sua intenção continuar a espicaçar os cristãos com as suas crónicas, alertando para os problemas?
É uma coisa que faço por dever de consciência. Desde o começo do “Público” que me pediram isso. Muita gente me incentivou, por considerarem importante esta presença num meio que não é confessional e que tem toda uma margem de gente que lê que não é católico, ou é católico crítico, outros são agnósticos, ateus. Ora, eu não estou a fazer mais que o meu dever. Entrei na Ordem dos Pregadores (dominicanos) e esta é a minha forma de pregação. E nunca tive nenhuma censura de nenhum bispo português.

Nunca se sentiu incompreendido pela Igreja?
Não. E dentro da Ordem completamente apoiado, mas também não me dão "consignas". É um espaço de liberdade. No jornal nunca senti censura nenhuma, muitas vezes os leitores não estão de acordo, é o normal. Nunca faço uma crónica sem estudar o assunto. E não tenho pretensões de ser um escritor, sou um colaborador. Sinto-me feliz. 

Esta entrevista vai ser transmitida na íntegra no programa “Princípio e Fim” da Renascença, domingo, a partir das 23h30. O livro “O bom humor de Deus e outras histórias” foi lançado esta sexta-feira, em Lisboa. A organização das crónicas é da responsabilidade do jornalista António Marujo e da irmã Maria Julieta Dias.